Ocupação militar nas favelas do Rio de Janeiro: qual é a novidade?

Por Gustavo Roberto Costa, no GGN.

Em entrevista ao Correio Braziliense[1], o Ministro da Justiça Torquato Jardim, ao ser perguntado se pessoas morreriam durante a intervenção federal do Rio de Janeiro, disparou:

“Em algum momento, lamentavelmente, vai. Não há guerra que não seja letal.

(…)

se passar um guri de 15 anos de idade, você vê a foto dele, já matou quatro, entrou e saiu do centro de recuperação, uma dúzia de vezes, e está ali com um fuzil exclusivo das Forças Armadas, você vai fazer o quê? Prende. O guri vai lá e sai, na quarta ou quinta vez que você vê o fulano, vai fazer o quê? Você tem uma reação humana aí que deve ser muito bem trabalhada psicologicamente, emocionalmente, no PM ou no soldado. Você está no posto, mirando a distância, na alça da mira aquele guri que já saiu quatro, cinco vezes, está com a arma e já matou uns quatro. E agora? Tem que esperar ele pegar a arma para prender em flagrante ou elimino a distância? Ele é um cidadão sob suspeita porque não está praticando o ato naquele momento ou é um combatente inimigo?”

(…)

Você não sabe quem é o inimigo, a luta se dá em qualquer ponto do território nacional. Você não sabe que arma virá, não sabe quantos virão. O seu inimigo não tem linha de comando longamente estabelecida, tem duas ou três linhas e acabou.”

Recebi mensagem de um amigo, com um comentário de um conhecido dele, que resume bem as declarações do (sic) ministro:

“Só que para o menino da favela não muda nada o que esse (…) disse, porque na prática é assim que sempre funcionou. Agora, para nós, eu só quero saber até quando ficaremos inertes com as coisas atiradas às nossas faces? Para nós muda muita coisa, sim. Subscreveremos a decretação ostensiva da barbárie?”

É isso mesmo. Para nós muda tudo. Para nós, sociedade, integrantes de carreiras jurídicas, advogados, muda demais. O que vamos fazer? O que estamos fazendo? Cadê as “autoridades constituídas”? Cadê as “instituições funcionando”? Cadê as associações de juízes, de promotores, de procuradores da república? Cadê a defensora intransigente dos direitos humanos, Dra. Raquel Dodge? Cadê a campeã mundial das frases de efeito, Ministra Carmem Lúcia? Cadê o iluminista Roberto Barroso?

É pouco o que disse o (sic) ministro? Confiram-se então as afirmações do Comandante do Exército, General Villas Boas, durante reunião do Conselho da República, quando alegou ser necessário dar aos militares “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade” no futuro[2]. O mesmo Villas Boas, que dissera no passado que o emprego das Forças Armadas para solucionar problemas de segurança pública é “inócuo”, pois, mesmo após quatorze meses ocupando a Favela da Maré, assim que saíram, “todo o status quo anterior tinha sido restabelecido”[3].

Como a Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Lei n. 12.528/2011, tinha “a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos” praticadas nos períodos autoritários, “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”, pode-se extrair da fala do general que a intervenção atuará com “graves violações de direitos humanos”? Dos grandes conglomerados midiáticos a resposta é positiva. Editoriais são publicados a todo momento, fazendo propaganda barata da intervenção[4] e exigindo garantias da lei para ações de militares nas comunidades[5].

Ocorre que, como lembraram Tiago Joffily e Airton Gomes Braga, o decreto de intervenção “não representa nenhuma ruptura com o que vem sendo executado há pelo menos uma década no âmbito estadual, mas sim um aprofundamento dos equívocos”[6]. Mostram os estudiosos que o Rio de Janeiro é o estado que mais recebeu operações de “Garantia de Lei e Ordem (Op GLO)” desde 2011 – algumas ainda em curso. Demonstram também que o modelo militarizado – de ocupação, limitação de direitos individuais, enfrentamento e encarceramento – é o que já existe na capital fluminense, com parcos (para não dizer inexistentes) resultados na redução da criminalidade. Segundo o estudo, o investimento em segurança pública no Rio de Janeiro (o maior do país) mais que dobrou em quatro anos, chegando a ser a área com maior investimento em 2016 (R$ 9.154.615.318), enquanto os investimentos em educação no período foram da quantia de R$ 6.032.411.905, e de R$ 4.698.284.284 em saúde.

