“As colunas da injustiça sei que só vão desabar quando o meu povo, sabendo que existe, souber achar dentro da vida o caminho que leva à libertação. Vai tardar, mas saberá que esse caminho começa na dor que acende uma estrela no centro da servidão. De quem já sabe, o dever (luz repartida) é dizer. Quando a verdade for flama nos olhos da multidão, o que em nós hoje é palavra no povo vai ser ação”.
Quando a verdade for flama. Thiago de Mello.
Por Alessandra Elias de Queiroga, Márcio Soares Berclaz e Marlon Alberto Weichert no GGN.
O singular e autêntico Ministério Público brasileiro, instituição essencial à Justiça e responsável pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais, nasce com a Constituição de 1988. O constituinte se preocupou que o Ministério Público, dentre outras diversas e relevantes funções, exercesse um papel ativo e protagonista na promoção e defesa dos direitos humanos e dos interesses fundamentais da sociedade.
Passadas mais de três décadas da Constituição de 1988, a missão constitucional do Ministério Público de promoção e proteção dos direitos humanos ainda é pouco reconhecida pela sociedade, seja porque a defesa de direitos não merece tanto espaço midiático como as ações de repressão, seja porque a atuação está aquém do necessário ante as enormes demandas existentes nesse campo. Em qualquer caso, o Ministério Público é pouco reconhecido, cobrado e controlado pelo que faz e deixa de fazer nessas searas. Nem mesmo as forças vivas e ativas do tecido social encontram espaço para acompanhar, entender e monitorar a instituição no desempenho desses seus elevados encargos constitucionais.
É indiscutível que nesses 30 anos o Ministério Público produziu um rol extenso de importantíssimas ações judiciais e extrajudiciais na defesa de interesses difusos e coletivos em múltiplos flancos dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. A defesa do direito à saúde, à educação, ao meio-ambiente, das pessoas com deficiência, à cidade, ao desenvolvimento social, dos povos indígenas, dos quilombolas, à sexualidade e muitos outros estiveram no cerne da atividade institucional. Mas, mesmo assim, o cumprimento eficiente dessa missão constitucional segue um desafio a exigir resiliência, dinamismo e adaptação. Mas, sobretudo, a pedir mais presença social.
Nesse período, muitas foram as tentativas tanto de enfraquecimento como de aprimoramento do Ministério Público. Muitas vezes houve a pretensão de se controlar a instituição por conta dos seus acertos. Mas, em outras, o objetivo foi estabelecer maior participação social, para aperfeiçoar o Ministério Público no cumprimento das promessas constitucionais.
Em linha com esse segundo propósito, no conturbado ano de 2016, a Corregedoria Nacional do Ministério Público e as Corregedorias Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União celebraram um pacto buscando a “modernização do controle da atividade extrajurisdicional pelas Corregedorias do Ministério Público bem como o fomento à atuação resolutiva do MP Brasileiro”, com a edição da Carta de Brasília[1].
Esse documento, aprovado durante o 7º Congresso Brasileiro de Gestão, em setembro de 2016, “explicita premissas para a concretização do compromisso institucional de gestão e atuação voltadas à atuação resolutiva, em busca de resultados de transformação social, prevendo diretrizes estruturantes do MP, de atuação funcional de membros e relativas às atividades de avaliação, orientação e fiscalização dos órgãos correicionais”.[2]
Os termos desse posicionamento causaram grande impacto entre os membros dos diversos ramos do Ministério Público, tendo sido recepcionados com bastante desconforto por alguns, ao mesmo tempo em que outros celebravam a retomada do perfil do Ministério Público na sua matriz constitucional.
Não por acaso a denominada Carta de Brasília, verdadeira joia do cerrado produzida pelo Ministério Público brasileiro, apresenta vários itens coincidentes com as reflexões levadas a efeito em dois artigos recentes por nós publicados[3], nos quais, entre outras ponderações, procuramos fazer uma avaliação da necessidade da transformação do sistema de justiça a partir do protagonismo da indispensável participação popular, além de apresentar algumas ideias do que seria necessário para o aperfeiçoamento do Ministério Público Brasileiro no desafio de dar maior efetividade à confiança que a Constituição da República de 1988 depositou na instituição.
