As “plataformas digitais˜ utilizam seu aparato técnico e seu capital para empregar uma população racializada, descartável e marginalizada
Lula acertou em cheio. No discurso de abertura da assembleia geral da Organização das Nações Unidas em setembro de 2023, o presidente da República afirmou que as plataformas digitais não podem abolir os direitos trabalhistas duramente conquistados pela sociedade democrática.
A fala não poderia ser mais feliz. As empresas que se autodenominam plataformas digitais são, em verdade, a ponta de lança de um movimento mais amplo de destruição e desonra dos compromissos assumidos com os trabalhadores no século passado. As chamadas “plataformas digitais˜, que promovem o discurso de que representam a modernidade e o avanço tecnológico da sociedade, na realidade utilizam seu aparato técnico e seu imenso capital para empregar uma população racializada, descartável e marginalizada na realização de serviços arcaicos, mal remunerados e completamente desprotegidos.
Basta observar os serviços prestados pelas principais empresas chamadas de “plataformas digitais” para vermos que não nenhuma novidade ou modernidade: transporte de pessoas, entrega de mercadorias e serviços domésticos. Todos sabemos que esses serviços existentes há séculos são historicamente realizados pelo mesmo grupo populacional, antes escravizado e depois liberto e continuamente precarizado. São serviços subalternos por natureza, tendo sua precariedade agravada pela forma de contratação por peça ou tarefa, sem reconhecimento da condição jurídica de empregado, ou seja, sem a consideração dos trabalhadores como sujeitos de direitos fundamentais constantes em nossa Constituição.
Não há nenhuma especificidade no trabalho controlado por meio de plataforma digital. Para além da retórica empresarial, proposital ou inadvertidamente repetida pelas mídias e até em trabalhos acadêmicos, uma plataforma digital nada mais é do que uma infraestrutura eletrônica que, associada a outra física, permite a uma empresa realizar seu negócio. Não há um ramo empresarial ou econômico específico em relação às empresas que se chamam de plataformas digitais: as principais, como dissemos, atuam no ramo de transporte de pessoas, de mercadorias ou de prestação de serviços domésticos. Mais absurda ainda é a caracterização de “trabalhador por aplicativo”. Um aplicativo nada mais é do que a interface final de comunicação e controle entre a plataforma digital da empresa e seus clientes e trabalhadores.
No acelerado processo de digitalização da sociedade, toda empresa, em um futuro bem próximo, realizará seu negócio, seja ele qual for, total ou parcialmente por meio de plataforma digital. As infraestruturas digitais e físicas já coexistem em negócios tão distintos quanto bancos, supermercados, locadoras de automóveis, imobiliárias e lojas de varejo, sem que a natureza desses negócios seja modificada de maneira mágica pela mera utilização de instrumentos tecnológicos. Seres humanos continuam sendo seres humanos na digitalização, com as mesmas necessidades, desejos e vontades.
Alguns apontam que a novidade do trabalho em plataforma estaria no pagamento por tarefa, ou na possibilidade de recusa ou escolha de trabalho. Novidade nenhuma. Os trabalhadores avulsos podem escolher as tarefas a serem realizadas, e são pagos por peça, e ainda assim são detentores de todos os direitos trabalhistas. Da mesma forma, o precário trabalho intermitente, mal desenhado, é considerado pela como forma de emprego. A inexistência de um controle de jornada é própria do teletrabalho, como previsto expressamente na lei. E mesmo assim continuam sendo empregados e com todos os direitos. Além disso, as empresas de entrega que se utilizam de plataformas digitais, por exemplo, põem em ação instrumentos que, ao contrário da retórica, impõem horários e turnos aos trabalhadores e obrigação de aceitar automaticamente toda chamada ao trabalho, sob pena de redução na oferta de trabalho. Outras “plataformas” ajuízam ações judiciais em face de empresas para impedir que forneçam aos trabalhadores mecanismos digitais que lhes permitam a escolha de trabalhos mais bem remunerados.
Assim, a fala de Lula mostra extrema lucidez: como não há especificidade nenhuma no trabalho realizado por meio de plataforma digital, o modelo por elas realizado pode ser replicado a todo e qualquer negócio, destruindo os direitos dos trabalhadores que foram conquistados a duras penas no século XX. A fala de Lula deixa a entender também que esses direitos conquistados são parte de um compromisso que sustenta a democracia. Sem o cumprimento do pacto, a democracia se esfarela. O alastramento de vitórias eleitorais de extremistas “antissistema” não deve causar nenhuma surpresa, pois amplamente apoiada por uma população desiludida e descrente devido ao constante e crescente descumprimento das promessas democráticas.
