Por Daniela Campos de Abreu Serra, na CartaCapital.
Nem nos meus piores pesadelos, em uma simples “canetada” o Presidente extinguiria toda complexa estrutura construída ao longo de 30 anos de democracia contínua até o Golpe de 2016, quando assinou o Decreto 9759/2019 e extinguiu os conselhos participativos da população.
Não dá para enxergar a realidade sem compreender que esse é o momento histórico em que se acentuou a retomada do poder pela elite dominante neoliberal que há passos largos têm entregado nossas riquezas para o capital internacional, em especial norte americano, impondo retrocessos imensuráveis nas mais diversas áreas das políticas públicas, sobretudo no tripé do mínimo existencial da educação, saúde e assistência social, embrutecendo o controle social da pobreza através da força policial e do super encarceramento, mantendo o país na posição de um dos mais desiguais do mundo.
A desigualdade social no Brasil é tão cruel que ignorada pelos próprios oprimidos que se reconhecem como inferiores com capacidade intelectual aquém a de seus “superiores”, não reconhecendo as razões históricas que lhes impuseram falta de condições mínimas de sobrevivência e desenvolvimento saudável que lhes são impostas por um sistema de acumulação dominado por uma elite cruel, violenta e conservadora na manutenção de seus privilégios.
Talvez em 2014, quando vivenciávamos os melhores índices de erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades regionais e sociais da História do Brasil, e após tantas conferências, convenções e fóruns que fomentaram o fortalecimento da participação da sociedade civil na gestão da Administração Pública nos mais diversos níveis e segmentos, quando nem se cogitava impeachment, deveríamos ter refletido melhor e reivindicado que a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS) fossem instituídos por lei, não pelo Decreto nº 8.243, de 23 de maio de 2014.
Matéria de tamanha importância para o regime democrático, principiologicamente arranjado no texto constitucional e pormenorizado em diversas normas jurídicas dos mais variados níveis considerando a clássica pirâmide de Kelsen, não poderia ter sido instituída por norma tão frágil do ponto de vista de sua alteração.
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O Artigo 1º do Decreto 8243/2014 estabelece que “fica instituída a Política Nacional de Participação Social (PNPS), com o objetivo de fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”.
A partir de então, consolidou-se uma prática que já vinha sendo adotada, a grande maioria dos espaços de diálogo entre a sociedade civil e os órgãos governamentais, ou mesmo somente órgãos públicos para dialogarem entre si e estrategicamente estruturar as ações necessárias para dar concretude às disposições normativas relativas às mais variadas políticas públicas que estão em andamento no país foram instituídos através de Decretos, criando uma estrutura frágil que, a partir da mudança do poder imposta pelo impeachment, tornou-se alvo fácil e passou a ser criticada como instâncias “dificultadoras” dos avanços do crescimento econômico desordenado, sem preocupação com as consequências sociais e ambientais.
O ponto crucial nessa análise perpassa pela percepção de que, após o impeachment, está em pleno vapor o projeto de desconstrução das políticas públicas que visam dar concretude aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.
Além disso, está em desconstrução o projeto constitucional construído como arranjo social viável naquele momento histórico da redemocratização pós movimento das Diretas Já, por volta de 1984, que culminou com a promulgação do texto constitucional quatro anos depois.
Não tenho como deixar de acrescentar, nesse momento da reflexão, uma passagem pessoal que no meu sentir, pode auxiliar aquele leitor paciente que chegou até esse momento do texto, entender algumas premissas consideradas por esta autora, na medida em que a minha relação com a democracia e as diversas instâncias de participação política antecede minha aprovação no concurso para membro do Ministério Público de Minas Gerais, instituição que segundo o Artigo 127 da Constituição, tem a missão constitucional da defesa do regime democrático.
Nascida na metade da década de 1970, não vivenciei o período do regime militar pós Golpe de 1964, mas desde muito nova tinha interesse em política. Tenho recordações de uma televisão preta e branco na casa dos meus pais exibindo imagens do movimento pelas Diretas Já, das eleições de 1986 para a Assembleia Constituinte e do programa de televisão “Diário da Constituinte”, cuja 1ª edição, apresentada pelo Presidente do Congresso Nacional, Ulysses Guimarães, conclama toda sociedade a participar da elaboração do texto constitucional e ao falar das favoráveis condições sócio econômicas brasileiras, identificada como a 8ª economia entre as nações democráticas, textualmente lamenta que “vergonhosamente com 40 milhões de brasileiros oprimidos pela pobreza e pelo analfabetismo.