Dentre as diretrizes estruturantes da Carta de Brasília está o “desenvolvimento de uma nova teoria do Ministério Público, embasada nos direitos e nas garantias constitucionais fundamentais, que possa produzir práticas institucionais que contribuam para a transformação da realidade social”, a “[c]oncepção do Planejamento Estratégico como garantidor da Unidade do Ministério Público”, a importância do “estabelecimento de Planos, Programas e Projetos que definam, com a participação da sociedade civil, metas claras, precisas, pautadas com o compromisso de efetividade de atuação institucional em áreas prioritárias de atuação, valorizando aquelas que busquem a concretização dos objetivos fundamentais da República e dos direitos fundamentais”, a relevância da “valorização das Escolas Institucionais e capacitação permanente dos Membros e Servidores, estimulando o conhecimento humanista e multidisciplinar”, o “estabelecimento da prática institucional de atuação por meio de projetos executivos e projetos sociais, de maneira regulamentada e com monitoramento para verificar a sua efetividade”, a necessidade da “criação de canais institucionais que possibilitem o diálogo e a interação permanente com as organizações, movimentos sociais e com a comunidade científica” e o “aprimoramento da transparência da atuação institucional e fomento ao controle social”, inclusive o “aprimoramento dos mecanismos de prestação de contas à sociedade acerca das metas estabelecidas e dos resultados alcançados”.
Editada há 6 anos, a Carta de Brasília efetivamente não impactou o modo de atuar do Ministério Público, que segue amarrado à tradição e ao exercício de suas funções sob premissas conservadoras. Mas isso não é motivo para desistir. O norte traçado para o Ministério Público pela Carta de Brasília voltou à tona com o Fórum Social Mundial temático Justiça e Democracia – FMSJD, realizado nos dias 26 a 30 de abril de 2022, em Porto Alegre-RS. O Fórum teve o papel de propiciar novas reflexões sobre o caminho a ser percorrido para a consolidação de um sistema de justiça que seja capaz de promover uma cidadania efetiva. Um sistema de justiça que democratize o acesso à justiça e aos direitos, e incorpore necessárias inovações institucionais.
Foi justamente no embalo dialético dos encontros, discussões e proposições do Fórum Social Mundial temático Justiça e Democracia, que ocorreu o seminário nacional “O Sistema de Justiça que Queremos”, promovido pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), nos dias 28 e 29 de julho de 2022, em Guararema-SP. Talvez um dos aspectos mais simbólicos desse encontro tenha sido a sua realização na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), mantida por um dos mais significativos movimentos sociais do Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, fundado em 1984.
Na verdade, desde a sua criação, o MST organiza cursos para seus militantes e dirigentes: tanto é assim que ao longo do tempo foram construídas diversas escolas para essa finalidade. Porém, na segunda metade da década de 1990, foi iniciada a campanha para a construção da ENFF, justamente em razão da necessidade sentida de se ter um espaço para o fortalecimento da prática de organização social e política em âmbito nacional, articulando as diversas escolas estaduais e regionais do MST.
Segundo PRINCESWAL[4]:
“a ENFF seria então um: espaço de convivência, de intercâmbio de experiência, de fortalecimento de valores, de cultura, de análise, de estudo (…)” o que só seria possível “com a apropriação dos conhecimentos científicos produzidos para a melhor compreensão da realidade, dos contornos assumidos pela luta e para elaborar estratégias para nela intervir”.
Impulsionada por personalidades da estatura de Sebastião Salgado, José Saramago e Chico Buarque, e uma campanha nacional e internacional de apoio à sua construção, em 2005 a escola virou realidade.
Foi nesse espaço ideal, poeticamente descrito por ROCHA[5] como “um misto de Magia e Encanto”, no qual, “muito além da militância política” ocorre “um encontro de vidas, de simbolismos, signos, uma energia positiva que embala sonhos, lutas e conquistas históricas da classe trabalhadora do campo e da cidade”, é que estivemos para renovar a promessa de construir um sistema democrático de justiça, sob o chamado de Florestan Fernandes: “não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou com os explorados”.[6]
O Seminário, articulado e organizado pela ABJD, contou com a participação do TRANSFORMA MP – Coletivo por um Ministério Público Transformador (ao qual os signatários pertencem), da AJD – Associação Juízes pela Democracia, das Defensoras e Defensores pela Democracia, da FENED – Federação Nacional dos Estudantes de Direito, da APD – Advogadas e Advogados Públicos pela Democracia e de outros atores do sistema de Justiça.
Como por “magia e encanto” – mas na verdade por compromisso mesmo – , membros do Ministério Público (inclusive estes veteranos), juízes, advogados, professores, defensores públicos, advogados públicos, estudantes de direito e jovens alunos da escola, estavam todos juntos refletindo sobre as mudanças necessárias para a construção de uma justiça substantivamente democrática, longe das discussões contaminadas por interesses corporativos. Deu-se naquele espaço um encontro entre os diversos operadores do mundo jurídico, todos conversando sob a dialética necessária que advém das argumentações entre integrantes de instituições distintas. E, nos intervalos das reflexões, arregaçaram-se as mangas para empreender os mais diversos trabalhos comunitários.
Aqueles dias nos fizeram lembrar de que, apesar de extremamente privilegiados, somos também trabalhadores e que a nossa natureza humana é a do compartilhamento e não a da disputa neoliberal individualista e autofágica.