Mas Lula também errou em cheio. Não em sua fala na ONU, mas na constituição de um grupo de trabalho para discutir o trabalho em plataforma digital, como se ele tivesse alguma especificidade. A comprovação da inexistência de uma especificidade que una os trabalhadores controlados por plataforma digital é que a discussão no grupo de trabalho afunilou para a discussão das condições de trabalho e de remuneração de motoristas de transporte pessoal e de entregadores, esquecendo-se dos demais negócios realizados por outras empresas. Tudo ficou ainda mais claro na criação de negociação de forma separada entre motoristas e empresas de transporte e entregadores e empresas de delivery. O grupo de trabalho se transformou, em realidade, em uma mesa redonda de mediação de negociação coletiva , como centenas de outras que acontecem diuturnamente por todo o país em todas as categorias de trabalhadores.
Lula errou porque, além de não haver nenhuma especificidade no trabalho controlado por infraestrutura digital, o processo de uberização do trabalho vai muito além do trabalho plataformizado, atingindo profissões como manicures, motoristas de carga, médicos, enfermeiros, advogados, trabalhadores em marketing e tecnologia da informação, engenheiros, trabalhadores em construção civil, professores e muitas outras. A pejotização está sendo amplamente utilizada, e em grande parte legitimada pelo legislativo e judiciário, principalmente pelo Supremo Tribunal Federal, fazendo com que a parte excluída do âmbito do direito do trabalho, ou seja, dos direitos fundamentais previstos em nossa Constituição, seja cada vez maior em relação àquela protegida pelos direitos duramente conquistados e que são base de sustentação da nossa democracia. O trabalho intermitente foi inserido na legislação trabalhista, legitimando o modelo de contratação por demanda, e que, apesar de mal regulado, inexplicavelmente não está sendo utilizando nem discutido no trabalho por plataforma digital. Como discutir as duas coisas de forma separada?
Flerta-se com um erro ainda maior quando se anuncia que o governo quer, no âmbito do grupo de trabalho, buscar um acordo que praticamente cria uma terceira categoria de trabalhador no país, com alguns parcos direitos, esquecendo-se da lista de direitos fundamentais previstos no art. 7º de nossa Constituição, legitimando, ao final, as duas pretensões dessas empresas estrangeiras: quebrar o direito do trabalho, criando uma subcategoria de trabalhadores e impor um modelo que não considera todo o tempo à disposição como tempo de trabalho. A busca do trabalho decente, como pactuado com o governo estadunidense, passa no Brasil pelo cumprimento dos direitos fundamentais explicitados na Constituição. Trabalho em nível abaixo dos direitos fundamentais é trabalho indecente.
O trabalho controlado por plataforma digital deveria ser discutido de forma tão ampla quanto é o processo de digitalização da sociedade e não com estupefação frente à utilização de tecnologias para a realização de prestação de serviços comezinhos em nossa sociedade. Não poderia nunca estar sendo discutido como se fosse um fenômeno autônomo, desvinculado do processo de uberização geral e de esvaziamento subjetivo do direito do trabalho. O fenômeno deveria estar sendo discutido em um processo amplo de revisão da reforma trabalhista, do trabalho intermitente, da pejotização, em uma verdadeira modernização da nossa legislação, adequando-a ao projeto democrático inscrito em nossa Constituição.
Como Lula acertou em cheio em seu discurso na ONU, há tempo de rever o erro e acertar também em relação ao Grupo de Trabalho no Ministério do Trabalho, ampliando-o para abarcar uma revisão da legislação trabalhista para atingir os objetivos de nossa Constituição, que tem os direitos trabalhistas como direitos fundamentais. Deveria propor que os trabalhadores, seja qual rótulo lhe seja dado, são merecedores dos direitos fundamentais descritos na Constituição, conforme inclusive consta no caput do art. 7º: são direitos dos trabalhadores aqueles ali descritos, além de outros que visem à melhoria da sua condição social. Isso é essencial e condição para a permanência e o reforço da democracia no país. Como disse Lula na ONU, “estabilidade e segurança não serão alcançadas onde há exclusão social e desigualdade.” O crescimento da quantidade de trabalhadores desiludidos, desamparados, desenganados, desesperançados, ressentidos e abandonados só nos levará à quebra dos laços democráticos que nos unem, quem sabe de forma irreversível. A hora de reatar os laços é agora.
Rodrigo de Lacerda Carelli, Procurador do Trabalho na PRT/1, Professor da UFRJ e membro do Coletivo Transforma MP
O texto não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP