Por Andrea Beatriz Rodrigues de Barcelos, no GGN.
O documentário “Réquiem pelo sonho americano” (Requiem for the american dream), com Noam Chomsky, o qual gerou o livro de mesmo nome, trata do seguinte tema: os dez princípios da concentração da riqueza e do poder.
O Brasil quase sempre seguiu à risca tais princípios, para alcançar e manter seu posto de um dos países mais ricos e desiguais do mundo. Por um lado, ocupa a 9ª posição na economia mundial[1], em termos de Produto Interno Bruto – PIB, e possui enormes riquezas naturais, como petróleo, nióbio, potenciais energéticos, recursos hídricos, terras férteis, etc. Por outro, é extremamente desigual, ocupando o 79º lugar em desenvolvimento humano, entre 188 países, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano, em relatório do PNUD de 2014[2].
É o 4º país mais desigual da América Latina e Caribe, e o 10º mais desigual do mundo[3], com brutal concentração de rendas e de riquezas. Os 5% com maior renda, recebem por mês o mesmo tanto que os demais 95% da população[4]. Quando se trata de desigualdade de riquezas (imóveis, ativos financeiros), o cenário é ainda mais desolador, pois o “1% mais rico concentra 48% de toda a riqueza nacional e os 10% mais ricos ficam com 74%. Por outro lado, 50% da população brasileira possui cerca de 3% da riqueza total do País”[5].
Houve um período de forte declínio do índice de desigualdade econômica e de drástica redução da pobreza, possibilitados pela criação de uma rede de proteção social, principalmente pelos programas de transferência direta de renda (bolsa família e benefício de prestação continuada para idosos e pessoas com deficiência em situação de pobreza). Conforme relatório do Banco Mundial, o “Brasil alcançou reduções impressionantes nos níveis de pobreza e desigualdade entre 2004 e 2014”[6], em grande medida devido àquelas transferências de renda do sistema de assistência social.
Em outras palavras, houve mais de uma década de desconcentração da riqueza e sensível redução da pobreza (mais de 28,6 milhões de pessoas saíram da pobreza no período), devido a um esforço governamental dirigido a estas finalidades e não por uma mão invisível do mercado. Havia, por óbvio, muito a fazer, pois o Brasil ainda permanecia muito desigual e tinha milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Mas a ganância dos “donos do poder” não pôde esperar mais.
A BRUTALIDADE DO CHOQUE
Após esta breve pausa, veio o choque institucional de 2016, com a retomada dos rumos da perversa máquina de concentração da riqueza e do poder. O governo instalado no Planalto, ainda de forma provisória, encaminhou à Câmara dos Deputados, no dia 15 de junho de 2016, a proposta de emenda constitucional 241, que em 15 de dezembro do mesmo ano foi promulgada como Emenda Constitucional nº 95, com o nome de “novo regime fiscal”.
Trocando em miúdos, significa o congelamento dos gastos públicos primários (educação, saúde, assistência social, previdência, moradia, segurança, investimentos, máquina administrativa etc), por 20 anos. Neste período, ainda que o País cresça economicamente e que aumente a arrecadação de tributos, o governo federal não poderá investir mais que um teto, definido com base nos gastos do ano anterior, corrigidos pelo índice da inflação. O ano base é o de 2016, que já teve resultados ruins. Ou seja, o teto é baixo. E a necessidade de expansão dos serviços públicos, com o aumento da população, da desigualdade e da pobreza, fica sufocada. Com um detalhe, o limite não se aplica aos gastos com o pagamento de juros da dívida pública.
Existem duas consequências óbvias da referida emenda constitucional. A primeira é a progressiva redução dos gastos com as funções do governo. A razão de ser do Estado, que é a de concretizar os direitos fundamentais de todas as pessoas, parece que deixa de ser prioritária. Todas as funções governamentais, como educação, saúde, rede de proteção social, e investimentos para o desenvolvimento socioeconômico, tornam-se secundárias. Os recursos são comprimidos, gerando uma disputa entre esses diversos setores por fatias do orçamento.
O segundo efeito é o de valorizar o que este governo e este congresso entendem como a função mais importante do Estado: o pagamento de juros da dívida pública. Teoricamente, as receitas públicas, tributárias e financeiras, existem para custear o funcionamento dos serviços e investimentos públicos, para que o Estado possa cumprir as funções que lhe são incumbidas pela Constituição Federal. Mas, de fato, o que a EC nº 95/16 faz é inverter essa lógica. Agora pagamos impostos e o governo se endivida, não para custear os serviços e investimentos públicos, limitados pelo teto, mas para pagar os juros da dívida pública, aos rentistas, despesa que não teve qualquer limitação.
