Por Antonio Claudio Linhares Araujo no site GGN.
“Tudo poderia ter mudado, sim,
Pelo trabalho que fizemos – tu e eu
Mas o dinheiro é cruel
E um vento forte levou os amigos
Para longe das conversas, dos cafés e dos abrigos
E nossa esperança de jovens não aconteceu, não, não”
(Belchior, Não Leve Flores)
Neste mês de outubro ingressamos no trigésimo ano de vigência da Constituição Federal de 1988. No entanto, o sentimento que se faz presente neste momento histórico é nada animador. É lamentável constatar que nossa constituição é alvo atualmente de violentíssimo ataque, que visa a desfiguração ou a desconstrução quase que completa de um modelo de estado inspirado pelos ideais de uma sociedade “livre, justa e democrática” e fundado na soberania, na cidadania e na dignidade da pessoa humana, que foi conquistado a duras penas pela sociedade brasileira no processo de superação dos anos de regime militar iniciado em 64.
Por esta razão, os versos acima, cantados por Belchior em 1976, soam no presente com uma triste atualidade. Na canção, com palavras recheadas de ironia, o poeta expressa o desalento da juventude de sua época com a não realização dos sonhos de construção de um mundo novo, ideias que tão profundamente marcaram a geração que vivenciou a agitação cultural dos anos 60 do século passado. De fato, as canções do poeta cearense permanecem com grande significação para a juventude de hoje justamente porque suas palavras conseguem dar vazão a esse sentimento de desencanto, de frustração com o desejo de implantação do “novo”, que, nas idas e vindas da História, sempre volta a nos rondar e atinge-nos com toda força neste momento da vida brasileira.
O que vivenciamos no Brasil é a interrupção do processo histórico de concretização do modelo de estado democrático de direito que foi soberanamente proclamado pelo povo brasileiro na Constituição de 1988. E o que se apresenta de mais trágico neste cenário é que esta interrupção foi obtida por meio de um golpe de estado que, além de se valer de formas jurídicas para pseudo-legitimar sua implementação, conta com a cooperação constante de atores do sistema jurídico e das corporações do sistema de justiça para sua continuidade. Nisto reside a maior causa de desalento para quem vivencia o momento histórico como integrante do Ministério Público, pois como entender que o sistema de justiça possa funcionar no sentido de enfraquecer o próprio estado democrático de direito? O que esperam as corporações jurídicas obter de um modelo de estado que se baseia na supressão de direitos fundamentais, especialmente os sociais, e no uso massivo da repressão policial como forma de tratar as desigualdades e os conflitos sociais?
Esta realidade angustiante que vivemos hoje choca-se fortemente com as expectativas que vinham sendo depositadas no próprio sistema de Justiça como instrumento de concretização das promessas constitucionais. Dos poderes da república, o Judiciário foi aquele que mais se beneficiou em termos de ganhos institucionais com o advento da redemocratização do país, pois um perfil de estado baseado na supremacia da dignidade humana e dos direitos fundamentais, tal como é aquele que emergiu da assembleia constituinte de 88, traz como consequência o empoderamento dos órgãos atuantes no sistema de justiça, tendo em vista que o estado democrático de direito tem como característica essencial a submissão das decisões políticas e governamentais ao controle jurisdicional, a fim de que o exercicío do poder político se mantenha nos limites impostos pela Constituição.
Neste contexto, a carta magna promulgada em 88 fortaleceu significativamente as carreiras de estado que atuam no sistema de justiça, especialmente o Ministério Público, pois este recebeu do constituinte a relevantíssima incumbência de realizar a “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, sendo por conseguinte dotado de um conjunto de prerrogativas e poderes que o colocam em pé de igualdade com a magistratura, para a consecução destes fins. No pós-88, portanto, o perfil institucional que se esperava do Ministério Público era de um órgão vocacionado a movimentar o sistema de justiça para a concretização dos direitos fundamentais, de maneira que, à figura clássica do promotor de justiça atuante no sistema penal, agregava-se agora o membro do Ministério Público com postura de proatividade no campo da afirmação de direitos historicamente negados aos grupos sociais excluídos, que constituem precisamente a parcela da população vulnerável à seletividade que é característica do próprio sistema penal.
De modo geral, pode-se dizer que não faltou empenho do Ministério Público no exercício destas novas atribuições, tendo a instituição incorporado o perfil trazido pela constituição de 88 e empreendido intensa atuação no sentido de dar concretude à defesa de direitos fundamentais e implementação de direitos sociais. O sistema de justiça passou, após a redemocratização brasileira, a ocupar um papel central nas discussões sobre políticas públicas e isto se deve em grande parte ao papel proativo do Ministério Público na defesa de direitos sociais e transindividuais. Então, o que deu errado? O que fez com que, “depois de tudo o que fizemos” (Belchior, mais uma vez), tenhamos (não só o MP, mas o sistema judiciário) adotado uma postura de abandono aos ideiais de uma sociedade que luta contra a desigualdade e a miséria e passado a colaborar com um processo antidemocrático que vem destruindo o próprio perfil de estado social desenhado na Constituição de 88?
