Engels e Kautsky, na obra “O socialismo jurídico”, expuseram meticulosamente a impossibilidade de emancipação da população trabalhadora, na sociedade capitalista, por meio do Direito. Para os grandes teóricos, o Direito, fruto da forma social da qual faz parte, só pode mantê-la tal como é — para isso existe —, e jamais poderá contrariar seus principais interesses. O Direito é, em última análise, a forma jurídica da sociedade capitalista.
Ilusões no Direito para a busca de uma sociedade justa e igualitária devem ser prontamente abandonadas. Mas isso não nos deve impedir de denunciar, da forma que for possível, as violações da lei pelos poderes que, ao menos — na verdade só — abstratamente, teriam a tarefa de defender o regime democrático e o respeito à lei. O sistema de Justiça, que tem o honroso papel de fazer cumprir a Constituição, vem falhando miseravelmente no Brasil, corroendo a já por demais combalida democracia.
Da prisão dos réus da Boate Kiss
A acusação contra os réus no conhecido processo criminal, por centenas de homicídios (242) por dolo eventual, e por outras centenas (636) por tentativa de homicídio com dolo eventual (coisa que sequer existe), é juridicamente impossível. Qualquer professor de Direito Penal (nem é preciso fazer citação de nenhum deles) ensina que dolo eventual é uma “espécie de dolo”, ou seja, a consciência e vontade de atingir determinado resultado típico.
Na modalidade eventual, o agente “conforma-se com o resultado” como algo possível e, mesmo assim, age. Diversamente do comportamento culposo, no qual o resultado é previsível, mas não quisto, no dolo eventual o agente quer, ainda que subsidiariamente, o resultado. Um dos principais exemplos dados nas universidades é o do atirador que dispara (a depender do tipo e quantidade de projéteis) contra um grupo de pessoas. Ele pode atingir alguma delas ou não. Mas é óbvio que quem atira contra várias pessoas age com a finalidade de atingir o resultado morte, ainda que ela possa não acontecer — para o agente é indiferente.
No caso da boate, não se pode concluir que os réus, ao não tomarem os devidos cuidados com a produção do show — o que fazia do resultado algo previsível —, de qualquer forma que se possa pensar, queriam o resultado morte ou aceitaram sua ocorrência. E o que é pior: que “tentaram matar” os sobreviventes. No exemplo do atirador, ao atingir uma das pessoas do grupo, ele responderia por um homicídio com dolo eventual do falecido e pela tentativa dos outros 20 que estavam no grupo. Não faz sentido.
Mas ilegalidade tão grave — ou pior — foi a decisão do ministro presidente do Supremo Tribunal Federal de determinar a prisão imediata dos réus. Não porque sua prisão provisória é necessária, mas para a (totalmente inconstitucional) execução provisória da pena (artigo 492, I, “e”, CPP). E pior ainda: pela “gravidade” e “reprovabilidade” dos crimes e credibilidade das instituições. Tudo que já foi rechaçado pelo Plenário da corte (também não é preciso citar os acórdãos; são todos de conhecimento público). Como pode o presidente do tribunal decidir monocraticamente contra jurisprudência pacífica do Plenário, e com evidente supressão de instância?
Dessa forma, é cristalino que não são só alguns integrantes do Poder Executivo que representam “risco à democracia”. Os que se dizem seus defensores deveriam se preocupar com o avanço do Poder Judiciário rumo a um estado autoritário.
Da busca e apreensão contra o ex-governador Ciro Gomes
O conhecido Ciro Gomes, seu irmão (um senador da República) e outros investigados foram alvo do cumprimento, pela Polícia Federal, de mandados de busca domiciliar por fatos ocorridos há mais de sete anos, em razão de suposta propina recebida em decorrência do processo de licitação para a construção da Arena Castelão, utilizada na Copa do Mundo do Brasil.
Sem adentrar o mérito do caso, a primeira coisa que salta aos olhos é uma medida invasiva dessa ordem tanto tempo após o suposto fato. O mandado de busca domiciliar (como qualquer medida cautelar, excepcional) só pode ser utilizado quando não houver outra forma de se buscar as provas de crime (pelo princípio da inviolabilidade de domicílio).
Pior: a prova que se tem contra os investigados é (ora vejam só) a palavra de delator premiado. É dizer, uma pessoa qualquer diz que esse ou aquele praticou um crime e está autorizada a entrada forçada, pelo Estado, em domicílio particular. É algo que esvazia o princípio constitucional, só passível de afastamento, segundo a Constituição, pela ocorrência de fatos graves como flagrante delito, socorro e desastre.
Ainda pretendo examinar os fundamentos da longa decisão, em data próxima.
Passou da hora de os autointitulados defensores da democracia começarem a exigir, de forma clara e veemente, a abolição dessa aberração jurídica chamada “delação premiada”. Pode ela voltar-se contra qualquer um, a qualquer momento. É um poderosíssimo instrumento de perseguição política.
E muitos aplaudem tais abusos judiciais quando praticados contra inimigos. Toda e qualquer ilegalidade praticada pelo Poder Judiciário deve ser combatida, ainda que a vítima seja pessoa de quem não gostamos. Os direitos e as garantias fundamentais não valem só para quem temos simpatia. É preciso denunciar os abusos judiciais que vêm sendo praticados contra aliados de Jair Bolsonaro (quem me conhece sabe o que eu penso da pessoa), como nos casos de Daniel Silveira e Roberto Jefferson.
Em 2017, fiz uma breve reflexão sobre abusos judiciais e jamais imaginei que, quatro anos depois, veria abusos ainda piores. Pelo andar da carruagem, a democracia vai mesmo para o ralo. O Direito — como o conhecemos — está em profunda decomposição. Quando ilegalidades se tornam tão costumeiras, é difícil imaginar que as coisas podem melhorar de forma pacífica.
Bem que Engels e Kautsky disseram: o fim do Direito é sua completa superação. É a sua morte como forma jurídica de uma sociedade egoísta, individualista, excludente e insensível.
O trágico é que muitos sofrem as graves consequências dessa morte lenta e gradual.
Gustavo Roberto Costa é promotor de Justiça em São Paulo, membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador — Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia — ABJD.