Marcello Casal Jr./ABr
Por Renan Kalil na Carta Capital
Impedir o reconhecimento da relação de emprego mesmo diante do exercício do controle sobre os trabalhadores é legalizar a fraude trabalhista
No último dia 4, o governo federal anunciou o envio de uma proposta ao Congresso para regular o trabalho de motoristas que atuam por meio de plataformas digitais. O texto prevê que esses trabalhadores são “autônomos com direitos”, traz definições sobre o que são as plataformas e o modo de execução do trabalho, além de estabelecer regras sobre remuneração mínima, direitos previdenciários e organização sindical.
O projeto, contudo, tem um problema estrutural. Os conceitos que definem a empresa proprietária da plataforma digital, que caracterizam a liberdade do trabalhador e que afastam o enquadramento em uma relação de emprego são inadequados e negam a realidade.
Reduzir essas empresas a meras intermediadoras de viagens entre seus clientes e os motoristas está muito distante do que ocorre no mundo dos fatos. Ninguém abre o telefone celular e acessa o aplicativo da Uber ou da 99 procurando por um motorista específico – até porque, não existe essa opção. O que os clientes buscam é a prestação do serviço de transporte – o que é oferecido pela empresa.
Não à toa que há a opção de avaliar o trabalhador ao final da corrida, pois isso serve para conferir se a viagem foi feita dentro dos parâmetros estabelecidos pela empresa.
As próprias empresas, para que realmente lhes importa, não se consideram como meras intermediárias. No Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), para proteger a sua marca, registram-se como empresas de transporte. Ainda, o conceito estabelecido no Projeto coloca o Brasil na contramão do mundo: decisões de Tribunais no Reino Unido e na União Europeia classificaram a Uber como empresa de transporte.
Caracterizar a autonomia no trabalho somente com a liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos de conexão ao aplicativo, a inexistência de exclusividade e a inexigência de tempo mínimo à disposição é rejeitar a possibilidade de existir um trabalho que, de fato, seja autônomo.
Para começarmos a pensar em um trabalho com liberdade para os motoristas, eles deveriam poder colocar o preço nas corridas, não serem punidos em caso de rejeição de ofertas de viagens, não serem excluídos da plataforma por terem avaliações abaixo das previstas pela empresa, não terem a quantidade de ofertas de trabalho e de rendimento vinculadas às notas dadas pelos clientes. Porém, não há uma linha sobre isso no Projeto.
Impedir o reconhecimento da relação de emprego mesmo diante do exercício do controle sobre os trabalhadores é legalizar a fraude trabalhista. O conjunto de práticas indicadas no art. 5º do Projeto são exemplos concretos da forma pela qual as empresas impõem as suas diretrizes para a organização do negócio e vinculam os trabalhadores a essas políticas.
As plataformas digitais gerenciam a mão de obra por meio de algoritmos. Isso as permite distribuir atividades entre os trabalhadores, determinar como o serviço deve ser feito, avaliar os motoristas e aplicar sanções – tudo conforme os interesses da empresa.
Admitir que a adoção dessas práticas pelas plataformas não permite caracterizar o trabalho subordinado é antiquado por enxergar as relações de trabalho com uma visão datada do século passado e incapaz de identificar as novas formas de controle viabilizadas pelo desenvolvimento da tecnologia.
Em termos conceituais, o Projeto não traz muitas novidades em relação ao que está sendo debatido no Congresso Nacional. Todas as definições acima mencionadas já foram previstas em outras propostas, como o PLC 90/2023 (de autoria do Senador Rogério Marinho) e o anteprojeto apontado pelo The Intercept como de autoria do iFood.
Por fim, é necessário ficarmos atentos aos efeitos que essa ideia pode ter no mercado de trabalho. A sua ampliação para toda e qualquer atividade econômica tem o potencial de reduzir a pó o trabalho formal. É difícil imaginar que uma empresa irá admitir um empregado tendo a opção de contratar um trabalhador por meio de plataforma digital pagando um valor menor.
Os problemas existentes no projeto são graves e merecem reflexão da sociedade. A sua aprovação, nos termos em que foi enviado para o Congresso Nacional, consagra situações que negam a realidade, trata de forma inadequada o tema da regulação do trabalho via plataformas digitais e despreza o papel do Direito do Trabalho enquanto ramo jurídico criado para reduzir a desigualdade econômica existente entre as partes do contrato de trabalho.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.
Renan Kalil é Procurador do Trabalho, doutor em Direito pela USP, professor da graduação em Direito no Insper e integrante do Coletivo Transforma MP.