Por Roberto Tardelli, no Justificando.
Vamos pular as introduções desnecessárias. Com a condenação de Lula pelo TRF-4, absurdamente (matéria ainda não votada pelo STF), decretou-se sua prisão, para início de cumprimento de pena. Esse processo acabou na vara de origem, presidida pelo juiz Sergio Moro, e também se encerrou com o acórdão condenatório e com a decisão de seguimento do caso para o STJ – recurso ordinário – e com a interposição de agravo para o STF – recurso extraordinário.
Moro e Gebran encerraram suas atividades de juízes, no processo. Terminaram seus trabalhos.
Com a prisão Lula, deu-se início à execução da pena, desta feita a cargo de uma Juíza de Direito, de outra Vara, que nada tem a ver com o juiz Sérgio Moro.
Trocando em miúdos: salvo em lugares muitos pequenos, onde um juiz tem competência plena para todas as questões, normalmente há um juízo que preside o processo de conhecimento e outro juiz que preside o processo de execução penal. É assim que deveria funcionar.
A prisão de Lula, porém, não revogou uma série de direitos que ele possui, como ex-presidente da república e o que acabou ocorrendo era aquilo que se previa: Lula acabou em ilegal e abusivo isolamento, diante da impossibilidade de conciliar seus direitos de chefe de Estado que foi com a privação de liberdade.
Ademais, Lula permanece com seus direitos políticos inteiramente preservados e, nessa condição, pode exercê-los, votar e ser votado, exatamente porque é pré-candidato à presidência da república, nas eleições de outubro próximo. Se não puder se manifestar, haverá evidente cerceamento a seu direito político. Os demais candidatos estão circulando e apresentando suas idéias ao país e Lula, ao contrário, sequer visitas pôde receber, permanecendo em uma situação física carcerária insustentável, face à sua condição pessoal.
“Essa questão foi levada à Juíza que nada fez para alterar o quadro de Lula e os advogados, que a gente em Direito chama de Impetrantes, entraram com Habeas Corpus, que é pau para essa obra, sim, na medida em que havia a notícia de grave desrespeito à liberdade ou aos direitos de liberdade do ex-presidente. Assim, todas as discussões sobre a responsabilidade criminal de Lula eram estranhas a esse pedido, que se preocupou apenas com a sua situação política e seu isolamento prisional.”
Não existe data para impetrar-se um HC, que pode ser apresentado ao Tribunal de Justiça de segunda a domingo e feriados. O HC foi impetrado na sexta-feira à noite e, por sorteio, havia dois desembargadores no plantão, foi destinado ao Desembargador Rogério Favreto. Ele estudou a situação na noite de sexta-feira e no sábado, proferindo sua decisão liminar, no domingo, por força da qual concedia a liberdade ao Presidente Lula, entendendo fortes e coesos os argumentos da defesa e afastando o parecer contrário do MP.
O mundo caiu e um festival de desinformações e informações estapafúrdias teve início, com cenas constrangedoras e, diria, abusivas e que percorrem, sim, o Código Penal.
Rogério Favreto era competente para a decisão? Sim.
A matéria era relativa ao plantão? Sim, na medida em que se noticiava um estado permanente de grave ilegalidade na execução da pena de Lula.
Era cabível HC nessa situação? Em tese, sim, porque havia uma grave afronta ao direito do preso, não contornável por outra medida.
“O Desembargador determinou a expedição de ofício ao diretor do presídio da polícia federal, em verdade, ao delegado de plantão, comunicando-lhe que Lula deveria ser posto em liberdade.”
Num passe de mágica, surge de suas férias, o juiz Sérgio Moro, que determinou ao delegado federal que não cumprisse a ordem recebida.
Sérgio Moro poderia ter feito isso? Evidentemente que não.
“Por várias razões, a primeira delas é que Moro não mantém com o processo mais nenhuma relação, sendo pessoa inteiramente estranha a esse Habeas. Não é o juiz da execução da pena, não era o que se cuida chamar de autoridade coatora e não poderia, jamais, como juiz de primeira instância, determinar a uma autoridade policial que descumprisse uma ordem emanada de um desembargador, juiz de segunda instância, regularmente expedida, no bojo de um pedido próprio e idoneamente formulado.”