A Constituição, por si só, não dará de imediato resposta a todas as carências que enfermam o país, mas será mandatória de imperativo progressista aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário para que avancem no rumo das transformações exigidas pela sociedade. Estão abertos os canais da participação. Criem por ele para elaborar a Constituição e para cumpri-la”.
Como nos ensina Paulo Bonavides, pela primeira vez na História Constitucional brasileira, os Constituintes de 1987 partiram da estaca zero para elaboração da nova Carta Magna e, ainda que justamente esta tenha sido uma das maiores dificuldades enfrentadas, a divisão em comissões temáticas possibilitou ampla discussão dos mais variados aspectos da realidade estrutural e conjuntural com a sociedade brasileira, cabendo à Comissão de Sistematização organizar as propostas encaminhadas e elaborar o projeto de Constituição. As votações em primeiro turno começaram no início de 1988, um longo ano de discussões, conflitos entre o Congresso Nacional e a Presidência da República, pressões dos meios de comunicação de massa e descrédito da sociedade, preocupada com a consolidação da transição democrática.
Bonavides identifica que “[…] duas tendências ficaram evidentes no debate e votação dos temas sociais e direitos dos trabalhadores, na questão da terra e da propriedade, da reforma agrária, do capital estrangeiro, das riquezas do subsolo, da política de informática, da comunicação, da estrutura sindical com o pluralismo ou a unidade (a esquerda dividida ou abstendo-se de votar como ocorreu com o PT), do direito de greve, da reforma tributária. Em algumas dessas questões é possível estabelecer uma certa divisão ideológica, mas a interferência dos governos federal e estaduais chega a apagar a marca doutrinária dos constituintes ou das próprias legendas, conflitando posições pessoais ou partidárias. […] Pode-se, no entanto, pelas decisões assumidas, concluir que a maioria constituinte era conservadora e o mais fiel retrato de sua composição pode ser melhor aferido pelas votações de alguns pontos conflitantes. Através dessas votações e da posição assumida pelos constituintes, conclui-se que o perfil da Constituinte de 1987-1988, embora conservadora, tem características muito especiais, às vezes, até mesmo contraditórias, refletindo interesses grupais ou regionais em detrimento do essencial, mas, na realidade, representando a Sociedade no seu conjunto, com todas as suas intranqüilidades, preocupações, instabilidade e deficiências de formação e de prática política” (BONAVIDES, 1991, p. 473-474, grifos nossos).
Como eu sempre tenho dito nas oportunidades em que escrevo na coluna do Coletivo Transforma MP, o Ministério Público que eu acredito, além do que claramente disposto na Constituição Federal, pode ser melhor compreendido pela análise da Carta de Princípios da nossa associação, fruto da reflexão de dezenas de integrantes do Ministério Público brasileiro que entenderam a necessidade de se reunir para somar forças e lutar pela instituição que acreditamos ter papel determinante na consolidação do projeto constitucional de 1988.
Os integrantes do Ministério Público precisam se posicionar. O Estado Democrático de Direito está sendo destruído, os retrocessos de direitos sociais e ambientais são gigantescos, estacionamos no IDH da ONU há dois anos seguidos e a tendência é piorar. A população em situação de rua está crescendo em perspectiva assustadora dado o aumento do desemprego intensificado após a “Reforma” Trabalhista e aumento da substituição da mão de obra humana pela tecnologia, sendo que um dos efeitos concretos desse fenômeno é o aumento da drogadição ilícita, que ao invés de ser tratado como um problema de saúde pública, é tratado pela segurança pública através do controle social da pobreza, aumentando os índices de super encarceramento com as prisões dos pequenos traficantes que comercializam para sustento do vício.
Eis a realidade de parte da sociedade brasileira relegada a índices desumanos de vulnerabilidades que encontram na drogadição ilícita mecanismos de enfrentamento autodestrutivos. Qualquer simples pesquisa sobre a questão do consumo de substâncias (ilícitas ou não) pelo ser humano abordará os mais variados aspectos fisiológicos, existenciais, religiosos, culturais, dentre outros, que levam ao consumo de substâncias que causam efeitos (alucinógenos ou não).
No caso da população em situação de rua, é perceptível que o consumo de crack é acentuado e os diálogos que já tive com movimentos de moradores, das Pastorais de Rua, dos serviços socioassistenciais ou de saúde, é que a principal função do crack é a pessoa “deixar de sentir” (fome, frio, sono, dor…). Atualmente, minha maior fonte de tristeza ao visitar qualquer capital ou cidade de porte médio e grande, diz respeito ao aumento desenfreado da população em situação de rua potencializado pelo crescimento dos índices de desemprego e pela dificuldade de acessar os programas sociais que estão sendo sucateados após o corte de 90% do orçamento da assistência social. A falta de repasses estaduais e federais aos municípios brasileiros tem gerado impactos graves, tanto do ponto de vista da gestão urbana ambiental, quanto do custeio do tripé da educação, saúde e assistência social.