A questão é que, segundo projeções do Banco Mundial, devemos ter, no pior cenário, até 3,6 milhões a mais de pessoas em situação de pobreza até o final de 2017, e um aumento do índice de Gini, que mede o nível da desigualdade. E o próprio Banco Mundial dá a receita para impedir os efeitos perversos da miséria e da desigualdade: acolher esses milhões de pessoas na rede de proteção social criada. A entidade fez até os cálculos dos recursos necessários ao programa bolsa família para o orçamento de 2017 e chegou à cifra de 30,41 bilhões de reais[7].
Porém, como está vigente a EC nº 95/16, o limite dos gastos públicos afeta, inclusive, o programa bolsa família, que teve orçamento em 2017 bem menor do que o necessário projetado pelo Banco Mundial. O valor foi de 29,3 bilhões de reais. O pior é a proposta orçamentária para 2018, que destina ainda menos recursos para o programa federal, 28,7 bilhões de reais, uma queda de 3,7% em relação a 2017. Considerando o valor médio do benefício, seriam cerca de 500 mil famílias a menos inseridas no programa, em um momento no qual seria necessário ampliá-lo para incluir os milhões de novos cidadãos em situação de pobreza[8]. Caso aprovada pelo congresso, “será a primeira queda nominal da história do programa”, pois “com números corrigidos pela inflação, o valor representaria a maior baixa real desde que o benefício foi criado, em 2003”[9].
Traduzindo: temos mais milhões de pessoas vivendo em situação de pobreza no Brasil, enquanto o governo reduz bilhões de reais de orçamento para o programa bolsa família, que é uma das formas mais importantes de impedir que esses milhões de pessoas passem fome ou tenham outras necessidades básicas insatisfeitas. Isso tem nome: crueldade.
APROFUNDAMENTO DA DESIGUALDADE E DA POBREZA
Portanto, a EC nº 95/16 significa o seguinte: aumento da desigualdade e da pobreza, diminuição dos recursos públicos para os direitos sociais fundamentais (educação, saúde, assistência social, moradia) e aumento dos recursos públicos destinados ao pagamento de juros da dívida pública, ou seja, aos rentistas (bancos e demais detentores do capital financeiro).
A Auditoria Cidadã da Dívida, em representação contra a então PEC nº 55/16, detalha toda sua perversidade, as mentiras que nos contam e as verdades que nos escondem[10]. Em nota emitida por diversas entidades, já se mostrava a falácia de que os gastos públicos primários seriam excessivos. Os verdadeiros responsáveis pelo aumento do déficit público “são os gastos com juros da dívida pública (responsáveis por 80% do déficit nominal), as excessivas renúncias fiscais”[11] e um sistema tributário altamente regressivo e injusto.
Portanto, o “gasto que mais precisa ser controlado é o financeiro”, mas a EC nº 95/16 “faz justamente o contrário”[12]: culpa indevidamente os gastos sociais e lhes impõe um teto, enquanto o verdadeiro “vilão”, os gastos com a dívida pública, são mantidos sem qualquer limite, e já abocanham quase 44% de todo o orçamento público federal[13]! A “economia” que o governo faz com os gastos sociais, sacrificando os direitos sociais e a vida de milhões de pessoas, serve para pagar o sistema financeiro, de forma ilimitada e sem transparência. Vejamos isso de modo gráfico, elaborado pela Auditoria Cidadão da Dívida:
Orçamento Geral da União – 2016 – Executado (pago), por Função – Total = R$ 2,572 TRILHÕES
Fonte: http://www.camara.gov.br/internet/orcament/bd/exe2016mdb.EXE
Elaboração: Auditoria Cidadã da Dívida.
O gráfico acima mostra que todas as despesas que justificam a existência do Estado (saúde, educação, trabalho, assistência social, atividade legislativa, judiciária, previdência, defesa, segurança pública, geração de energia, direitos da cidadania, ciência e tecnologia, gestão ambiental, transporte, cultura, saneamento, esporte e lazer), atualmente já se encontram espremidas pelo peso que os custos com juros e amortizações da dívida têm sobre o orçamento da União. E a função da EC nº 95/2016 é espremer ainda mais esses serviços em benefício de pagamento de juros da dívida, o que beneficia somente os rentistas, retirando dos mais necessitados a atuação do Estado.
Portanto, a EC nº 95/2016 é uma engrenagem da máquina de concentrar ainda mais dinheiro e poder, em um país onde esta concentração já é tão absurda. Serve para aprofundar a desigualdade e a pobreza, por um lado, desestruturando a rede de proteção social (essencial para a sobrevivência das pessoas empobrecidas) e os demais direitos sociais, que beneficiam a maior parte da população brasileira. E por outro, aumenta livremente o pagamento de despesas com a questionável dívida pública, nunca auditada, conforme determinação constitucional do art. 26 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias)[14].
EXTENSA VIOLAÇÃO À CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Pode ser mais clara a completa violação da Constituição Federal? A maldade com que se lida (ou se ignora) com a vida de milhões de seres humanos tão gente quanto eu e você, leitor ou leitora? A EC nº 95/16 significa exatamente retirar dos muito pobres para dar para os muito ricos. Isso viola qualquer mínima noção de justiça. É indecente.
A Constituição Federal de 1988 está na contramão daqueles princípios destacados por Chomsky, tendo sido toda construída no sentido da desconcentração da riqueza e do poder. Por isso, o ordenamento constitucional gravita em torno da dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado brasileiro (art. 1º, III, da CF). Estabelece como objetivos fundamentais construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades, promover o bem de todos (art. 3º, I, III e IV, da CF). Prevê expressamente direitos sociais fundamentais, tais como educação, saúde, assistência, alimentação e moradia (art. 6º da Constituição Federal). Dispõe inclusive sobre a forma de financiamento desses direitos. Os constituintes tiveram a sensatez de, diante do fato de que todos os direitos custam caro e que o Estado precisa ter recursos públicos para concretizá-los, destinar verbas para financiá-los.
Assim, criou o instrumento essencial e inovador de garantia de um mínimo de recursos para a educação e para a saúde (arts. 198 e 212 da CF). É um mecanismo forte de garantia, aplaudido por juristas do porte de Ferrajoli como um exemplo do constitucionalismo de terceira geração[15]. Previu de forma detalhada os recursos (tributos) necessários ao financiamento de todo o sistema de seguridade social, formado pelo tripé: assistência social, saúde e previdência social (art. 195 da CF).
A lógica é simples. Direitos sociais fundamentais são direitos, ou seja, não são favores do Estado. Justificam e legitimam a existência do Estado. É obrigação do Estado concretizá-los, com os recursos constitucionalmente destinados a esta finalidade. O centro da ordem constitucional é a pessoa humana, não a dívida pública.
A EC nº 95/16 é o que a doutrina francesa chama de “fraude constitucional, que consiste em criar (…) um modelo constitucional diferente, sem romper, aparentemente, com a ordem jurídica estabelecida”[16]. É derrogar a Constituição Federal de 1988, de forma implícita. É a total inversão de prioridades constitucionais. Lembrando que, para acabar com um direito fundamental, basta cortar o financiamento dos serviços públicos que o concretizam. “Quer destruir um sistema? Primeiro, corte recursos. Assim, não funcionará, a população se irritará e pedirá algo distinto. É a técnica padrão usada para privatizar qualquer sistema”[17].
As consequências do congelamento dos investimentos públicos em todas as funções do Estado, criado pela EC nº 95/16, são perversos e covardes: cortes orçamentários brutais para 2018, chegando a mais de 85% para o serviço de proteção social básica[18], a 20% para o custeio e a 90% com despesas de capital do sistema federal de ensino superior, em relação ao orçamento de 2014[19]. Quanto aos investimentos, os cortes em relação a 2017 também são drásticos: 32% a menos em saneamento básico, 37% a menos em educação, 35,4% na agricultura familiar, redução de R$ 3,3 bilhões para R$ 3 bilhões em investimentos na saúde[20].