Sem pretensões de esgotar o tema tão complexo, penso que uma tentativa de entender esta contradição histórica passa pela análise de dois pontos fundamentais: a) a falta de definição de estratégias adequadas para que o sistema de justiça possa atuar de maneira resolutiva nas demandas por políticas públicas; b) a baixa representatividade democrática do sistema de justiça, que resulta em uma postura autocêntrica, guiada pelo excesso de influência das próprias corporações de carreiras jurídicas na definição das políticas institucionais.
Quanto ao primeiro ponto, há que se considerar que a tarefa de concretizar o projeto nacional desenhado por uma constituição de natureza programática, especialmente em um país com a dimensão e os problemas históricos do Brasil, traz um desafio de enorme complexidade para o sistema de justiça. Muito embora o texto constitucional tenha sido recebido com intenso fervor nas escolas de direito, nos anos 80 do século passado, tendo se formado um cultura jurídica que estimulava a crença na possibilidade de uma revolução social capitaneada pelos operadores do direito, a dura realidade que se observou em seguida foi uma hipertrofia de demandas por direitos sociais aportando ao Judiciário sem que o sistema tenha sido capaz de oferecer uma contribuição racional e efetiva para a resolução dos problemas em uma perspectiva estrutural. Ainda hoje, as demandas por direitos sociais mais frequentes referem-se a casos individuais, de maneira que o sistema de justiça, sem poder ignorar as situações dramáticas que lhes eram noticiadas em matéria de saúde ou educação, por exemplo, foi promovendo intervenções que se direcionavam mais a questões pontuais, sem que se organizasse um modo de atuar mais racional, com ênfase na formulação de políticas públicas de modo abrangente e ampliando de modo mais efetivo o acesso da população aos direitos sociais.
Por outro lado, é perceptível que faltou um maior aprofundamento teórico das academias jurídicas no sentido de dotar os profissionais do direito do instrumental necessário à concretização das promessas constitucionais. Esta precariedade de formação está na base de diversos problemas, pois: a) prejudicou a definição de estratégias de atuação baseadas em demandas coletivas, como já destacado; b) fez com que fossem utilizados, no campo da atuação afirmativa de direitos, os métodos de atuação baseados na figura de autoridade e em poderes coercitivos, característicos do tradicional perfil do Ministério Público no campo penal, deixando de lado a possibilidade de uma postura institucional propositiva e colaborativa com os demais agentes políticos, que aliás detém legitimidade baseada em mandato popular para a realização de escolhas em matéria de políticas públicas.
Com efeito, o fenômeno da judicialização da polícia é inevitável em um estado democrático de direito, pois é de sua essência a submissão das escolhas políticas aos preceitos constitucionais e a busca incessante da efetivação dos direitos fundamentais. Entretanto, o empoderamento das corporações jurídicas, que decorre deste fenômeno, não deve jamais desprezar que em matéria de definição de politicas públicas, no mais das vezes, há um amplo espaço de decisão política. Assim, a atuação do sistema de justiça não pode encontrar fundamento em uma posição de autoridade, impondo a sua visão de satisfação do interesse público em determinada situação, pois, se há um espaço de deliberação política permitido pela constituição, a solução deve surgir do diálogo e da cooperação entre os agentes políticos.
No segundo ponto, é interessante destacar os dados de uma pesquisa concluída recentemente, coordenada pela professora Julita Lengruber (Universidade Cândido Mendes), que analisou o perfil socioeconômico e as características da atuação de integrantes de diversos ramos do Ministério Público Brasileiro. As conclusões do estudo revelam que os membros da instituição constituem um “segmento fortemente elitizado da sociedade brasileira”, destacando que o Ministério Público é composto por pessoas majoritamente brancas (77%) e oriundas de classes sociais abastadas[1]. Apesar de não dispormos de pesquisas semelhantes sobre o perfil de outras carreiras jurídicas, é bastante provável que encontremos essa forte presença de membros selecionados entre as classes sociais mais favorecidas entre juízes, defensores públicos e procuradores do estado.
Pois bem, este perfil médio do integrante das carreiras jurídicas no Brasil faz crer que talvez tenham sido um tanto exageradas as expectativas de que seria possível uma revolução social no país a partir da judicialização da vida política nacional, sentimento que esteve presente e mobilizou a atuação do Ministério Público nos últimos anos. Ora, a origem social das pessoas com poder de decisão nas corporações do sistema de justiça apresenta a mesma baixa representatividade popular que se pode constatar entre os agentes políticos que operam nos demais poderes da república, sendo que esta característica se verifica tanto nos órgãos de cúpula (tribunais, conselhos de nacionais, etc), como também no perfil médio dos membros de piso destas corporações.