Retomando a questão das drogas, fico me questionando se o desejo de “deixar de sentir” é algo exclusivo de populações vulneráveis? No meu modesto sentir, não, porque uma pessoa que quer “deixar de sentir” fome porque não tem R$ 15,00 para pagar um marmitex e pode comprar uma pedra de crack por R$5,00 e conseguir ficar o dia todo sem comer, vai ter seu consumo de droga relacionado à vulnerabilidade, no entanto, o aumento de doenças neuronais da classe média e alta, em virtude de uma série de outros fatores que não estão relacionados à vulnerabilidade econômica também empurra parte dessas pessoas para o consumo de drogas lícitas que custam algumas centenas de reais.
Assim, o consumo de drogas não está relacionado necessariamente à condição de vulnerabilidade, no entanto, a grande diferença está exatamente no fato de que essa última parte da sociedade é tratada no sistema de saúde privada e a parte da vulnerabilidade é tratada no sistema de segurança pública.
E aberto esse parêntese para reflexão sobre a crucial questão da política pública de drogas, cujo diálogo é difícil e precisa ser feito junto com sociedade brasileira, retomamos a discussão sobre o Decreto 9759/2019 e a extinção dos espaços de diálogo entre o Estado e a sociedade, justamente porque um dos atingidos pela “canetada” foi o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad).
Criado pelo Decreto nº 5.912, de 27 de setembro de 2006 e reformulado pelo Decreto nº 7.426/2011, que transfere o Conselho do Gabinete de Segurança Institucional para o Ministério da Justiça. Essa informação foi obtida a partir do levantamento da brilhante pesquisadora Carla de Paiva Bezerra, doutoranda em Ciência Política pela USP e advogada, no dia seguinte já disponibilizou na internet. Pelo menos 35 órgãos que seriam impactados pelo Decreto 9759/2019, na medida em que, sorrateiramente, a norma não denominou as instâncias de participação da sociedade civil que serão extintas, utilizando de norma genérica que traz uma insegurança jurídica inconcebível num Estado de Direito Democrático contemporâneo. Inclusive, referida pesquisadora escreveu um artigo sobre o tema em conjunto com outros pesquisadores publicado aqui na CartaCapital que recomendo a leitura.
O que mais preocupa com todos os retrocessos experimentados após o Golpe de 2016, é que o Brasil estava no caminho da consolidação do projeto constitucional de 1988, ainda que a passos lentos, estava… mas se toda estrutura de gestão governamental compartilhada for extinta, o avanço dos retrocessos será ainda mais intensificado e os índices de desenvolvimento humano da ONU serão impactados aumentando a desigualdade social e os problemas relacionados à criminalidade e à violência urbana, passos rápidos em direção à barbárie…
Não sem muito esforço psicanalítico, inspirada no meu Mestre Rubem Alves e nos seus ensinamentos sobre ser “esperançosa”, creio que a catarse da mudança paradigmática se aproxima. Na dinâmica cartesiana, dizemos da necessidade de se escolher um lado. Penso que a complexidade do paradigma sistêmico do século XXI dificulta essa análise linear, então, na minha modesta percepção, para além de “escolha de um lado”, se trata de perceber esse fenômeno como a catarse necessária para a mudança paradigmática e consolidação do projeto constitucional, tanto do Estado e da sociedade brasileira, como do próprio Ministério Público.
E nesse ponto deixo aos meus pares integrantes do Ministério Público brasileiro que na sua atuação cotidiana está construindo esse projeto constitucional, ao lado e em diálogo com a sociedade e o Estado, entendendo nossa instituição como instrumento de algo maior, não como um fim em si mesma, mais preocupada com a defesa de privilégios e vantagens remuneratórias. Gritemos à sociedade brasileira: O Ministério Público da Constituição de 1988 existe e estamos aqui para juntos com a sociedade defendermos o Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil.
E finalizo citando minha ídola poetisa Cora Coralina como conselho para enfrentar o consumo de drogas (lícitas ou não): “Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”.
Daniela Campos de Abreu Serra, Promotora de Justiça (MPMG), Mestre em Serviço Social pela UNESP e membro do Coletivo por um Ministério Público Transformador.