Por Elisiane Santos
O carnaval de 2019 marca, entre tantas formas de resistência, a luta das mulheres. Personificadas em Marielle, tantas de nós soltaram um grito preso na garganta, que clama por igualdade e justiça. Reviveram a história negra que tentam apagar, mas que resiste e, consagrada em samba, marca uma apoteose que não mais retrocederá.
Ocupar os espaços nas ruas, nas universidades, nos sindicatos, nas associações de bairro, no Legislativo, no Executivo, no Judiciário é um feito deste tempo que nos une, fortalece e aponta para uma nova era, um novo começo, a reconexão de uma luta feminista por igualdade e justiça, que exige novas formas de reflexão, ação e enfrentamento aos problemas atuais.
No Brasil, a violência de gênero avassala e se instala a cada minuto nas nossas faces. A taxa de feminicídios é a quinta maior do mundo (OMS, 2015). A cada duas horas uma mulher é assassinada. Vivenciamos nas últimas semanas cenários de agressões bárbaras contra mulheres, fundadas em comportamentos machistas, violentos e perversos, que – se já eram persistentes -, são ainda mais estimulados pela onda conservadora, ultraliberal, instalada no País, que legitima o excesso, o emprego da força, a violência contra mulheres, pretos, pobres, crianças, pessoas vulneráveis.
Além da desigualdade que persiste no mercado de trabalho – mulheres negras estão massivamente no trabalho informal, recebem rendimento correspondente a 35% do rendimento dos homens brancos, mulheres ocupam 37% de cargos de gerência e diretoria, entre outros dados estatísticos – a Reforma Trabalhista (Lei n° 13.467/2017) agrava a condição de vida da mulher trabalhadora, com o aumento do trabalho informal, desprotegido, a fragilidade dos vínculos trabalhistas e a proteção social.
A Reforma Previdenciária, em discussão, desrespeita a condição de trabalho de categorias diferenciadas, como a dos professores, composta massivamente por mulheres, elevando a idade mínima, impondo às mulheres, já afetadas com duplas e triplas jornadas, uma penalização inaceitável.
Praticamente não há mulheres nos espaços de decisão no atual governo e ainda é pequena a participação da mulher na política. Apesar da legislação que garante a presença feminina na política, ocupamos a 152a posição em pesquisa realizada sobre presença feminina parlamentar, num universo de 190 países. A par disso, tivemos uma Presidenta retirada do cargo através de um processo de impeachment questionável, que, entre outros interesses, revelou a misoginia no cenário político e na sociedade, com visíveis ataques à condição de mulher da representante eleita. Um abalo à democracia, com reflexos diretos na participação política e nas políticas públicas para as mulheres, inclusive com a extinção da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, então ligada à Secretaria de Governo da Presidência da República, atualmente incorporada ao novo Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos, sem a indispensável participação e representatividade da sociedade.
Por outro lado, é fato que as redes de mulheres, e de mulheres pretas, se fortalecem social, psicológica e economicamente. Isso é revolucionário. São mulheres que compartilham dores, alegrias, sonhos, responsabilidades, trabalho. Ajudam-se mutuamente, resistem e se fortalecem. Constroem o carnaval. Constroem candidaturas legislativas. Femininas. Feministas. Constroem mecanismos de sobrevivência. Compartilham afetos.
E afeto é potência, exalta o bloco afro Ilu Obá de Mim, em uma das letras do Carnaval, que esse ano teve como tema “Vozes Negras – Tempos de Alakan” (Alakan, em ioruba, significa alianças). É transformação. É luta. É o caminho para a grande mudança.
Uma mudança que leve em consideração o que cada uma de nós representa e que tenha foco na história. A nossa história silenciada, agora contada e ressignificada, de forma bela e potente no desfile da Mangueira, campeã do carnaval. Essas duas grandes questões – quem somos e de onde viemos – trazidas à reflexão, na rua, pelas mulheres, pela tradição, pelo samba, pelos orixás, pela ancestralidade e que podem movimentar multidões. Através delas, a consciência de muitas mulheres floresce e se faz presente nas suas diferentes formas de ajuda mútua e sobrevivência.
É nesse contexto que a consciência de classe mais do que nunca se faz necessária no fortalecimento da luta das mulheres, da luta por democracia, da luta por igualdade e Justiça. Depende de nós, mulheres, a reação ao sistema perverso que se alastra no mundo, um sistema individualista, de violências, de exclusão. Somos resistência. A desigualdade de gênero tem raízes sociais e culturais, mas se assenta sobretudo em questões raciais e de classe. O sistema capitalista sempre se beneficiou da exploração da mão de obra feminina. O 8 de março tem origem na luta das mulheres por melhores condições de trabalho. O sistema escravocrata perpetuou a condição de opressão da mulher negra, com reflexos até os dias atuais. Às mulheres negras estão reservados os postos mais precarizados, o serviço doméstico, abrangendo inclusive crianças e adolescentes, meninas negras vítimas de trabalho infantil. Mulheres negras mestiças sofrem com o estereótipo de hiperssexualização, solidão nos relacionamentos, maior vulnerabilidade às violências de gênero. A emancipação, portanto, da mulher negra é revolução.
Ângela Davis, filósofa, ativista, referência mundial na luta feminista e antirracista, afirma que quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela. É esse movimento que se intensifica nesse cenário de retrocessos. É nessa curva da história que nós, mulheres, precisamos estar firmes, organizadas, conscientes, empoderadas, potentes, para que nossas vozes, que são ecos de muitas vozes reverberem em todos os espaços, na defesa de direitos, para que nenhuma violência seja consentida, para que não se aceite nenhum direito a menos. Para que não sejamos interrompidas. Para que outras Marielles possam ser tudo o que são e representam.
Nós, mulheres, somos revolução.
Elisiane Santos é Procuradora do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP. Vice Coordenadora de Combate à Discriminação no MPT em São Paulo. Coordenadora do Fórum Paulista de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Especialista em Direito do Trabalho pela Fundação Faculdade de Direito da UFBA e Mestra em Filosofia pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP.