Publicado no site do MPF/PFDC.
As alterações na Política Nacional sobre Drogas aprovadas pelo Decreto 9.761/2019 implicam tanto prejuízos aos usuários quanto o financiamento com recursos públicos de estabelecimentos com características asilares que violam direitos humanos. Essa foi uma das conclusões apresentadas por especialistas durante audiência pública na Câmara dos Deputados realizada na terça-feira (21).
A atividade – promovida pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) – colocou em debate também a recente aprovação, pelo Senado Federal, do Projeto de Lei da Câmara (PLC) n° 37/2013, que dispõe sobre Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e que segue para sanção presidencial. O encontro reuniu parlamentares, organizações da sociedade civil, representantes do governo federal, especialistas e usuários de serviços da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), além da procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat.
Para a procuradora, todas as discussões a respeito das políticas de saúde mental, álcool e outras drogas devem ser feitas considerando a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo país e que tenta organizar a vida social a partir das noções de inclusão e participação.
Entre os retrocessos acarretados pelo Decreto 9.761/2019 e o PLC 37/2013, Deborah Duprat destacou a inconstitucionalidade da internação involuntária. “Não há possibilidade de se obrigar alguém ao tratamento”, defendeu a procuradora ao citar o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que pessoas adultas têm a capacidade e o direito de escolha acerca dos tratamentos de saúde aos quais desejam se submeter. No caso de internação de pessoas com menos de 18 anos, a PFDC ponderou o fato de o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considerar este período da vida uma fase peculiar de desenvolvimento, durante a qual devem ser adotadas medidas de cuidado em ambientes que promovam a convivência familiar e comunitária no território em que estão inseridos.
A procuradora apontou, ainda, os riscos de superlotação carcerária em decorrência do excesso de criminalização nos casos de infrações praticadas por organizações criminosas, ressaltando que o direito penal, a partir da Constituição Federal de 1988, passou a ter caráter residual para garantir os direitos fundamentais e impedir que regras de controle social sejam adotadas indiscriminadamente.
Em sua avaliação, as alterações na Política Nacional sobre Drogas privilegiam o atendimento em meio fechado e regulamentam o financiamento de comunidades terapêuticas em detrimento do investimento que deveria contemplar os serviços abertos da Raps, como os Centros de Atenção Psicossocial. Nesse sentido, a representante do Ministério Público Federal destacou que o Estado brasileiro jamais reconheceu hospitais psiquiátricos e manicômios como espaços de graves violações de direitos humanos, o que inviabilizou qualquer tipo de reparação, punição dos culpados ou mesmo de estabelecimento de uma memória capaz de evitar a repetição de tais violências.
Retrocessos – Entre as críticas relacionadas ao Decreto 9.761/2019 e ao PLC 37/2013, os participantes apontaram o recuo das estratégias de redução de danos e o crescimento da tendência de completa abstinência. Segundo Dandara Tinoco, do Instituto Igarapé, essas medidas têm gerado mais prejuízos que benefícios para a sociedade. Na mesma linha, o representante da Plataforma Brasileira de políticas de Drogas, João Telésforo, acrescentou que a medida segue na contramão da avaliação da comunidade científica brasileira, de movimentos sociais e de comunidades de usuários, contrariando, ainda, as orientações da Organização das Nações Unidas (ONU) acerca do tema.
Raul Santiago da Silva, cofundador dos coletivos Papo Reto e Movimentos, chamou a atenção para a perspectiva do racismo que atinge jovens nos morros e comunidades periféricas do país. Para quem vive nas periferias, afirmou, a política de drogas chega de forma violenta justificada pela ideia de combate ao tráfico sem qualquer discussão ou fortalecimento dos aparelhos públicos.
Instituições asilares – O representante da Rede Nacional da Luta Antimanicomial (Renila), Lucio Costa, abordou – entre outras questões – as violações de direitos que ocorrem em instituições de caráter asilar. Mencionou, nesse sentido, os problemas identificados durante inspeção nacional em comunidades terapêuticas nas cinco regiões do Brasil. A ação ocorreu em 2017, coordenada pela PFDC/MPF em conjunto com o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Durante as visitas, foram constatados uso de castigos físicos, violação à liberdade religiosa, trabalhos forçados e sem remuneração, bem como conduções à força para a internação. Além disso, ressaltou Lucio, também houve violações referentes à privação de liberdade, à restrição aos meios de comunicação, à retenção de documentos dos pacientes e à falta de laudos médicos ou de notificação do Ministério Público que justificassem a internação de alguns dos internos.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil