Militarismo moral

Por Daniel Balan Zappia

O brasileiro enfrenta muitas batalhas diárias, seja para arranjar um emprego, como seus 12,9 milhões de concidadãos[1], seja para não ser assaltado, ou até morto, num universo superior a 63 mil homicídios por ano[2].

Ao se buscar as causas para uma situação tão calamitosa, as análises acadêmicas tradicionalmente abordariam a extrema desigualdade econômica brasileira, enraizada numa escravidão tardiamente abolida, quando comparada aos demais países do cone sul.

Contudo, seria uma operação assaz complexa, sem atrativos para um contexto no qual a população é majoritariamente informada por manchetes fugazes, compartilhadas à exaustão por grupos de mensagens eletrônicas, num contexto de desregulamentação da imprensa e desprestígio do jornalismo profissional.

Eis a receita para uma sociedade à espera da eclosão da democracia plena, enquanto é refém de um sistema político viciado, herdado do último ciclo de ditadura cívico-militar.

Em contraste a esse quadro, a burocracia estatal avançou sob o novo marco administrativista da Constituição Federal de 1988, amparada num cipoal de instituições públicas, regidas por parâmetros de transparência, ampliados gradualmente.

Como resultado desse processo, num espaço de duas décadas, as relações pouco republicanas entre o empresariado e os grupos políticos por ele financiados se tornaram uma rotina no noticiário dos veículos da grande imprensa, notadamente em razão da eficiente fiscalização promovida por instituições públicas de controle da atividade estatal.

Não demorou muito para que o crescente número de operações de investigação da corrupção nas altas instâncias dos Poderes Executivo e Legislativo, alvo de ostensiva mediatização, fosse interpretado como um indicativo de que o incipiente processo de redemocratização, sob o protagonismo dos partidos políticos, era um indutor da imoralidade no Estado.

Em outras palavras, a imaturidade política de uma parcela da sociedade brasileira contribuiu para insuflar um discurso reducionista de forte conteúdo moral, a ponto de eleger como um lugar-comum para todos os males do país, da violência à fome: a malversação do dinheiro público pela classe política.

Nesse contexto, não se revelava suficiente a mera atuação burocrática de funcionários públicos na fiscalização da atividade estatal, quando, segundo tal interpretação enviesada, o que está em jogo é a consciência moral de toda uma nação.

Logo, o cidadão, tão acostumado a enfrentar batalhas diárias por renda e segurança, não demorou muito para ser convocado a tomar parte na mais nova conflagração em curso: o combate à corrupção; agora insuflado por uma campanha propalada por diversas instituições públicas de controle, sob o protagonismo da atuação em sede criminal.

Partindo-se dessa lógica simplista, acaso a sociedade se sagrasse vitoriosa no embate então proposto, o Brasil será então purificado de todos os seus vícios históricos, lançando-se numa virtuosa espiral de desenvolvimento.

Ocorre que num ambiente dado a máximas morais, não faltam argumentos para desassociar de sua condição de cidadão, todos os investigados, acusados e até condenados por corrupção: agora são inimigos da sociedade, ou melhor dizendo, uma ameaça para a ordem jurídica e para as instituições que a compõe.

Estão criadas as condições para a aplicação dos postulados do “direito penal do inimigo”, teoria penalista idealizada por Günther Jakobs[3] que contempla um tratamento especial para o referido “delinquente inimigo” como, por exemplo: celeridade na tramitação do processo, flexibilização de garantias processuais, e o recrudescimento de medidas cautelares[4] associadas à periculosidade do investigado/réu pelo que ele representa.

Dessa forma, a mera indignação com a corrupção se convolou numa postura beligerante, cujo propósito passou a ser a higienização de todo o sistema político, ainda que se ignorem as estruturas de mercado perniciosas a tais práticas ilícitas, bem como a sua relação com a desigualdade social.

Ou seja, analisar a corrupção apenas pela perspectiva do Estado e de seu aparelhamento pelos partidos políticos consiste num grande equívoco. O estudo crítico da “Teoria da Corrupção”[5] indica que a malservação dos recursos públicos consiste num fenômeno  multifacetado que transcende agremiações políticas e classes sociais

Segundo Fernando Jiménez Sanches[6] muitos países fracassavam em atingir o “círculo virtuoso da probidade”, pois eram dotados de sociedades que careciam dos seguintes fatores – em maior ou menor grau: confiança social generalizada, igualdade social e percepção do funcionamento efetivo e imparcial das instituições de governo.

Não tardou para que a campanha institucional de “combate à corrupção”, sob uma matriz majoritariamente punitivista, revelasse sua ineficiência em promover uma cultura de probidade no Estado, contribuindo para um quadro de frustração generalizada e descrença na burocracia estatal por uma parcela significativa da população.

Ademais, a opção, por alguns membros das referidas instituições, em adotar um discurso beligerante, amparado em máximas morais, ao lidar com o fenômeno da corrupção, reavivou elementos autoritários da história política brasileira recente.

Convém abrir um novo parêntese: na esteira dessa cruzada moralizante, são ostensivamente empregados os termos “combates” e “batalhas”, em meio a outras expressões que transmitem a ideia de uma conflagração, que se associam ao vocabulário das instituições militares.

