Arquivos Diários : julho 24th, 2020

Galo à la Newton: surge um novo líder

 

Tiago Muniz Cavalcanti no GGN

Isaac Newton dizia que a toda ação corresponde uma reação, de mesmo módulo, mesma direção e de sentidos opostos. Essa teoria nos permite fazer analogias sempre que, em determinadas situações de fato, forças efetivas estão em confronto. E a deflagração de movimentos grevistas como expressão de luta coletiva para denunciar, reivindicar e emancipar certamente guarda correlação com a terceira lei de Newton.

Historicamente, os movimentos coletivos surgiram como uma reação ao próprio Estado liberal e às barbáries decorrentes da exploração do trabalho humano. Inicialmente concebida como um ilícito social e fortemente reprimida, a greve é atualmente reconhecida nas mais diversas constituições ocidentais e declarações internacionais. É o principal instrumento de conflito coletivo de que se dispõem os trabalhadores para reagir à violência, à injustiça, à tirania, aos abusos: uma reação à opressão.

A atual condição dos entregadores é bastante propícia para gerar insatisfações. As empresas de aplicativos para as quais prestam serviço não se reconhecem como empregadores, opõem-se ao vínculo de emprego e, com isso, lhes negam direitos básicos seculares. Os entregadores estão, hoje, submetidos a uma situação limítrofe entre a precarização e a escravidão: eles não têm salário mínimo, férias, décimo terceiro; não têm previdência e proteção em face do desemprego, de acidentes, de doenças; não têm jornada, descanso semanal e feriados; não têm sindicato, convenção ou acordo coletivo. Eles trabalham incessantemente, longas horas diárias, sete dias por semana, na chuva ou no sol, sem sanitários, sem local para descanso, sem direito à alimentação ou água potável.

Diante dessa ação neoliberal que retira e nega direitos, os entregadores promovem uma reação. Vítimas de um sistema perverso que lhes levou de volta ao século dezoito, eles têm deflagrado greves contra as condições impostas pelas empresas de aplicativos e, por meio delas, reivindicam o aumento do valor por quilômetro rodado, o fim dos desligamentos desmotivados e um seguro contra roubos, acidentes e doenças. A par das reivindicações estritamente remuneratórias, a paralisação faz nascer um sentimento de classe, de união, de coletivo.

É nesse cenário que surge um novo líder. Idealizador e fundador do movimento Entregadores Antifascistas, principal apoiador e porta-voz da greve, o Galo, como é chamado, conhece muito bem sua verdadeira condição. Destemido, carrega consigo a luta histórica por direitos, fala a mesma língua dos seus pares, denuncia injustiças e reivindica melhores condições de trabalho. Às retaliações, responde com coragem e entusiasmo: planeja e conclama para as greves que virão.

Com ele é assim: bateu, levou. À la Newton, Galo sabe que só a luta será capaz de alforriá-los da semiescravidão levada a cabo pelo novo capitalismo tecnológico.

 

*Tiago Muniz Cavalcanti – Procurador do Ministério Público do Trabalho. Doutor em Direito e membro do Coletivo Transforma MP.

Pandemia e Agrotóxicos: EPIs e Subnotificação

 

Dados do Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde informam que até o dia 11 de julho de 2020 atingimos 866 mil casos suspeitos da COVID-19 entre profissionais de saúde, com mais de 180 mil confirmações

Por Leomar Daroncho* e Bruno Choairy Cunha de Lima** no GGN

O bombardeio de notícias sobre a pandemia tornou as máscaras e o incômodo pelo seu uso, temas inevitáveis, para técnicos e leigos. Já há máscaras de clubes de futebol e com mensagens políticas, além de modelos “fashion”.

Estamos nos acostumando a discutir a eficiência e a usar Equipamentos de Proteção Individual (EPI), com maior ou menor adesão aos apelos ou à imposição das autoridades responsáveis. Já se buscou impor seu uso inclusive ao Presidente da República, que se considerava imune ao novo Coronavírus.

Trata-se de oportunidade ímpar para discutirmos o uso e a eficiência de EPIs, além da subnotificação do número de casos e da contaminação de trabalhadores traçando paralelo com outras frentes em que esses problemas fazem parte do dia-a-dia dos trabalhadores, mesmo em condições normais.

Dados do Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde informam que até o dia 11 de julho de 2020 atingimos 866 mil casos suspeitos da COVID-19 entre profissionais de saúde, com mais de 180 mil confirmações. O Observatório da Enfermagem do Conselho Federal da categoria já contabiliza 290 óbitos de Enfermeiros pela doença. Números parciais, que não contabilizam informações do Paraná e do Espírito Santo, revelam maior incidência entre técnicos de enfermagem, enfermeiros e médicos. São profissionais que nos acostumamos a ver usando máscaras e uniformes característicos e que, valorizados ou não por seus empregadores, despertam, justamente, a admiração dos brasileiros.

A incidência e a letalidade da doença entre profissionais com bom nível de formação e consciência dos riscos, em ambiente relativamente controlado, com boas condições de diagnóstico, torna oportuna a discussão da situação de trabalhadores continuamente expostos aos riscos da contaminação e do acometimento de doenças, agudas ou crônicas, em condições bem mais adversas. A maior parte dos trabalhadores da agricultura, em regime de intenso uso de veneno, tem baixa escolaridade, deficiência de informações e dificuldade de acesso aos serviços de saúde.

As normas brasileiras de proteção aos riscos da exposição aos agrotóxicos – Lei 7.802/89 e NR 31 – são tidas como de boa qualidade, porém, são de limitada efetividade.

