O último homem do presidente

Por Fábio Kerche e Marjorie Marona*

Lula ampliou a autonomia do Ministério Público e, particularmente, daquele que podia processá-lo, o PGR. Mas por quê?

Artigo publicado no site A Terra é redonda

Enquanto parte dos brasileiros segue como pode as diretrizes de isolamento social em face da pandemia de Covid-19, o presidente da República amarga um forçado isolamento institucional que faz erodir sua autoridade política, talvez de forma irreversível. Lideranças políticas com assento no Congresso, governadores, ministros do Supremo Tribunal Federal e até parte do governo se articulam em uma força-tarefa de contenção dos arroubos personalistas e atuação errática de Bolsonaro. Para além dos filhos – que desde o início de seu governo assumiram espaço na condução do país – e de um bando de ministros que em situações normais não teriam assento nem em conselhos fiscais de condomínios, o último homem do presidente parece ser Augusto Aras, o procurador-geral da República.

Há poucos dias, o PGR, instado pelo ministro Marco Aurélio Melo a prestar informações em face de uma notícia-crime apresentada ao STF contra o presidente da República, fez relembrar um dos tantos legados deixados pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para o folclore político brasileiro: Geraldo Brindeiro, o “engavetador-geral da República”. Esse era o apelido usado para o chefe do Ministério Público da União, órgão que inclui o famoso, e dócil com os tucanos, Ministério Público Federal.

Durante seus dois mandatos, o ex-presidente indicou Brindeiro para a Procuradoria por quatro vezes consecutivas. Para se ter uma ideia do que isso significa, nos 8 anos de FHC, foram 10 Ministros da Justiça. Brindeiro, diziam as más-línguas, retribuía a confiança abstendo-se de dar prosseguimento às acusações contra o presidente da República, e seu primeiro escalão – engavetando-as, em sentido figurado; deixando que fossem esquecidos alguns escândalos de corrupção que assolaram o governo tucano.

À parte de qualquer análise moral do período em que Brindeiro passou a frente da instituição, que havia ganhado autonomia pouco tempo antes com a Constituição de 1988, é racional e previsível que o PGR busque agradar ao seu principal eleitor, o presidente. Embora a indicação presidencial não prescinda de aprovação no Senado, a experiência indica que, se o escolhido chega à sabatina, raramente não reúne os votos suficientes para a aprovação. É, portanto, a busca pelo mandato e pela recondução ao cargo que limita a independência do PGR. Esse é um pressuposto que a ciência política adota, em geral, para analisar a atuação dos políticos – supondo uma racionalidade vinculada ao seu objetivo maior, que é a eleição – e se aplica também para aqueles casos que envolvem um cargo de mandato fixo em que não há limites à recondução.

Assim como os políticos, o PGR necessita agradar ao seu eleitor para ser reconduzido ao cargo, isto é, ao presidente da República. E os constituintes decidiram por esse formato justamente para proteger o presidente: asseguraram doses maciças de autonomia para os procuradores, mas não acataram a demanda do Ministério Público Federal para a criação de uma lista tríplice votada pelos próprios integrantes do órgão. Com isso, o que se criou foi uma “barreira de proteção” a todo o primeiro escalão do governo em face de virtuais investidas de politização da justiça com recurso a denúncias de corrupção e outros malfeitos. Também é racional, portanto, que o presidente indique alguém de sua confiança para ocupar o cargo.

Mas Lula fez diferente, embora não tenha modificado uma linha da legislação para isso. De maneira informal, abriu mão do direito-dever de escolher o PGR e passou a indicar ao quase sempre resignado Senado o nome mais votado de uma lista tríplice formada por parte dos procuradores do Ministério Público da União (os procuradores do trabalho, militares e do Distrito Federal não votam, embora constituam a maioria).

Por este novo formato, no lugar de agradar o presidente é mais racional voltar-se para o novo eleitor: os procuradores federais, colegas de MP. Do ponto de vista da campanha, o reflexo imediato foi o debate pautado por assuntos corporativos no lugar de se discutir as prioridades da instituição em termos de conformação de agenda.

O fim do constrangimento institucional para que o PGR processasse o presidente da República fazia hipertrofiar a autonomia do MPU. E mais, criavam-se incentivos para que o PGR jogasse de forma mais afinada com os procuradores federais. Estes seguiam subordinados, mas com o poder do voto, construindo-se coalizões majoritárias de base com capacidade de pressionar pela condução de determinados interesses corporativos, mas também agendas estratégicas. Lula ampliou a autonomia do Ministério Público e, particularmente, daquele que podia processá-lo, o PGR. Mas por quê?

Inúmeras vezes o ex-presidente já se manifestou dizendo-se surpreso com a postura de integrantes do Ministério Público, especialmente na condução da Operação Lava Jato. Afirmou, em outras tantas oportunidades, o apreço que tem pela instituição – do que parece dar prova a profunda mudança que conduziu, quando à frente do governo, no padrão de combate à corrupção e à criminalidade organizada. Desconsiderou, talvez, o peso que o perfil dos membros do MP poderia exercer sobre sua atuação, particularmente em um cenário institucional de autonomia funcional quase irrestrita.

