Por Marcio Berclaz, no Justificando.
A necessidade de uma agenda nacional para a defesa do patrimônio público
As “dez medidas contra a corrupção”, a despeito da boa intenção e do sempre saudável debate na esfera legislativa, são absolutamente insuficientes para uma verdadeira mudança e transformação objetivando dificultar e desestimular a prática de ilícitos contra o patrimônio público.
A simbólica “lâmpada” de ideias na tonalidade azul-amarela que apresenta graficamente a campanha é não só discutível em diversos aspectos, embora existam previsões interessantes que poderiam ser melhor discutidas e trabalhadas (em especial a proposta de financiamento de aspectos educativos e de conscientização para firmamento de uma cultura de maior zelo com o patrimônio público ou mesmo a preocupação com maior efetivamente no alcance da indisponibilidade patrimonial para resguardar utilidade de provimento jurisdicional futuro), mas também rematadamente limitada e insuficiente.
Também porque foca, demais, sobre indevidos aspectos de direito penal e processual penal, por exemplo, direciona-se para criminalização e “etiquetamento” de condutas, aumento de penas – quando a metodologia da dosimetria tal como prevista no CP é uma das fontes dos problemas, além de inviáveis e desnecessárias flexibilização de garantias fundamentais por “atalhos” descabidos – por exemplo, trânsito em julgado, prova ilícita, prescrição penal de prazos já largos e demasiadamente tolerantes com a inépcia, nulidades, acréscimo de hipótese de prisão preventiva quando a ordem pública já é um problema, etc.
Antes de se pensar em mecanismos de maior controle patrimonial capazes de ser estabelecidos em todos os órgãos públicos integrados intersetorialmente numa rede de compartilhamento de informações, a começar pelo cumprimento de aspectos básicos já previstos na legislação, como a previsão do artigo 13 da Lei de Improbidade, certamente solenemente ignorada e não observada na maior parte dos entes federativos).
Outro deslize é sugerir a “criminalização” do caixa 2 como saída (como se criminalizar condutas ou aumentar penas resolvesse o problema) quando existem uma série de brechas muito mais sérias e significativas no próprio direito eleitoral muito mais permissivas e perniciosas à boa gestão, a começar pelo esvaziamento da prestação de contas, a disseminada compra e venda de votos ao longo do mandato, os favores e as pressões políticas contrários aos princípios da administração pública.
Mesmo a supressão da fase inicial da defesa preliminar na improbidade ou criação de varas especializadas não é garantia de mudança da situação atual, especialmente porque sobre ela não se fez um diagnóstico sério e cientificamente adequado, de modo a envolver todas as instituições e setores, não só do Ministério Público evidentemente, mas da sociedade brasileira, incluindo-se os cientistas políticos, os advogados púbicos, os contadores, os economistas, os filósofos, os sociólogos, os antropólogos, os engenheiros, etc.
Uma das primeiras medidas que deveriam ser adotadas para começar a conter a desperdício de recursos públicos que ocorre em praticamente todos os entes federativos passa pela reformulação do critério de nomeação política dos auditores dos Tribunais de Contas Estaduais, que recebem um grande volume de informação de modo frequente e permanente de parte de todos os Municípios, mas sequer tem prazo ou data-limite para julgamento de contas e não raras vezes são pouco ou quase nada transparentes.
Para além de todo o debate um tanto quanto banalizado sobre o tema, há de se pensar em mecanismos que evitem a corrupção do político. Em democracia, não se pode deixar corromper o político, do contrário, experimenta-se a total carência de alternativas.
Primeiro de tudo, precisa ficar bem claro que o Ministério Público é apenas uma entre tantas instituições com atribuições no assunto – embora as 10 medidas sejam pouco pedagógicas nesse sentido, pois sequer discutiu-se previamente com a sociedade quais seriam as medidas passíveis de serem apresentadas como lei de iniciativa popular. A responsabilidade da prevenção e repressão da corrupção, antes de ser um dever solitário, messiânico e quixotesco do Ministério Público brasileiro, deve ser compartilhada com os já mencionados Tribunais de Contas, com Legislativo, com o Judiciário- não raras vezes lento no julgamento das tutelas coletivas envolvendo improbidade administrativa, com o controle interno e com as Procuradorias Jurídicas do Poder Executivo e com a própria sociedade civil organizada e com o cidadão de modo geral.
Mais do que isso, no novelo da burocracia muitas vezes cínica e alienante, é fundamental que, antes de cada órgão de execução fazer o que pensa, ou mesmo antes de planejamentos puramente regionais, tenha-se uma agenda nacional de prevenção e combate à corrupção, com critérios objetivos bem definidos. Isso vale diretamente para o Ministério Público.
