Por Haroldo Caetano, no Justificando.
No clássico filme Encaixotando Helena, um médico é obcecado pela beleza de Helena, sua paciente, mas, rejeitado em sua pretensão amorosa, resolve aprisioná-la. Afetado por uma perversão extremamente violenta e diante da recusa persistente, o médico começa então a fazer cirurgias sucessivas em Helena mediante o uso de anestésicos potentes, nela produzindo mutilações, até que ela, já sem braços e pernas, tem o que sobra do seu corpo completamente subjugado ao controle de seu algoz. O filme de Jennifer Lynch expõe até que ponto pode chegar a perversidade de alguém em busca da satisfação de uma vontade doentia.
Essa história surreal pode servir como ponto de partida numa tentativa de compreensão dos motivos que levaram autoridades públicas a, tal qual na ficção do cinema, propor o encaixotamento de gente. É o que está acontecendo neste momento em Goiás. Se na lei, na Constituição ou nos tratados de direitos humanos de que o Brasil é signatário, não se encontram fundamentos jurídicos que autorizem o aprisionamento de mulheres e homens em caixotes de concreto, talvez a psicanálise possa vir em apoio nessa busca por explicações.
A reportagem do jornal O Popular do último domingo, 22, anunciou em matéria de destaque a pretendida aquisição de celas modulares (vide foto) feitas em concreto, com 14,25m2 e aptas ao alojamento de até doze presidiários cada uma. Segundo a matéria jornalística, serão adquiridas duzentas unidades ao custo de R$ 28 milhões, de sorte que cada caixote custará aos contribuintes goianos a bagatela de R$ 140 mil. Contudo, não pretendo aqui discutir os valores elevados e que poderiam ser questionados não apenas no que tange ao preço de construção, estimado em R$ 10 mil o metro quadrado, mas também ao fato de a proposta ter sido anunciada como emergencial e em ano de eleições. Deixo de lado tais aspectos, embora relevantes, para focar no projeto em si.
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Se no ano de 1785, nos primórdios da arquitetura penitenciária, o panóptico de Jeremy Bentham foi recepcionado como um projeto ousado para o seu tempo, por facilitar as funções de disciplina e controle no cárcere, agora, depois de decorridos mais de duzentos anos, a estrutura para encaixotar presidiários apresentada pelo governo goiano consegue superar em perversidade aquele projeto utilitarista do final do século XVIII. Alojar entre oito e doze seres humanos em 14,25 m2 chega quase a ser uma afronta à máxima newtoniana segundo a qual dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo. A arquitetura penitenciária do século XXI retrocede a um patamar que a coloca não mais como um saber voltado aos interesses do homem.
Porém, diversamente, com os caixotes de concreto, aquele saber volta-se para atender exclusivamente ao capital, para garantir o máximo de rendimento na relação espaço/capacidade/lucro, onde qualquer resquício de humanidade se perde em explicações estatísticas. Já não há pudores nas explicações utilitaristas, que se resumem ao máximo aprisionamento, no processo contínuo de encarceramento que trouxe o Brasil, com seus cerca de 700 mil presidiários (segundo dados do Infopen/2015), ao terceiro lugar nos índices de aprisionamento, ficando atrás apenas de Estados Unidos e China. Os defensores do projeto dos caixotes, no alto de seu eficienticismo utilitarista, sequer expressam alguma preocupação quanto aos motivos pelos quais doze homens devem ser mantidos em espaços onde isto só é possível em posição de descanso, deitados, cada um no seu respectivo leito. Nem mesmo a ideia de defesa social, com seus muitos equívocos e que é reclamada até pelos mais convictos punitivistas, está contemplada nessa forma de aprisionamento celular. Afinal, que ser humano poderia sair de um lugar assim?
Ao invés de enfrentar e oferecer respostas para o problema da superlotação carcerária, a arquitetura penitenciária logrou adequá-la dentro de compartimentos demarcados, onde a cela é meticulosamente construída de maneira a comportar vários corpos no exíguo espaço. Mutila-se o homem em sua dignidade, de maneira que o seu corpo caiba nos exatos limites de um leito que é mera fração dentro de um caixote de concreto. É inevitável aqui também a comparação desses compartimentos com os alojamentos dos campos de concentração de judeus na Alemanha nazista (vide foto), de onde indisfarçadamente parece ter vindo a sua inspiração.
A criatividade perversa da arquitetura penitenciária junto com a banalização da maldade, esta que é verbalizada sem pudores no discurso legitimador de autoridades que deveriam atuar para impedir, ou pelo menos frear, o recrudescimento da violência institucional, formam o ambiente perfeito para o reaparecimento de velhas novidades que brutalizam mulheres e homens levados ao cárcere. Encaixotar seres humanos não é algo aceitável em hipótese alguma! Se na ficção do cinema tudo se resolve num inesperado sonho revelado ao final (perdoe-me pelo spoiler), e que nada teria acontecido de fato, na concretude da administração penitenciária goiana esse desfecho não será possível, embora ainda haja tempo bastante para a tomada de outras decisões.
Por outro lado, mostra-se previsível que, caso venha a ser implementado o projeto dos caixotes de concreto, esses jazigos de pessoas vivas, é muito provável que a iniciativa venha a ser considerada ilegal ou inconstitucional no futuro (há precedentes no Superior Tribunal de Justiça neste sentido, a exemplo do HC 142513/ES), caso em que, entretanto, recursos públicos terão sido desperdiçados e, muito mais grave, milhares de mulheres e homens terão passado por experiências similares àquelas vivenciadas pelos judeus nos campos de concentração nazistas.
A vontade doentia por encarcerar seres humanos, como a experiência do hiperencarceramento e os estudos feitos à exaustão sobre esse problema têm mostrado, traz profundas sequelas para toda a população e leva inexoravelmente a mais violência. O encaixotamento de presidiários será, então, um fetiche nas práticas punitivistas de uma sociedade doente. Um fetiche que não passará de um capricho diante do contexto no qual insistimos em não enfrentar com seriedade o fenômeno do encarceramento no Brasil.
E, anote aí, não tardará que alguém levante a necessidade de expansão do modelo para os presídios juvenis, de forma que os caixotes de concreto, celebrados como a grande solução para a superlotação carcerária, venham a ser ocupados também pelos adolescentes em conflito com a lei.
Temos problemas carcerários, sim. Dentre eles está a má gestão penitenciária, que por vezes se confunde com má-fé, mas também a falta de conhecimento técnico, de planejamento, de responsabilidade e ética na administração integram as causas desses tantos problemas que, não se pode olvidar, resultam principalmente dos processos de criminalização, que nada mais são do que o produto de nossas escolhas políticas no trato da violência, e que se materializa no encarceramento em massa de brasileiros, principalmente os jovens, negros e pobres. De qualquer forma, diante do quadro atual que coloca o Brasil entre os lugares mais inseguros para se viver no mundo, não será com mais violência ou com caixotes de concreto, tampouco pela violação de direitos humanos fundamentais, que esse panorama será alterado.
Haroldo Caetano é Mestre em Ciências Penais (UFG), doutorando em Psicologia (UFF), promotor de Justiça do Estado de Goiás, membro do Coletivo Transforma MP.