Podemos dizer que Moro agiu por interesse ou satisfação pessoal e praticou ato contrário à lei; em outras palavras, cometeu, pelo menos, em tese, crime de prevaricação, previsto no Código Penal:
Art. 319 – Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
“Qual a competência de Moro para determinar ao Delegado de Polícia que não cumprisse a ordem de soltura? A mesma competência que teria Tite para impedir uma substituição na seleção da Bélgica ou da França, ligando para o árbitro do VAR para que ele desconsiderasse a substituição…”
Tudo piora para ele, Moro, se relembrarmos que ele se encontrava em gozo de férias regularmente concedidas. Isto é, ele estava fora do país – encontrava-se em Portugal – e fora da função judicante, ele jamais poderia ter dado a ordem que deu e que revelou sua completa perda de serenidade para julgar qualquer outra causa que tenha Lula como acusado.
Moro deixou de ser juiz e passou a ser perseguidor de Lula e seu comportamento nos permite dizer que ele é, efetivamente, obrigado a declarar-se impedido (suspeito) para processar Luiz Inácio Lula da Silva, porque desfez-se de qualquer sentido de imparcialidade.
Moro ficou nu.
No trem que se descarrilhava na curva, um outro componente completamente maluco se agregou. Rompendo a cena, o Desembargador Relator do processo de Lula, João Pedro Gebran Neto, dizendo-se ser ele a verdadeira e única fonte de emanação de Direito, também ele sem se dar conta que não detinha jurisdição durante o plantão que desenrolaria até a segunda feira, às 11:00, veste sua beca de super-juiz e, de ofício, sem ser provocado, determina ele mesmo ao atônito Delegado Federal, que se abstivesse de cumprir o alvará (que é uma ordem) para soltar Lula.
“Lula ficou solto, mas permaneceu preso, ou continuou preso, permanecendo solto. Um caos. Um hospício jurídico, acompanhado pelo país como se fosse uma disputa de pênaltis na Copa.”
O Desembargador Gebran poderia ter dado a ordem que deu? Não, porque ele não detinha nenhuma competência para substituir-se ao desembargador plantonista.
No plantão, há regras de competência estáveis. Suponha que um desembargador arrotando a macarronada do almoço apareça por lá, na base do “deixa que eu chuto” e comece a decidir… Não é assim.
“Havia maneiras processualmente corretas até de revogar a ordem emanada pelo desembargador Favreto, cujos trâmites se dariam no interior do próprio TRF-4, através de recurso próprio da parte contrária, o esquecido Ministério Público, primo pobre nessa briga.”
Sim, o MPF poderia recorrer, através de um agravo interno, que levaria o inconformismo da soltura ao conhecimento da Turma processante, que poderia manter ou revogar a liminar concedida. Vá lá que o próprio Gebran o fizesse, mas depois e apenas quando pudesse fazê-lo, de jeito nenhum da forma truculenta que fez.
Nunca vi alguém dar um cavalo de pau desses para fazer descumprir uma ordem, repita-se, regularmente dada. Muito mais do que um salto twist carpado, o que houve foi um vale-tudo, de que não se tem notícias. Não sou menino e carrego algumas dezenas de milhares de processos criminais nas costas e nunca, mas nunca, vi uma rave processual dessa animação. Tenho certeza que ninguém viu. Nossos limites estão todos revogados no que toca à maluquice jurídica, que nos mostrou que uma Corte pode agir histericamente.
Endurecendo o jogo, porém, o Desembargador Favreto chuta de bico e, reitera pela terceira vez, a ordem de soltura, assinalando uma hora para seu imediato cumprimento.