Na prática, a mesma política equivocada. No plano jurídico, várias inconsistências. O jurista Lênio Streck afirma que “não se pode transformar uma intervenção federal em uma intervenção militar ou militarizada”. Afirma ainda que devem os “direitos e garantias ser respeitados” durante a execução da medida. Segundo o constitucionalista, “outro ponto que fere a Constituição é a falta de detalhamento no Decreto”, pois “o fato de ser parcial não pode acarretar uma invasão nas esferas de competência e atribuições do Ministério Público e do Poder Judiciário”. Por fim, o autor lembra que “ordem pública é um conceito jurídico”, e “não é fruto de escolha ou puro discricionarismo”, de forma que “o decreto não justificou a ocorrência desse requisito constitucional”.[7]

A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão e a 2ª Câmara Criminal, ambos órgãos do Ministério Público Federal, lançaram nota técnica em que afirmam existir, no decreto de intervenção, “vícios, que, se não sanados, podem representar graves violações à ordem constitucional”. Aduz a nota que o decreto não revela “quais as providências específicas que serão adotadas na execução da medida, o que é uma exigência do art. 36, § 1º, da CF”. A nota esclarece que o decreto não pode suspender a eficácia da legislação estadual, o que pretende o seu art. 3º, § 1º, porquanto representa uma afronta à separação dos poderes e ao sistema federativo. Acrescenta ainda que a natureza militar do cargo de interventor jamais “alterará a substância civil de sua atuação, inclusive para fins de definição da jurisdição competente e para o controle de seus atos e sobre a sua responsabilidade”. A nota repudiou o inconstitucional, ilegal, arbitrário e aviltante “mandado de busca coletivo”. Ao fim, lembram os subscritores da nota que não estamos em “guerra“, e entre nossos compatriotas não há “inimigos”.[8]

E o que fazem alguns juízes e membros do Ministério Público diante de tantas ilegalidades? Assinam nota de apoio às Forças Armadas: “colocamo-nos à disposição das forças da lei, no contexto da intervenção e nos limites de nossa missão constitucional, para colaborar com o sucesso do duro trabalho que será empreendido”[9]. Seria bom que os autores da nota explicassem o que vem a ser “colocar-se à disposição” de quem pretende, sem meias palavras, ter um salvo conduto para violar a lei e a Constituição, para que sua manifestação não seja mal interpretada.

O que falta é ouvirmos os verdadeiros interessados no assunto: os moradores das favelas. Pouquíssimos órgãos de imprensa dão voz a eles. Fala-se que a população dos bairros pobres são as que mais sofrem com o “tráfico de drogas”, e que seriam as mais favorecidas com a intervenção, mas sua opinião não ganha espaço nos grandes veículos de comunicação. Por que será? Basta verificar o que diz a Federação das Favelas do Rio de Janeiro – FAFERJ[10]:

“Precisamos de uma intervenção que nos traga a vida e não a morte. O exército é uma tropa treinada para matar e atuar em tempos de guerra. As favelas nunca declararam guerra a ninguém.

(…)

Sugerimos também que se faça uma grande intervenção social nas favelas do Rio de Janeiro.  Precisamos apenas de uma oportunidade para provar que somos a solução que o Brasil tanto precisa para se desenvolver e tornar-se um país mais justo para todos e todas.

Favela é potência! Favela é resistência!”

Ao dar poder em demasia a militares a fim de obter um pouco de apoio das forças armadas, visto que, de quase todos os demais segmentos da sociedade não conta com quase nenhuma popularidade, o atual e ilegítimo governo mostra sua vocação autoritária. Mostra que o controle e a eliminação dos indesejáveis, disfuncionais para o mercado de consumo e de trabalho, imprestáveis para a expansão do capital, é sua principal bandeira. E quando as instituições incumbidas de zelar pela Constituição e pelos direitos da sociedade resolverem acordar pode ser tarde demais – se já não for.

Esperamos, com uma boa dose de otimismo, que não seja.

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e membro do Movimento LEAP-Brasil – Agentes da Lei contra a Proibição.


[5] https://www.facebook.com/jornaldaband/videos/785069488364472. Para o grupo Bandeirantes de Comunicação, “nenhum soldado do mundo entrará numa guerra para vencer se não se sentir protegido pelas leis do país na hora crucial de usar sua arma.”

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