A pesquisa também revela que, na escolha das linhas prioritárias de atuação, o tema que mais se destaca no Ministério Público é o “combate à corrupção”, eleito por 62% dos entrevistados como prioridade. Muito embora ainda seja considerável a presença de temas de relevância social como infãncia e juventude (47%) e meio ambiente (45%), chama atenção que o controle externo da atividade policial seja apontado como tema importante de atuação apenas para 7% dos entrevistados, enquanto que a investigação criminal figura com 49%. Ao que se percebe, é possível estabelecer uma relação entre este perfil de política de atuação e o perfil socioeconômico elitizado dos membros do Ministério Público, pois o tema de maior destaque é aquele que se traduz atualmente como fator de maior exposição midiática e empoderamento político da corporação. A escolha de temas como combate à corrupção e investigação criminal como prioridade, enquanto que controle externo da polícia é quase esquecido, indica uma séria desconexão da atuação ministerial com problemas graves que afetam intensamente as parcelas mais vulneráveis da população brasileira, pois sabe-se que a violência e a letalidade policiais são características do nosso sistema penal, apresentando impactos na alta taxa de mortes violentas entre a população pobre e negra do Brasil.
Indo além, é possível ainda fazer um entrelaçamento entre todas estas questões, pois o perfil elitizado do Ministério Público também influencia na baixa efetividade de sua atuação no campo da afirmação de direitos sociais, não só porque o tema é relegado a um plano secundário no planejamento das ações institucionais, como deixa claro os dados da pesquisa, mas também porque reforça o uso de métodos de atuação baseados na conflituosidade com os agentes políticos de outras esferas institucionais, uma vez que enfatiza-se o viés policialesco de atuação, com o uso de posturas autoritárias que buscam mais o empoderamento corporativo e a busca de ganhos orçamentários e remuneratórios[2].
Enfim, não é possível dissociar da atual gravíssima crise que perpassa o estado brasileiro o funcionamento de seu sistema de justiça, que vem assistindo de modo complacente (e até colaborativo) o desmonte do projeto de nação construído pela sociedade brasileira em 1988. Não é admissível, por exemplo, que, ao deparar-se com uma emenda constitucional que congelou os gastos sociais por 20 anos, garantindo o apossamento do orçamento público pelo sistema financeiro, a pueril resposta das corporações jurídicas seja o já desgastado discurso de que “querem enfraquecer o combate à corrupção”, ignorando que o corte de despesas atinge todos os serviços públicos, especialmente aqueles diretamente relacionados no acesso da população a direitos sociais.
Assim, é urgente enfrentar os diversos fatores que colocam as corporações jurídicas no centro da crise política brasileira. As corporações jurídicas precisam de um choque de democracia, em diversas vertentes, seja pela melhoria da forma de ingresso de seus membros, seja pela implementação de processos efetivamente democráticos em sua gestão interna, bem como pela construção de modelos de atuação que privilegiem a aproximação com os movimentos sociais, incrementando sua legitimidade democrática, pois, paradoxalmente, não haverá futuro para o sistema de justiça no horizonte de consolidação de um projeto político que está baseado na negação de direitos fundamentais e na destruição da projeto de nação inscrito na Constituição Federal de 1988.
Antonio Claudio Linhares Araujo é Promotor de Justiça, Ministério Público do Rio Grande do Norte
1 “A origem social elevada se mede pela alta escolaridade dos genitores: 60% dos pais e 47% das mães dos entrevistados tinham curso superior, enquanto no conjunto da população brasileira com 50 anos de idade ou mais, essa proporção é de 9% para homens e 8,9% para mulheres” (https://www.ucamcesec.com.br/2016/12/06/pesquisa-revela-perfil-elitizado…)
2 Neste sentido, interessante a leitura da percuciente crítica feita pelo ex-procurador da república Eugênio Aragão, em texto fundamental para entender o papel das corporações jurídicas na atual crise brasileira: “É curioso constatar que boa parte da pressão que o Ministério Público tem exercido contra a ação governamental é motivada por necessidade de afirmação de seu espaço de atuação. Num país em que os níveis de ganhos do pessoal do serviço público não obedecem a qualquer lógica de eficiência, mas correspondem – muito mais – à capacidade de cada corporação de se fazer ouvir e sentir entre os atores políticos que fixam os ganhos, as carreiras de Estado que detêm poderes de admoestar a administração e os administradores (juízes, Ministério Público, polícia, auditores fiscais e de contas e, em menor grau, a advocacia pública) têm logrado se manter no topo remuneratório. Remunera-se melhor, portanto, aqueles que representam risco para a ação do governo” (Texto integral disponível em http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/o-ministerio-publico-na-encruzilhada-%E2%80%93-1%C2%AA-parte/
Pingback: Escola brasileira de homens-bomba - Coletivo Transforma MP