Por Afranio Silva Jardim, no Empório do Direito.
Acredito que muitos dos exageros e mazelas do nosso “sistema de justiça criminal” decorrem do chamado ativismo do Supremo Tribunal Federal, seja por ação, seja por omissão.
Não se trata de concordar ou não com as suas decisões, mas de afirmar que ele não pode decidir em substituição ao Poder Legislativo, não pode criar regras jurídicas, muitas vezes ao arrepio do nosso sistema normativo. Tudo isto é mais grave quando atinge o Direito Penal ou o Direito Processual Penal.
Neste particular, cabe criticar o entendimento de muitos dos ministros do Supremo Tribunal Federal que chegaram a admitir o “combinado sobre o legislado” em nosso sistema de justiça criminal, priorizando o poder discricionário no processo penal em detrimento do princípio da legalidade.
Quando o Supremo Tribunal Federal decretou a prisão preventiva do senador Delcídio do Amaral, diante de vedação expressa e clara da Constituição Federal, escrevi:
“Agora estou com medo!!! Parece que está havendo um certo consenso de que o STF efetivamente decretou a prisão preventiva do senador Delcídio, embora a respectiva decisão fale em estado de flagrante delito em crime permanente e use a expressão genérica de prisão cautelar. A Constituição Federal veda expressamente as prisões provisórias em face dos parlamentares, salvo a prisão em flagrante por crime inafiançável”.
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Antes de mais nada, quero esclarecer que pertenci ao Ministério Público do ERJ por 31 anos, após o que me aposentei, tendo recebido duas comendas (uma do Min. Público Militar e outra do Ministério Público do meu Estado) e também as maiores homenagens que eu poderia esperar desta querida Instituição.
Não advogo e não vou advogar. Ainda me considero um “promotor de justiça”, pois adorei tê-lo sido por tanto tempo. Tenho vários amigos no Ministério Público.
Entretanto, o meu vínculo mais estreito com o Direito se dá através do magistério e do estudo diário. Por outro lado, tenho tornado público não pertencer à “corrente” liberal e individualista que se abriga em todos os ramos do Direito, inclusive do Direito Proc. Penal. Lá tenho grandes amigos pessoais e reconheço os seus talentos intelectuais. Nos meus 38 anos de magistério, sempre busquei uma posição de equilíbrio.
Ademais, historicamente, tenho me inserido ideologicamente dentro do pensamento filosófico e político da chamada “esquerda democrática e popular”, embora nunca me tenha filiado a qualquer partido político. Cabe esclarecer, outrossim, que não me considero um positivista jurídico, transitando mais entre as chamadas “teorias críticas do Direito”. Entretanto, abaixo, eu explico a minha adesão à luta pela legalidade e contra o ativismo judicial.
Abomino corrupção e qualquer outra forma de desonestidade.
Feitos estes esclarecimentos, que procuram demonstrar total desinteresse pessoal na questão da prisão de parlamentares, mais uma vez, volto a tocar na controvertida decisão do STF, apenas na qualidade de cidadão e professor de Direito Proc. Penal.
É nesta perspectiva que digo que me sinto inseguro e com certo medo do precedente criado: o mais alto Tribunal do país decreta uma prisão preventiva de um parlamentar, quando a Constituição da República diz que ele só pode ser preso em flagrante delito. Vale dizer, o Poder Judiciário decreta uma prisão que a Lei Maior diz claramente que isto é proibido.
O que vou dizer aos meus alunos? Não vejo excepcionalidade que permita ao maior tribunal do país ferir tão frontalmente esta garantia constitucional do funcionamento da República.
Sou mais velho e já vi militares e seus seguidores justificarem medidas autoritárias para enfrentarem situações, que eles também julgavam excepcionais. O S.T.F. não deveria fazer isto conosco…
Foi abrupta a mudança do Supremo Tribunal Federal, que era bastante liberal. Após a Lava Jato, a maioria de seus membros “viraram punitivistas”. Não mais me sinto mais seguro … Se é possível essa “ginástica interpretativa” para prender um senador, que garantia temos nós, simples cidadãos?
Na verdade, assim como nas décadas de 80/90, o Direito Alternativo serviu de instrumento para uma estratégica de juristas de esquerda (onde me incluo) tentarem avançar socialmente apesar do direito positivado, o chamado Neoconstitucionalismo serve hoje de pretexto para um poder judiciário conservador, e até mesmo reacionário, violentar o direito constituído, transformando princípios jurídicos (muitos de conteúdos indeterminados) em verdadeiras regras jurídicas cogentes, legitimando um nefasto ativismo judiciário, verdadeiro sinônimo de autoritarismo.
Desta forma, invocando alguns princípios, o Poder Judiciário está praticamente “legislando”, tornando jurídico alguns valores que pertencem apenas ao campo da moral.
Atenção: não estou desvalorando o Neoconstitucionalismo, muito menos conceituando-o ou definindo o seu objeto. Estou apenas dizendo que ele tem servido de pretexto para distorções da nossa jurisprudência, quase sempre conservadora, mormente quando tangencia as questões políticas ou ideológicas.
O mau exemplo acabou disseminado: o Tribunal Federal da 2ª. Região decretou a prisão preventiva de três deputados estaduais, nada obstante a vedação constitucional acima mencionada e regra expressa de aplicação das inviolabilidades e imunidades parlamentares federais aos Estados da Federação. Cinicamente, a prisão está mantida apenas pela forma irregular empreendida para a soltura dos parlamentares.