Uma hora em juridiquês, todavia, tem duzentos, trezentos minutos. A ordem é dada e segue para que funcionários operacionais trabalhem para que ela chegue a seu destinatário, o delegado federal. Carimba daqui, carimba de lá, cafezinho, calor, abre a janela, fecha a janela, computador está lento, essa uma hora espichou e…
Novo terremoto. Cachorros despencando da mudança, com o novo personagem, que decide chamar para si o protagonismo do filme.
“O Presidente do TRF-4, Desembargador Thompson Flores, vestiu sua capa preta e tirou sua espada de Jedi. Na guerra de ofícios ao Delegado Federal, entre Gebran e Favreto, criou um caso raro de conflito positivo de competência, curiosa hipótese em que dois desembargadores se apresentavam como competentes para decidir de forma diversa sobre o mesmo caso, ao mesmo tempo.”
Contudo, em verdade nunca houve conflito algum pela singela razão de estar o Desembargador Gebran fora do campo de jogo e, pois, sem direito a tocar na bola. Em outras palavras, o único ali jurisdicionalmente capacitado para decidir era o Desembargador Favreto. Se apenas um poderia atuar, o outro era o sapo querendo estragar a festa – o que conseguiu – mas nela entrando de penetra.
Vai daqui, vai dali, Thompson Flores determina, em novo ofício, que a ordem deve ser ignorada, sem revogá-la expressamente, algo que não poderia mesmo fazer, afirmando somente que o caso seria devolvido ao Desembargador Gebran.
“Foi a primeira vez em minha vida que me deparei com uma liminar, com efeito suspensivo, concedido por juiz de igual jurisdição àquele que concedeu a ordem de soltura. Lula, assim, ficou preso, porque o alvará de soltura estava suspenso, não obstante ainda válida a ordem que o resultou. Uma coisa que desafia a ficção.”
Na loucura geral instaladora, na segunda-feira tivemos a cereja do bolo: o Desembargador Gebran anulou todos os atos de seu colega de Tribunal.
QUE TIRO FOI ESSE?
O Desembargador Gebran anulou tanto tanto e tudo, mas tanto e tão furiosamente, que anulou uma das ordens de Favreto, no sentido de dar ciência dos fatos ao CNJ e à Corregedoria da Justiça da esdrúxula intervenção de Sérgio Moro, que, lá de Trás-Os-Montes enquadrou o delegado federal, a segunda instância, o desembargador prolator da decisão e quem mais passasse na frente. Tomado da ira regeneradora, determinou que não se levasse ao conhecimento de ninguém a vexaminosa atuação do Juiz Moro.
Como se isso fosse necessário.
Nesse surto midiático, com juiz e desembargadores disputando o cargo de JUIZ MARVEL, quem perdeu foi o Estado Democrático de Direito, quem perdeu foi a democracia, quem perdeu foi a população que percebeu que a Justiça cedeu a impulsos narcísicos.
Quando a vaidade se sobrepõe, todos perdemos. Favreto mostrou ser independente e mostrou ser um juiz exemplar porque não se intimidou, não se curvou às pressões e tinha competência para decidir porque estava no lugar certo e na hora certa. Sua decisão foi eminentemente jurisdicional e ele também foi alvo de um ataque extra-jurisdicional de que nunca tive notícia.
“Colunistas, blogueiros e jornalistas da extrema-direita ultrapassaram todos os limites da insanidade e até telefones pessoais foram divulgados nas redes sociais. A Globo o associou criminosamente ao PT, sem se dar conta de que o próprio Moro desfila pelo mundo a tiracolo com Dória e outros expoentes do PSDB, que o Ministro Alexandre de Moraes, que decidiu contrariamente à soltura de Lula, era soldado de primeiro time do PSDB, ocupando vários cargos em gestões tucanas, sem noticiar que Nelson Jobim, ex-Ministro do STF, foi presidente do PMDB, e tantos mais, sendo absolutamente certo que Favreto nunca teve questionadas sua honestidade e probidade e se tornou vítima desses lobos que vagam no mundo virtual e na grande mídia.”
Um grande juiz a ser preservado e defendido por todos nós.
Roberto Tardelli é membro do Transforma MP. Advogado e Procurador de Justiça Aposentado.