Michele Alexander: a guerra às drogas é a nova escravidão

Por Gustavo Roberto Costa, na Carta Capital.

O sociólogo Jessé Souza, em sua magistral obra “A elite do atraso: da escravidão à lava-jato”, demonstra como a sociedade brasileira se formou de maneira independente de sua herança ibérica. Diversamente de Portugal, o que moldou a história social dos últimos quinhentos anos no Brasil foi a escravidão. O escárnio, o ódio e a falta de humanidade historicamente dispensados aos escravos permitiu que tivéssemos – até o dias atuais – uma sociedade em que a um grupo determinado de pessoas são reservadas apenas a exclusão, a pobreza, a prisão e a morte[1].

A escravidão, que também durou séculos nos Estados Unidos da América, foi igualmente o regime responsável pela criação de uma “sociedade de castas” naquele país. É o que defende Michele Alexander, na imperdível obra “A nova segregação: racismo e encarceramento em massa[2]. Alexander faz um instigante paralelo entre a escravidão norte-americana, a era Jim Crow (o regime de segregação racial que durou de 1876 a 1965) e a atual política de encarceramento em massa – cujo mote principal é a “guerra às drogas” – como a continuidade de sistemas baseados na mesma lógica: o racismo histórico e estrutural arraigado no país.

O racismo, para a autora, é altamente adaptável, notadamente quanto à facilidade de se esconder sob a forma de uma pretensa “neutralidade racial” (colorblindness). A neutralidade, prossegue, permite que se adotem práticas tão racistas quanto aquelas do regime de segregação. Políticas “neutras” racialmente, assim, têm efeitos perversos e muito mais danosos sobre a população negra.

O principal sistema de controle utilizado para a política segregacionista é a justiça penal. A política criminal racista dos EUA pode ser demonstrada não só no encarceramento, mas também no controle que se faz após a libertação dos condenados, quando uma série de “leis, regras, políticas e costumes” rege a vida dos rotulados como criminosos, fazendo-os entrar num submundo de discriminação e exclusão social[3].

Uma vaga de emprego, o recebimento de benefícios sociais, a participação no tribunal do júri e até o direito ao voto são eternamente negados àqueles que possuem uma “condenação criminal”. Ocorre que, de acordo com a pesquisa, os negros são os mais abordados nas ruas, suas casas (situadas nos guetos) são as mais invadidas pela polícia, são os mais coagidos a aceitar acordos criminais para cumprimentos de severas penas de prisão sob ameaça de penas ainda mais altas (às vezes sem um advogado), tudo com graves e repugnantes violações a direitos e garantias legais.

Os números demonstram que os negros e latinos sofrem desproporcionalmente os efeitos devastadores da guerra às drogas (são três quartos dos presos por esse tipo de crime[4]), mas as instâncias judiciais, na imensa maioria dos casos, negam-se a reconhecer as práticas racistas do sistema. A Suprema Corte já negou a discriminação racial em casos nos quais estudos demonstraram uma taxa grande de recusa imotivada de negros no júri[5] e acordos penais que impunham penas muito mais altas a negros que a brancos em situações idênticas[6].

Ao abordar a “nova segregação”, Alexander alerta para o fato de que os EUA são o primeiro lugar no mundo no que se refere ao encarceramento per capita: enquanto detém 5% da população mundial, abriga 25% dos presos do planeta[7]. Os milhões de pessoas presas naquele país, cuja maioria é pobre e não branca, foram mandadas para as prisões em razão “de uma ‘guerra às drogas’ racialmente enviesada e de um movimento de endurecimento que destruiu famílias e dizimou comunidades inteiras”[8].

A autora destaca ainda que o número de pessoas presas por delitos relacionados a drogas aumentou de cerca de 50 mil, em 1980, para algo próximo a 500 mil atualmente – “mais do que o número de pessoas que a Europa ocidental prende por todos os crimes” –, um aumento de mais de 1.000%[9]. Já em 2008, os EUA mantinham 2,3 milhões de pessoas presas e impressionantes 5,1 milhões sob “supervisão correcional”[10].

Alexander comprova sua hipótese de que políticas afirmativas, as quais permitem que alguns negros ocupem postos importantes em empresas e na atividade estatal e até mesmo o fato de os EUA terem tido um presidente negro, “são essenciais para manutenção de um sistema de castas na era da neutralidade racial”. Fazem parecer que a raça não é mais relevante. Só que basta ver as taxas de negros encarcerados, desempregados e vivendo na pobreza para se concluir o contrário[11].

Basta de “subornos raciais”. A luta pelo fim das castas – tanto nos EUA como no Brasil – deve ser radicalizada, para que todos e não apenas alguns negros e algumas negras possam deixar esse sistema injusto e excludente.

E a primeira e urgente providência é o fim da “guerra contra os negros” (às drogas).

Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD. Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM


[1] SOUZA, Jesse. A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017, p. 77-78.

[2] ALEXANDER, Michele. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. Trad. Pedro Davoglio; ver. Silvio Luiz de Almeida – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2017.

[4] Ibid, p. 159.

[5] Ibid, p. 186.

[6] Ibid, p. 200.

[7] Ibid, p. 20.

[8] Ibid.

[9] Ibid, p. 110.

[10] Ibid, p. 151.

[11] Ibid, p. 339.

Imagem: https://todonatalense.com.br/voce-conhece-a-historia-dos-escravos-negros-no-rio-grande-do-norte/

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