Questões relacionadas à transação de gestão (período em que não raro ocorrem improbidades prejudiciais à continuidade dos serviços), ao cumprimento de dispositivos das Leis Orgânicas Municipais no que diz respeito à gestão do patrimônio público, cobrança da realização de concursos públicos para todos os cargos disponíveis ou necessários com critério de segurança e com entidade que disponha de acervo técnico, regularização de cargos em comissão, delimitação de funções de confiança de modo objetivamente bem definido, estímulo e fortalecimento do controle interno e do fortalecimento das Procuradorias Municipais como carreira da advocacia pública independente, exame de ofício e permanente das licitações de maior porte e vulto, em especial em gastos relacionados à educação e saúde, efetiva e permanente fiscalização no âmbito de obras públicas para sucateamento de recursos materiais e humanos que gera terceirizações ilegais e indevidas, acompanhamento efetivo das etapas da despesa pública sob o ponto de vista das formalidades exigíveis e da gestão dos contratos (empenho, liquidação e despesa) e definição de estratégias para integrar a atuação criminal especializada com a apuração das ilicitudes cíveis, são apenas alguns dos diversos aspectos que devem ser contemplados.
Para além de outras medidas decisivas (uma das quais a estruturação efetivamente diferenciada dos órgãos de execução que atuam na defesa do patrimônio público), a atuação do Ministério Público na defesa do patrimônio público precisa ostentar não apenas o enfoque repressivo – quase sempre tardio, mas atividades rotineiras integradas a um controle preventivo, infelizmente ainda não integrado à cultura dos membros, e muito menos dos órgãos de orientação e fiscalização (Corregedorias), os quais não raras vezes criam parâmetros que estimulam a acomodação ao invés da proatividade.
Para isso, não só se faz necessária uma integração nacional das carreiras (Ministérios Públicos Estaduais, Ministério Público Federal – que precisa estabelecer uma pauta mínima de troca de informações com os Ministérios Públicos Estaduais no que diz respeito a convênios e políticas públicas que envolvem suporte de recursos federais, Ministério Público do Trabalho – que deve lutar para possuir atribuição para apurar improbidade administrativa no âmbito das relações de trabalho, nem que para tanto precise litigar para além da Justiça do Trabalho e também do importantíssimo Ministério Público de Contas – que, ao contrário do que se pensa, precisa ser um órgão proativo tendo como norte a atuação constitucional, e não o horizonte limitado dos próprios Tribunais de Contas).
Mas também um trabalho permanente de comunicação e aproximação com a sociedade para fortalecimento de outras instâncias de controle social (iniciativas pontuais e importantes como “o que você tem a ver com a corrupção” foram esvaziadas pelas entidades ditas “representativas” muitas vezes ocupadas muito mais de assuntos corporativos do que o próprio “cuidado” e com a autocrítica que o Ministério Público merece para aprimorar seus serviços.
Indo além, é absolutamente lamentável – para não dizer que isso é exemplar para mostrar o quanto estamos longe de uma gestão profissional das instituições, que, com todos os recursos que o Ministério Público consome, não haja não só um sistema padronizado e informatizado para gestão dos procedimentos extrajudiciais no âmbito de todo o Ministério Público brasileiro – inclusive com a tramitação digital de todos os procedimentos permitindo compartilhamentos e troca de informações não só entre membros, mas com a imprensa e sociedade, além da formação de um banco nacional de dados e de roteiros próprios de investigação ou mesmo de atuação judicializada.
Da mesma forma, é inaceitável que ainda não tenha ocorrido a implementação conjunta e nacional das tabelas unificadas para membros e servidores em toda as unidades do Ministério Público, o que inclui a definição de taxonomia adequada aos problemas, pois somente assim as estatísticas terão parâmetros adequados para prestação de contas à sociedade, deixando de ser uma mera formalidade para informarem e permitirem um aprimoramento na gestão.
O advento da “moda” dos planejamentos estratégicos – além de ter servido para criação de Subprocuradorias e órgão específicos, pouco ou quase nada serviu para um efetivo avanço da atuação do Ministério Público brasileiro na defesa do patrimônio público, que precisa ser institucional e não pessoal ou pontual dependendo de esforços individuais aqui e ali, não raras vezes atrelados a uma vaidade laudatória incompatível com a complexidade do problema.
Muitos desses aspectos – outros tantos não, constam da “Carta de Brasília”, editada pelo CNMP. Por outro lado, de nada a “Carta de Brasília” (http://www.cnmp.mp.br/portal/images/CARTA_DE_BRAS%C3%8DLIA.pdf), de setembro de 2016 (lá se vão quase cinco meses) definir ideais importantes se muitas das questões nela tratadas não passam de mera retórica e promessa vazia diante da falta de diálogo e integração que ainda impera entre os diversos ramos do Ministério Público no tocante ao assunto. Entre outros problemas, “faltam práticas institucionais estruturantes” e uma agenda nacional na defesa do patrimônio público, que é muito mais do que a aposta numa específica e midiática operação como a “lava jato”, o que, infelizmente, a julgar pelo senso comum e pelas “opiniões publicadas” hegemônicas, muitos membros do Ministério Público, da imprensa e da sociedade parecem não perceber.
Márcio Berclaz é Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Doutorando em Direito das Relações Sociais pela UFPR (2013/2017), Mestre em Direito do Estado também pela UFPR (2011/2013). Integrante do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público e do Movimento do Ministério Público Democrático. Membro do Núcleo de Estudos Filosóficos (NEFIL) da UFPR. Autor dos livros “Ministério Público em Ação (4a edição – Editora Jusvpodium, 2014) e “A dimensão político-jurídica dos conselhos sociais no Brasil: uma leitura a partir da Política da Libertação e do Pluralismo Jurídico (Editora Lumen Juris, 2013). Sócio-fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador.
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