A EC nº 95/16 é flagrantemente inconstitucional, considerando-se a vedação do art. 60 § 4º, IV, da Constituição Federal, que proíbe a proposta de emenda constitucional tendente a abolir direitos fundamentais. E seus efeitos – abolição de direitos sociais por asfixia financeira – já estão se concretizando. Referida emenda viola a todas as luzes o princípio da proibição do retrocesso social. Revoga os pisos constitucionais da educação e da saúde, pois impõe nova forma de cálculo que rebaixa tais pisos[21]. Assim, também viola os arts. 212 (norma originária que não pode ser revogada por emenda constitucional) e 198 (norma constitucional cuja revogação fere o princípio da vedação do retrocesso social) da Constituição Federal, ignorando a dignidade de milhões de pessoas e contrariando frontalmente os objetivos de erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais, uma vez que aprofunda tais males.
Em âmbito jurídico, a luta pela Constituição está pendente no STF, que tem a urgente e nobre missão de impedir que a fraude constitucional da EC nº 95/16 siga produzindo devastadores efeitos na vida de milhões de pessoas e que o Brasil siga com direitos sociais fundamentais aos pedaços, tacitamente revogados por asfixia financeira. O STF tem a função de compelir os Poderes Legislativo e Executivo a garantir os direitos fundamentais constitucionais. É uma grande oportunidade de cumprir o crucial papel de controle e estabilidade constitucionais.
Várias Ações Diretas de Inconstitucionalidade já foram propostas contra referida emenda constitucional[22], com pedidos liminares – até a presente data – não apreciados. Mas serão. A esperança é de que a decisão seja no sentido de restabelecer a ordem constitucional de 1988. O mais brevemente possível.
Andrea Beatriz Rodrigues de Barcelos, Promotora de Justiça do MPGO, associada do Coletivo por um Ministério Público Transformador, mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Carlos III de Madri.
[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_por_PIB_nominal
[2] http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2017/… [3] https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/21/politica/1490112229_963711.html [4] Relatório da Oxfam, p. 21, disponível em: https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/arquivos/Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf [5] Ídem, p. 30. [6] https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2017/02/NovosPobresBrasil_Po… [7] Ídem. [8] http://www.plantaobrasil.net/news.asp?nID=99041 [9] http://www.valor.com.br/brasil/5182733/orcamento-de-2018-reduz-verba-do-… [10] http://www.auditoriacidada.org.br/blog/2016/11/02/denuncia-contra-pec-55/ [11] http://www.auditoriacidada.org.br/blog/2016/11/14/auditoria-cidada-e-out… [12] Ídem. [13] http://www.auditoriacidada.org.br/blog/2017/07/09/mentirasverdades/ [14] A OAB propôs a ADPF nº 54/2004, que está há 13 anos no STF, sem julgamento. [15] Ferrajoli, Luigi. La democracia a través de los derechos. El constitucionalismo garantista como modelo teórico y como proyecto político. Madrid: Trotta, 2014, pp. 205-206. [16] Alonso, Marta León. Rigidez, resistencia y resiliencia constitucional frente a la vulnerabilidad de los derechos, p. 8. Tradução libre. Disponível em: https://redtiempodelosderechos.files.wordpress.com/2015/01/wp-16.pdf [17] Chomsky, Noam. Réquiem por el sueño americano. Los diez principios de la concentración de la riqueza y el poder. Tradução de Magdalena Palmer. Ciudad de México: Editorial Sexto Piso, 2017, p. 68. Tradução livre. [18] Tabela contendo as disparidades entre os valores aprovados pelo Conselho Nacional de Assistência Social e a nova proposta de lei orçamentária anual para 2018 encaminhada no dia 31/10/17. Disponível em: http://www.mds.gov.br/cnas/noticias/projeto-de-lei-orcamentaria-anual-pa… [19] https://jornalggn.com.br/noticia/universidades-pedem-socorro-ao-congress…. [20] https://www.esmaelmorais.com.br/2017/11/investimento-publico-o-brasil-de… [21] Consta da página 23 do relatório preliminar do orçamento da União para 2018, da Câmara dos Deputados, que o cálculo original do mínimo de despesas em educação chega a um valor maior que o cálculo inconstitucionalmente criado pela EC nº 95/16. Apesar de a proposta orçamentária superar ambos os cálculos, os valores poderão ser comprimidos, deixando de ser executados. Disponível, em http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR…. [22] 5633, 5643, 5655, 5658, 5715 e 5743. O coletivo por um Ministério Público transformador ingressou como amigo da corte na ADI 5643. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão representou à Procuradoria-Geral da República, em outubro de 2017, pela propositura de nova ADI contra a EC nº 95/16. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/temas-de-atuacao/…