Aliás, o regime republicano, cujos valores são comumente invocados por aqueles que se apresentam como arautos ideológicos das operações de combate à corrupção, foi estabelecido após um golpe de estado promovido pelo exército, a pretexto de abolir práticas imorais da monarquia; então enfraquecida pelo descontentamento dos proprietários rurais com a abolição da escravidão.

Nas décadas seguintes, as instituições militares não abriram mão de seu protagonismo no sistema político, ao se apregoarem como tutores de um eleitorado por elas reputado como despreparado para assumir o comando da nação e sob o risco permanente de se encantar pelo discurso comunista, no complexo xadrez político da guerra fria.

Durante as situações de crise, em alguns casos incitadas pelo generalato, lá estavam as tropas conspirando para “restabelecer a ordem”, mas também para higienizar o ambiente político[7], recorrendo, para tanto, à tortura e a execução de seus opositores; inclusive à margem do sistema legal de repressão que as instituições militares instituíram, iniciando-se pelo Decreto-lei n 314, de 13/03/1967, na esteira de diversos atos institucionais.

Porém, nunca houve um ajuste de contas entre civis e militares, mesmo após o ocaso das ditaduras que assombraram o último século da história política brasileira, haja vista os diminutos poderes das “comissões da verdade” instituídas a nível federal e estadual.

Há que se reconhecer que a ausência de uma apuração sistemática dos excessos praticados por órgãos da burocracia estatal, com o propósito de responsabilizar os torturadores e seus colaboradores, inclusive financiadores, contribuiu para alimentar a controvérsia quanto a real dimensão do prejuízo legado pelos regimes de exceção militarizados no Brasil para a legitimidade da nova república oriunda da Constituição Federal de 1988.

Assim, as forças armadas remanescem como um bastião da moralidade, prontas para assumir o protagonismo na mais nova crise política fomentada no Brasil.

E ainda contam com o clamor por “lei e ordem”, sob um viés autoritário, de 30% do eleitorado, aproximadamente, haja vista sua desilusão com o regime democrático atualmente vigente no Brasil. Tal orientação política se relaciona a um certo saudosismo com o regime de exceção iniciado em 1964, facilmente explicável pela pouca visibilidade da corrupção dos altos escalões do poder, pois tampouco era investigada à época; ao final, acabou anistiada.

De fato, arquitetou-se um oportuno contexto belicista para as tropas: há mais um combate a ser travado – contra a corrupção – e também “delinquentes inimigos”, cuja cidadania não é passível de reconhecimento, haja vista a sua “presumida periculosidade”. Ao menor sinal de fraqueza das instituições de controle burocráticas, na execução de seu programa beligerante, o exército estará pronto para intervir e também cominar medidas à margem do sistema legal.

E justamente nesse ambiente de paz armada, são promovidas eleições gerais cujo desfecho é incerto, haja vista o grau de polarização do discurso político, insuflado por recorrentes recados de militares de alta patente, ora endereçado a mais alta corte do país, quando de um julgamento polêmico, ora destinado ao eleitorado, ao se aventar a possibilidade de impugnar o resultado do sufrágio em curso.

Ou seja, o Brasil flerta perigosamente com os tanques e as armas, em decorrência do descrédito do processo eleitoral por setores da sociedade, insuflado por um diagnóstico igualmente arbitrário da real dimensão do fenômeno da corrupção, propalado por diversas instituições de controle da burocracia estatal.

Daniel Balan Zappia é Promotor de Justiça no Ministério Público de Mato Grosso e integrante do Transforma MP.


[1]     Conforme dados divulgados pelo IBGE em 30/09/2018.

[2]     Conforme Atlas da Violência 2018, divulgado pelo Ministério da Saúde.

[3]     Gunther Jakobs e Manuel Meliá Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2005.

[4]     Uma das medidas mais polêmicas consistiu na implementação de uma espécie de “condução coercitiva por antecipação”, mediante a qual o investigado era, ao mesmo tempo que notificado de seu interrogatório, acompanhado pela polícia até o local da prática do ato. Após anos de ostensiva utilização nas operações de combate à corrupção, a desconformidade de tal prática com preceito fundamental da Constituição Federal foi enfim declarada pelo Supremo Tribunal de Federal, no bojo das APF nº 395 e 444.

[5]     Derivada da “Teoria do Agente” de Robert Klitgaard (1988) – cujo âmbito de análise compreendia o meio empresarial – para a qual a Corrupção consistiria no monopólio da decisão, dotada de maior discricionariedade em meio a carência de transparência (prestação de contas). Cunhou a seguinte fórmula, em inglês: C = M + D – A.

[6]       “A Armadilha Política: A corrupção como Problema de Ação Coletiva” – Tradução de Affonso Ghizzo Neto 23/04/2017: http://emporiododireito.com.br/leitura/a-armadilha-politica-a-corrupcao-como-problema-de-acao-coletiva

[7]     No Ato Institucional nº 01, de 09/04/1964, dentre os objetivos do golpe de estado, foi elencada a reconstrução moral do Brasil.

Fonte da imagem que ilustra o artigo: https://super.abril.com.br/comportamento/as-raizes-da-corrupcao-e-como-combate-la/

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