Por Roberta Canheo, no Psicanalistas pela Democracia.
O encarceramento em massa é um fenômeno observado mundialmente e tem levantado reflexões acerca da necessidade de repensar o aprisionamento como principal resposta do Estado aos conflitos sociais. O Brasil é um dos maiores representantes desse processo, figurando como terceiro país com maior população prisional do mundo.
O Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) é uma organização não governamental cuja missão é promover o acesso à justiça, garantir os direitos das pessoas presas e produzir conhecimento, por meio de uma atuação constante e sistemática nas ações de atendimento direto, diálogo público e educação para a cidadania. Atualmente, o ITTC está estruturado em dois programas: Justiça sem Muros e Direitos e Gênero, que comporta os projetos Estrangeiras, Migrantes Egressas (que realizam o atendimento mais direto às mulheres no cárcere e às egressas), Banco de dados e Gênero e Drogas. O interessante dessa composição diversificada é que conseguimos visualizar, através da interação dessas diferentes equipes, a trajetória de muitas pessoas que circulam pelo cárcere, e pela justiça criminal em um sentido mais amplo.
Dessa maneira, pensando sobre a temática da mesa-ato realizada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo- violência estatal – a proposta foi colocar em debate o espaço do cárcere como uma das muitas violências institucionais que incidem sobre determinada parcela da população. Assim, a ideia é pensar o cárcere não como uma violência em separado, mas também relacionada ao acesso a políticas públicas, à territorialização e a aspectos de raça, classe e gênero. E nesse sentido, tentou-se exemplificar essa “porosidade” do cárcere com a atuação do ITTC, bem como com questões que se colocam no momento político atual brasileiro.
O encarceramento em massa é um fenômeno observado mundialmente e tem levantado reflexões acerca da necessidade de repensar o aprisionamento como principal resposta do Estado aos conflitos sociais. O Brasil é um dos maiores representantes desse processo, figurando como terceiro país com maior população prisional do mundo. Entre as razões que explicam esse fenômeno, podem ser citadas a prisão baseada essencialmente no flagrante, que reforça o caráter racista da incidência da justiça criminal, o uso excessivo da prisão provisória e o baixo acesso à defesa técnica de qualidade. Nosso país ultrapassa a cifra de 700 mil pessoas presas, sendo que entre 2000 e 2016 tivemos um aumento de 157% da população presa em geral e de 700 por cento da população feminina presa.
Apesar de essas pessoas presas serem oficialmente tuteladas pelo Estado, que em tese é responsável por suas vidas, a violência por elas sofrida é naturalizada pela sociedade e incrementada pelo punitivismo de agentes estatais, constituindo peça fundamental do funcionamento cotidiano do sistema de justiça criminal, e elemento central do repertório de práticas policiais, de guardas civis, de agentes penitenciários, e assim por diante.
Se formos um pouco além, e pensarmos a violência nas suas facetas de tortura física e psicológica, muitas outras dimensões, atores e momentos se colocam e constituem as trajetórias comuns de pessoas suspeitas, indiciadas, condenadas e egressas do sistema prisional, bem como de familiares e de quem com elas desenvolve algum vínculo afetivo. Antes, durante e depois do encarceramento, a violência marca a experiência desses sujeitos que se defrontam com as agências estatais de segurança e justiça.
Um exemplo concreto é o das audiências de custódia, nas quais as pessoas presas em flagrante são apresentadas a um juiz em um prazo de 24 horas, para averiguação de legalidade da prisão e da existência de tortura durante sua execução. Em São Paulo, a partir de uma pesquisa que estamos realizando no Fórum Criminal da Barra Funda, entre muitas outras questões, notamos que em todos os casos há a presença de policiais dentro das salas de audiência, o que por certo compromete a denúncia e apuração de casos de tortura.
Outro fator de violência psicológica é a desorientação das pessoas presas, que quando provisórias, não sabem ao menos quando serão julgadas, e quando já condenadas, dificilmente sabem o que se passa com seu processo de execução. Além disso, tempos para a progressão de pena são usualmente extrapolados, os benefícios negados (a equipe Estrangeiras averiguou, por exemplo, que o acesso ao direito à progressão de regime por mulheres migrantes presas era sistematicamente desrespeitado, sendo este direito só assegurado há poucos anos). Essa indeterminação decorre tanto do punitivismo que marca a atuação de juízes e promotores como da precariedade de serviços públicos de assistência judiciária.
A violência prisional, com seu caráter difuso, alcança mesmo quem não se encontra sob custódia do Estado. Familiares de pessoas presas, em sua maioria mulheres, são submetidas à revista vexatória antes de entrarem na prisão, obrigadas a expor suas partes íntimas a uma agente penitenciária. Apesar de leis específicas proibindo a revista vexatória (após mobilização de diversos atores da sociedade, inclusive do ITTC), ela continua existindo enquanto prática institucional.
Além disso, outras medidas arbitrárias, como a impossibilidade da visita por normas internas de vestimenta ou por falhas nos aparelhos de detector de metais, são constantemente relatadas. E são essas e esses familiares, ainda, que se tornam responsáveis pela sobrevivência das pessoas presas.