Os EPIs são obrigatórios no trabalho rural em que há exposição aos agrotóxicos. Por lei, a empresa deve capacitar o trabalhador e fornecer EPIs adequados ao risco e em perfeito estado de conservação, que não propiciem desconforto térmico, que seria prejudicial ao trabalhador. As normas do setor responsabilizam ainda o empregador pela higienização e descontaminação dos EPIs, ao final de cada jornada de trabalho.

De fato, impressionaria muito que um trabalhador se vestisse de modo semelhante a um astronauta, em temperaturas tropicais, ao longo de um dia de trabalho, usando permanentemente itens obrigatórios como Boné árabe (com viseira), respirador, jaleco hidro-repelente, capa, bota, viseira facial, avental, luvas e segunda pele.

Apesar disso tudo, não é incomum encontrar trabalhadores manuseando veneno e usando roupas pessoais, camisetas de clube de futebol e chinelos de dedo.

Embora a legislação imponha a leitura das informações contidas no rótulo do veneno, pesquisas de percepção de risco dos trabalhadores que manuseiam os produtos (FIOCRUZ) indicam a informalidade e o analfabetismo funcional no meio rural como fatores que agravam o quadro de desproteção e de inobservância das normas de segurança.

Trata-se de exigência utópica, desenvolvida para os climas temperados em que os produtos tóxicos foram criados, e que nos remete a modelos de filmes futuristas, com o óbvio desconforto térmico das escaldantes fronteiras agrícolas brasileiras. Puro faz de conta!

A bula do glifosato, por exemplo, o veneno mais usado no Brasil e no mundo, prevê como condições limites de aplicação a temperatura máxima de 28º e o mínimo de 55% para a umidade relativa do ar. Seria necessário ajustar as condições climáticas a esses parâmetros, para considerar razoável o encapsulamento do trabalhador, todos os dias, durante todo o tempo em que estiver exposto ao veneno. A exigência não é razoável, pois está desconectada da realidade. Inevitável a conclusão de que, na maior parte do país, não são cumpridos os requisitos de segurança para a aplicação de veneno. Isso simplesmente não é crível!

Superada a questão anterior, o empregador ainda deveria higienizar, de forma separada, ao final de cada jornada, as vestimentas usadas no trabalho. Supõe a norma que todo estabelecimento rural possuiria uma lavanderia com profissionais treinados, além de estoque para reposição e locais para a guarda dos EPIs, realidade distante daquela vivenciada no campo. Ao contrário disso, na realidade é muito frequente encontrar, nas investigações de trabalho escravo, galpões que funcionam como alojamento de operários e depósito de veneno.

Conforme sinalizam os dados de contaminação dos profissionais de nível superior das unidades de saúde, que trabalham em ambiente controlado, a mera utilização de EPI não é suficiente para afastar os riscos a que estão expostos os que se ativam em situação de risco.

Para além das questões atinentes às dificuldades práticas de efetivo uso dos EPIs, mantém-se a dúvida sobre a eficiência, higienização e reutilização, nas condições desfavoráveis do meio rural, que envolvem incômodos respiratórios e com o suor, em regiões desassistidas, com baixo grau de instrução e qualificação. São dados que potencializam a incerteza quanto à eficiência da proteção conferida pelos dispositivos recomendados, ainda que fossem efetivamente usados.

Reforça a visão crítica ao mito do “uso seguro” do veneno, sustentado em EPIs, a constatação de que os dispositivos de proteção são concebidos para prevenir a exposição pontual, teórica, em eventos de intoxicação aguda de um determinado veneno. No dia-a-dia, as condições são bem mais adversas, com a ação de intempéries e o uso combinado de produtos tóxicos.

A subnotificação é outra questão muito preocupante e que permite traçar um paralelo da pandemia com a tragédia dos agrotóxicos. Mesmo sendo a COVID-19 uma doença marcantemente urbana, com sintomas conhecidos característicos e a possibilidade de exames com testes rápidos, há consenso entre epidemiologistas independentes de que o número real de casos de COVID-19 é bastante superior ao registro oficial.

No meio rural, os agravos à saúde, embora compatíveis, raramente são relacionados à exposição ao veneno, apesar do destaque do Brasil entre os países que mais utilizam agrotóxicos e de que algumas enfermidades crônicas despontem de forma marcante em determinadas regiões.

A precariedade de meios dificulta o diagnóstico e a relação entre os agravos à saúde e a exposição a produtos reconhecidamente tóxicos, propiciando quadros clínicos indefinidos, que seguem turvados pela desinformação, pelas limitações do sistema de saúde, pela exposição a múltiplos produtos e pela concomitância de outros fatores ambientais.

A negativa da indústria química, no que diz respeito ao nexo com doenças crônicas, contraria estudos de outros países, decisões judiciais e evidências estatísticas que relacionam a frequência de doenças graves, como o câncer, às regiões de mais intenso uso de veneno. Também aqui não se sustenta o mito do “uso seguro”.

Em meio a desmandos, os profissionais da saúde se orientam pelos preceitos morais de Hipócrates (século V a.C.), reafirmando o compromisso de manter o máximo respeito pela vida humana. Enquanto isso, com mais de 2,2 milhões de casos e superando as 83 mil mortes, o Brasil persegue resolutamente o posto de pária da pandemia. Essa posição terá consequências para as nossas vidas e para a reputação do país.

Com algumas semelhanças, a tolerância ao desenfreado uso de venenos muito tóxicos, proibidos nos países de origem, embalada pela falácia do “uso seguro”, tende a nos tornar foco de retaliações na acirrada disputa por mercados. Pagaremos caro por tudo isso, comprometendo o meio ambiente, a vida, a economia e o futuro de uma nação que se pretende desenvolvida, sem abdicar de controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.

*Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP

**Bruno Choairy Cunha de Lima é Procurador do Trabalho