Des(p)ejo!

Artigo da promotora de Justiça MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN.

Quando Carolina Maria de Jesus contou, em seu livro, que apresentava suas peças escritas ao dono do circo e ele dizia: “é pena você ser preta”, fui a cor que não coube. A pele errada e eliminada das estatísticas do Atlas da Violência. O não escrito, não lido, não dito e não vivido. O banco de reserva que nunca entrará em jogo. O ônibus que não parou. O violão sem cordas.  A eterna plateia. O feio, o errado e o escondido, descabido, inoportuno. O descarte.

Não fui Carolina, nem Maria. Tampouco de Jesus.

Mas fui quarto de despejo.

Do canto da sala de aula, na década de 80, quando vi minha amiga, com 10 anos de idade, ouvir em silêncio que era uma negrinha imunda que cheirava cocô, fui o grito que não saiu de mim. A testemunha nunca arrolada. O corpo negro morto no chão frio do hospital do Piauí pela falta de maca. Fui dor engolida. Esquecida. E distribuída, por todos os pedaços do meu corpo.

Não fui Márcia.

Mas fui canto de despejo.

Quando ingressei na Faculdade de Direito da universidade pública, em 1993, e me vi rodeada de 123 colegas brancos e 02 negros, fui o teatro da meritocracia. A farsa narcísica da lógica neoliberal que esconde o privilégio branco em competições brancas. Fui a solidão do estrangeiro de mim mesma. A fronteira. A diáspora. O fragmento. A parte que falta.

Não fui Alexandre, nem Iara.

Mas fui furo em despejo.

Nos muitos anos que contribuí para o sistema penal cumprir seu papel e na inumerável quantidade de réus negros e juízes brancos que naturalizei no cenário de Justiça, fui o barulho da algema. A roupa ocre. A cabeça baixa. A havaiana no pé escuro. O som agudo do cadeado. A porta se fechando depois do não. As portas. O não. Outro não. E outro. E um mundo de nãos. O medo disfarçado na confortável prisão da não possibilidade.

Não fui os denunciados, qualificados, autuados, indiciados…

Mas fui cárcere para despejo.

Quando, sem que eu perguntasse, a advogada negra do racista se sentou em minha frente para dizer que negar o racismo do mundo era sua questão de sobrevivência, e que só ela tinha o direito de escolher como viver a dor que era dela, fui o vazio do capitão do mato. O desamparo mais profundo. As noites de insônia. As ruas sem saída. O celular desconectado. A escolhida para não ter o sedativo da ilusão. O medo de desaparecer sem alguma sobra de olhar, carinho ou palavra. A declaração de um amor capenga.

Não fui a Dra Diana.

Mas fui migalha no despejo.

Quando vejo que dos míseros 5% de pessoas até então vacinadas no Brasil pela pandemia da COVID 19, acima de 70 anos, 90% são brancos porque negros não têm o direito de envelhecer, sou a fila do pronto socorro. A urgência menos urgente.  A asfixia dos hospitais sem leitos. Sou o desmantelamento do SUS escancarado na falta de logística para testagem e rastreamento, na vacina negada, na pouca quantidade de fisioterapeutas qualificados para intubação, nos enfermeiros exauridos, nos médicos que ocuparam, depois, e para morrer, os leitos de seus pacientes. Sou quase 300 mil mortos. Sou o cinismo de mais de 500 anos de história bem sucedida no projeto de morte e dor, sobretudo dos corpos negros, coroada por um 2020 de escárnio sem precedentes. Sou o genocídio.

Não fui o negro que não envelheceu.

Mas fui despejo da vida.

Hoje, não sou um dos 20 mil negros que pacificamente protestaram, no dia 21 de março de 1960, em Sharpeville, na África do Sul, pelo direito de não terem os espaços e os tempos de seus corpos delimitados por uma tal “lei do passe”, que dizia que corpos negros não poderiam se misturar aos corpos brancos.

Não sou uma das mulheres que encontraram, nesse dia, seus grandes amores tombados no chão, cravejados pelas metralhadoras covardes da polícia, e convertidos em rios de sangue tão voluptuosos que chamaram a atenção da ONU para o escândalo mundial do apartheid.

Não sou Severo, da saga de Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, que morreu porque pelejava pela terra de seu povo negro, onde sempre viveram enterrando umbigos, fazendo as festas de jarê, construindo casas, quintais e cercas até serem expulsos, para nunca mais terem um pedaço de chão para plantar e colher.

Tampouco sou Bibiana, amor de Severo e Belonízia, que ressignificou seus rios de sangue sendo o olhar e a voz do outro.

Não vi senhores enforcarem seus escravos como castigo. Cortarem suas mãos no garimpo por roubarem um diamante. Nunca acudi uma mulher negra que incendiou o próprio corpo por não mais querer ser possuída por seu senhor. Não fui a mulher que retirou o filho do ventre para que não nascesse escravo. Não enlouqueci quando me separaram dos meus filhos que seriam vendidos. Não tive arado. Tampouco foi torto.

Meus filhos não andam bem vestidos, com RG e nota fiscal no bolso, com medo da polícia. Não tenho receio de dirigir um bom carro e ser confundida com uma sequestradora. Nas lojas que vou, nos restaurantes que frequento, não me confundem com os funcionários subalternizados e tampouco estranham que eu seja Promotora de Justiça.

Mas, aqui e ali, já fui atravessada por portas que se fecham, algemas que brilham e ar que falta. Aprendi um tanto sobre fragmentos e despedaçamentos, sobre palavras que nunca são escritas, ditas ou ouvidas, vidas não vividas e corpos sem tempo e espaço. Já ouvi gritos engolidos e vivi dores sem escuta e direito de serem dores.

É por isso que, do lugar e tempo da branquitude do meu corpo, estou aqui para ser tanto e tão pouco, e para dizer, a quem puder ser comigo, que o dia 21 de março é o dia internacional da luta pela eliminação da discriminação racial no mundo.

Há rios de sangue atrás de nós em nome dessa luta e, por eles, e pela Constituição de nosso país, sejamos olhos e voz.

Que de cada despejo façamos, sempre, outro desejo.

 

 

Cristiane Corrêa de Souza Hillal é Promotora de Justiça do MPSP Integrante do Coletivo Transforma MP

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