Sobre a prisão em face dos chamados crimes permanentes, ratificando o que disse anteriormente, peço licença para invocar o magistério do saudoso professor Hélio Tornaghi, um dos maiores processualistas brasileiros em todos os tempos, do qual tive o privilégio de ser assistente na antiga Suesc (também me sinto honrado de ter igual satisfação acadêmica em relação ao prof. José Carlos Barbosa Moreira na Uerj).
Em sua excelente obra “Instituições de Processo Penal”, vol.3, editora Saraiva, 2. edição, 1978, páginas 268/269, o mestre Tornaghi demonstra que a regra do art.303 do Cod. Proc. Penal não pode merecer interpretação que permita prender, em qualquer lugar e a todo tempo, alguém que seja suspeito de estar praticando um crime permanente. Por ser longa esta arguta lição, deixo de transcrevê-la aqui, mas julgo da maior importância a sua leitura, pois não vejo ninguém fazendo este tipo de questionamento. Mesmo no chamado crime permanente, a prisão em flagrante só se legítima se a pessoa estiver “na cena do crime”.
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Mais uma vez, invoco o músico Ivan Lins, quando diz esperar, ao final de uma das suas excelentes músicas, “que a justiça sobreviva”, embora o grande músico argentino Leon Gieco diga que “a justiça mira, mas não vê …”.
Por outro lado, digo agora que, na verdade, talvez a palavra “flexibilizar” seja uma das mais “perigosas”, em nossos dias de hoje. Ela oculta uma grande dose de cinismo e hipocrisia, pois procura minimizar a subtração de direitos e garantias próprias do Estado Democrático de Direito.
A invocação de um duvidoso “sistema de princípios jurídicos”, escolhidos ao talante do aplicador do Direito torna claro o voluntarismo de vários magistrados e cria uma grande insegurança jurídica, conforme adverti acima.
Por tudo isso, tenho dito que, estrategicamente, volto ao velho “positivismo de combate”, resgatando uma expressão do antigo Direito Alternativo. Diante deste contexto caótico da nossa realidade atual, julgo que garantir o que já foi conquistado é até um “avanço”.
Dentro desta perspectiva, aplaudo decisão de ministro do Supremo Tribunal que indeferiu um requerimento de prisão preventiva de um senador da república, obedecendo ao comando expresso da nossa Constituição Federal.
Muitos sabem que sou socialista e abomino o chamado neoliberalismo e os partidos que estão a serviço da classe empresarial. Sabem, ainda, o quanto eu repudio quase tudo o que fez o senador Aécio Neves, um dos principais responsáveis por toda esta crise política.
Por isso sou insuspeito para louvar a correta decisão do Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal. Realmente, não havia base constitucional para decretar a prisão temporária ou preventiva do referido senador, pois a Constituição Federal o proíbe expressamente, e não me parece ser juridicamente possível ao Poder Judiciário suspender o exercício de um mandato parlamentar, outorgado pelo povo, violando a independência dos poderes da república.
Existia em mim um tormentoso conflito: de um lado, a salutar paixão política e ideológica, desejando a “desgraça” deste senador. Do outro lado, a minha formação jurídica e o conhecimento do nosso sistema constitucional e processual penal.
Estou feliz, pois o ministro Marco Aurélio me liberou deste conflito. Ganhou o Estado de Direito e ganhou aquilo que também foi o escopo de minha trajetória de vida, qual seja, o respeito às regras do jogo e não o voluntarismo de alguns magistrados e membros do Ministério Público.
Revolução, podemos fazer em outras searas e ela só caberia legitimamente se fosse efetivamente popular. Hoje já não mais se pensa nisso, ao menos, a curto prazo.
Como deixou dito o supra referido ministro, este é o preço que temos de pagar em prol do Estado Democrático do Direito. Eu pago.
Evidentemente, não endossamos todos os seus argumentos e expressões usadas na sua decisão, mas sim o que resultou decidido.
Vale a pena repetir que hoje ser legalista é uma verdadeira necessidade, diante de tanto ativismo judicial. A aplicação rígida da Constituição e do Direito em geral já é um grande “avanço”, na medida em que temos um sistema de justiça conservador ou mesmo reacionário.
Ressalto, mais uma vez, que volto a considerar a antiga expressão do velho Direito Alternativo, confessando que, estrategicamente, estou tendo como premissa de meu pensar jurídico o chamado “positivismo de combate”. É melhor manter as conquistas já cristalizadas na lei do que perdê-las através de criações maquiavélicas jurisprudenciais que, invocando os mais “singulares princípios”, decidem segundo seus interesses e valores pessoais. A moral não pode afastar correta e devida aplicação do Direito.
Termino dizendo que o Supremo Tribunal Federal poderia, se os seus ministros desejassem, ter evitado o golpe parlamentar contra a ex-presidente Dilma, bem como poderia ter brecado, no nascedouro, a perseguição (lawfare) contra o ex-presidente Lula. Argumentos jurídicos não faltavam e não faltam.
Nesta medida, o mais alto Tribunal do país não deixa de ser, indiretamente, responsável pelas sequelas que poderão advir do julgamento marcado para o final deste mês, pelo Tribunal Federal da 4a. Região, cuja imparcialidade está seriamente comprometida pelos incidentes amplamente noticiados pela internet (a grande imprensa esconde tudo). Ali, a animosidade pelo ex-presidente Lula é pública e notória.
Afrânio Silva Jardim é Professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente de Direito Processual (Uerj). Procurador de Justiça (aposentado) do Ministério Público do E.R.J e membro do Coletivo por um Ministério Público Transformador (Transforma MP).
Foto: Nelson Jr./SCO/STF