Em São Paulo, a alocação das penitenciárias em regiões distantes no interior do estado os onera ainda mais, em razão dos altos custos de realização das viagens, além dos kits por eles levados ( “jumbos”) contendo os itens básicos de alimentação e higiene para sua sobrevivência, já que não fornecidos adequadamente pelo Estado.
Isso nos foi relatado diversas vezes durante a campanha “Chega de massacres! Por um mundo sem cárceres”, realizada em março deste ano, nas filas de espera e nos pontos de encontro dos ônibus que saem para o interior.
Outra violência que incide tanto sobre a pessoa presa como sobre familiares é a derivada da atuação do Grupo de Intervenção Rápida (GIR) – a “tropa de choque” da administração penitenciária. Nas revistas de celas e pavilhões, os agentes do GIR utilizam bombas de gás, balas de borracha, cães, escudos e cassetetes, destroem pertences pessoais e afetivos, num uso desproporcional da força.
Violências de gênero contra mulheres presas e familiares, levantadas através de relatos colhidos durante a pesquisa Mulheresemprisão, divulgada no ano passado pelo ITTC, marca também a ação deste Grupo. Em fevereiro deste ano, uma audiência pública sobre o GIR, que contou com nossa participação na realização e divulgação, lotou o auditório da Defensoria Pública de familiares, que compartilhavam as torturas vivenciadas, colocando em xeque a constitucionalidade da própria existência dessa tropa de choque.
A pessoa egressa do sistema prisional, por sua vez, também continua sendo alvo privilegiado da violência institucional, nas ruas das cidades. Quem tem “passagem pelo sistema” é mais exposto a agressões físicas e morais (como a dificuldade de acesso a trabalho formal) e até à morte. Segundo relatório do International Human Rights Clinic, de Harvard, em parceria com a ONG Justiça Global divulgado em 2011, um número expressivo de vítimas com antecedentes criminais figura entre os mortos em chacinas e supostos “confrontos” com a força policial que se espalharam pelo estado de São Paulo em maio de 2006.
O relatório revela que, em alguns casos, momentos antes da morte, a “ficha criminal” da vítima foi consultada por policiais; revela que, na seleção dos possíveis mortos, os executores também se valiam de outros indícios de “passagem”, como típicas tatuagens produzidas nas prisões. Esse mesmo critério, o da “passagem”, se aplica às mortes provocadas por policiais militares em serviço. Aparece também nas narrativas dos mais diversos setores da sociedade, para se justificar quem deve viver e quem deve morrer. O excelente recém lançado documentário “Auto de Resistência” mostra o esforço da contranarrativa mobilizada principalmente pelas mães de vítimas do Estado, na tentativa de mostrar que seus filhos possuíam vínculo empregatício, ou não tinham “passagem”, como se este fosse um critério válido para se justificar essas mortes.
Se o processo de encarceramento em massa opera como estratégia para gerir pessoas consideradas indesejáveis e perigosas, é importante lembrar que a prisão não opera sozinha, mas encontra-se conectada a outras instituições e mecanismos num relacionamento recíproco. A circulação de várias pessoas (de abrigos para albergues, para a comunidade terapêutica, para a prisão) mostra que o cárcere é uma passagem num circuito mais amplo, o que ajuda a compreender o motivo pelo qual as trajetórias de várias pessoas presas são construídas no entra e sai desses estabelecimentos. São as mesmas pessoas que estão nos centros de acolhida, que são absorvidas pela Cracolândia, que habitavam o inabitável no Paissandú.
A Agenda Municipal para Justiça Criminal, lançada em 2017 pelo ITTC (que deu ensejo a um projeto de lei municipal) mostra que serviços públicos (como CAPS e CRAS) podem ser mais uma forma de controle punitivo, quando por exemplo, juízes condicionam a liberdade das pessoas processadas ao comparecimento a esses serviços.
Nesses casos, a lógica de promoção de direitos é subvertida, dando lugar a mais um mecanismo de punição. Por esse motivo, a Agenda propõe diretrizes para uma atuação municipal que se paute por outras políticas que não o fortalecimento do sistema penal como principal forma de solução dos conflitos, como por exemplo, uma política de drogas pautada pela redução de danos e a criação e ampliação de programas de trabalho para pessoas presas e egressas. É essencial, assim, que outras formas de solução de conflitos, como mediação e justiça restaurativa, sejam fomentadas.
Para finalizar, este é um ano eleitoral, e a Segurança Pública é um dos principais temas do cenário político, especialmente após a intervenção federal no Rio de Janeiro, que deflagrou a criminalização de territórios determinados. Então, a mensagem final é: sua candidata ou candidato reforça políticas de violência estatal e de controle punitivista? Em todos esses anos, de aplicação crescente dessa lógica, aumentou-se o sentimento de segurança?
Roberta Canheo possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2014) , especialização em Direito Constitucional aplicado na Instituição Damásio Educacional (2016), e mestrado em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (2017), na linha de pesquisa de Segurança Pública e Agentes Institucionais. Integra o grupo de pequisa “Sexualidade, Direito e Democracia”, atuando especialmente nas áreas de pesquisa sobre Sistema Penitenciário, violência, Segurança Pública, gênero, Feminismo Interseccional e Decolonial, técnicas de governo e Antropologia do Estado. Atualmente, é pesquisadora do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania- ITTC.