Promotores e procuradores constituem um segmento fortemente elitizado da sociedade – 60% dos pais e 47% das mães dos entrevistados possuem curso superior, enquanto no conjunto da população brasileira com 50 anos de idade ou mais, essa proporção é de 9% para homens e 8,9% para mulheres. Ademais, existe um claro viés de gênero e também racial: 70% dos promotores e procuradores são homens e 77% são brancos, segundo pesquisa do CeSeC (2016). O resultado foi que o escorpião seguiu a sua natureza e não honrou a confiança do jabuti que o ajudou a atravessar o rio.

Dilma Rousseff manteve o formato adotado por Lula. Na verdade, o PT virou escravo dele. Em meio aos escândalos de corrupção que assolavam o governo e o partido, retomar a condução do processo de indicação do PGR tornou-se sinônimo de corrupção, de tentativa indevida de evitar que as investigações seguissem seu curso. Assim foi que Dilma reconduziu Rodrigo Janot mesmo em meio a uma crise política que contou com a atuação ativa e fundamental do Ministério Público Federal.

O ponto é: casos como o do Mensalão e, especialmente, a Operação Lava Jato devem ser compreendidos como resultado de uma série de mudanças institucionais, dentre as quais aquela que diz respeito ao processo de indicação do PGR, porque favorecem um framework que perigosamente combina altas doses de autonomia com níveis igualmente elevados de discricionaridade dos órgãos de controle político.

Nos Estados Unidos, por exemplo, em situações em que o presidente ou um de seus ministros é acusado de um crime, indica-se um advogado não pertencente ao Ministério da Justiça, que faz o papel do MP em nível federal. Esse promotor ad hoc teve sua autonomia limitada após o escândalo Monica Lewinsky justamente porque a classe política – democratas e republicanos – percebeu que um ator com tal grau de autonomia e discricionariedade gerava potencialmente muita instabilidade ao sistema político.

No Brasil, esta percepção não veio articulada democraticamente, na base de uma ampla coalizão partidária. Michel Temer, um presidente fraco à frente de um governo de transição, ainda observou a lista tríplice na indicação do PGR, mas não se curvou completamente à vontade dos membros do Ministério Público: indicou Rachel Dodge, que foi a segunda mais votada. Já como PGR, Dodge, quando percebeu que o vice que articulou a queda de Dilma era “carta fora do baralho” na sucessão presidencial que se avizinhava, apostou suas fichas em Bolsonaro.

As ciências humanas têm poucas oportunidades de observar tão bem um mesmo ator (variável dependente) em duas situações tão diferentes (variáveis independentes): Dodge manteve-se contida em relação ao novo presidente enquanto alentava esperança de ser reconduzida pelo capitão. Mas quando Bolsonaro a descartou de forma inequívoca, seguiram-se os momentos mais combativos do seu mandato [1].

Augusto Aras, o atual procurador-geral da República, foi indicado por Bolsonaro no ano passado. Demonstrando ser um bom leitor do cenário político, percebeu que fazer campanha entre os seus colegas do Ministério Público seria uma perda de tempo, já que o presidente sinalizava que não respeitaria a lista tríplice. A situação guarda alguma semelhança com o que aconteceu nos Estados Unidos: depois de um longo período em que o homem ou a mulher com poderes de acusar o presidente gozava da mais ampla autonomia e discricionariedade, voltou-se a se estabelecer um mecanismo de controle político sobre a atuação do PGR.

A postura de Aras durante a crise do coronavírus não é outra senão aquela que se pode esperar de um PGR que institucionalmente tem incentivos para agradar seu grande-eleitor, o presidente. E, neste caso, de um governo com características autoritárias. Por outro lado, da base do Ministério Público Federal alguma reação às medidas irresponsáveis do governo em face da pandemia de Covid-19 pode ser sentida.

Enquanto procuradores lançam ações tentando deter os tresloucados terraplanistas do Executivo, que negam a gravidade da pandemia, sinalizando que até para homens-brancos-jovens-meritocráticos o governo foi longe demais; o PGR pisa no freio e flerta com a gaveta. Age deste modo porque provavelmente não vê o fim do governo Bolsonaro neste momento. Ou seja, seu grande eleitor continua sendo o capitão. Fiquemos todos de olho em Aras. Ele é o último homem do presidente.

*Fábio Kerche é professor dos programas de pós-graduação em Ciência Política na UNIRIO e no IESP/UERJ

*Marjorie Marona é professora de Ciência Política na UFMG. Coordenadora do Observatório da Justiça no Brasil e na América Latina (OJB-AL). Pesquisadora do INCT/IDDC – Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação.

Notas

[1] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/09/preterida-dodge-critica-governo-bolsonaro-e-se-diz-preocupada-ao-deixar-pgr.shtml.

Acesse a publicação original: https://aterraeredonda.com.br/o-ultimo-homem-do-presidente/

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