E por que narramos essa experiência tão pessoal? Porque ela guarda relação direta com praticamente todos os consensos que obtivemos com referência ao tema que nos movia: o sistema de justiça que queremos é o da inclusão, da fraternidade, da participação popular, da transparência, da formação integral e humanística dos seus operadores. Entre tantas interlocuções possíveis, discutiu-se o papel da justiça e do direito ante a crise, o golpe, as empresas e os Estados nas economias dependentes, a especulação fundiária, a organização dos trabalhadores, a resistência dos povos indígenas e a sua luta por reconhecimento, dentre muitos outros assuntos. Como síntese de tantas boas exposições e discussões, vale ecoar as palavras de Vera Baroni, quem, a partir de seu exemplo de sabedoria e coragem na militância por direitos, alertou que “se a mudança não estiver em todos os âmbitos [inclusive no próprio sistema de justiça], não haverá mudança nenhuma” e, especialmente, que “já passou da hora de o sistema de justiça brasileiro se aproximar da sociedade”.
É justamente a partir daí que reafirmamos a necessidade de aproximação efetiva e real dos aplicadores do direito com os principais temas e necessidades do restante da classe trabalhadora brasileira, esperançosa por um sistema de justiça que assegure um Estado Democrático de Direito preocupado com a efetiva transformação da realidade. Afinal, a percepção de quem participou do FSMJD e desse seminário é que o mundo dos operadores do direito se divorciou da classe trabalhadora, das pessoas mais pobres e dos problemas do cidadão comum. E, para retomarmos a nossa vocação constitucional, precisamos aprofundar as discussões e fazermos uma radical modificação em nossas estruturas.
Quer-se um sistema de justiça que, antes de ser fetichizado e autorreferente aos próprios interesses corporativos daqueles trabalhadores que temporariamente o integram, atenda às reais e cotidianas necessidades do povo brasileiro. Em especial, um sistema comprometido com os objetivos da República, dentre eles a erradicação da pobreza e a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. É de uma radical mudança de entendimento sobre o papel do sistema de justiça na democracia que se necessita, não de mudanças cosméticas.
Especificamente no que toca ao “lugar” do Ministério Público, a Carta de Brasília parece ser, ainda, uma excelente bússola. Por mais que a navegação dela propiciada não tenha sido suficientemente assimilada no espaço-tempo e na própria cultura do agir institucional, além de ser uma ilustre desconhecida para a sociedade brasileira, os princípios ali expostos permanecem relevantes e atuais.
É premente repactuar o compromisso com uma nova maneira de pensar o Ministério Público, dando mais transparência à sua atuação, prestando contas à sociedade, ouvindo movimentos sociais e sociedade civil em geral, elaborando projetos de atuação, prestando contas e, principalmente, capacitando seus membros, em escolas que compreendam a dimensão democrática da missão que a Constituição atribuiu à instituição.
A Carta de Brasília foi, sem dúvida, o reflexo de um momento virtuoso das Corregedorias do Ministério Público. Entretanto, ela também padece do defeito de haver sido elaborada sem a participação direta da sociedade. Essa participação seria fundamental, pois, afinal, o destinatário do trabalho do Ministério Público, e do sistema de justiça, são a população e os cidadãos. De qualquer modo, ela é um excelente ponto de partida para se pensar em mudanças. Afinal, sem romper com paradigmas, os membros das instituições do sistema de justiça permanecerão entrincheirados em seus gabinetes, distanciados da realidade social, assistindo à corrosão da democracia, enquanto o corpo social fenece, clamando por empatia e solidariedade.
Sabemos e enaltecemos a importância e os excelentes serviços que nossa instituição, o Ministério Público Brasileiro, presta em inúmeros campos. Mas temos consciência de que há muito a fazer e a modificar. Esse é o cumprimento do verdadeiro dever de lealdade à nossa instituição: repensar sua atuação, forma de ingresso, capacitação de seus membros e humanização de seus quadros, para que possamos ser agentes de transformação social, com vistas ao bem da coletividade e à construção da democracia real, substantiva.
Assumindo a sua feição constitucional, concretizando sua vocação, poderá o Ministério Público, como ensina GOULART, “utilizar os instrumentos jurídico-políticos de que dispõe para enfrentar todos aqueles que, concentrando riqueza e poder, produzindo miséria e marginalização, alargando as desigualdades sociais e regionais, tentam impedir a transformação social.”[7]
[1] Vide https://www.cnmp.mp.br/portal/institucional/corregedoria/carta-de-brasilia
[2] Idem.
[3] Vide https://jornalggn.com.br/cidadania/a-crise-do-sistema-de-justica-tres-questoes-fundamentais-por-alessandra-elias-de-queiroga-marcio-soares-berclaz-e-marlon-alberto-weichert/ e https://jornalggn.com.br/cidadania/reforma-do-sistema-de-justica-e-consolidacao-do-perfil-constitucional-no-ministerio-publico/
[4] PRINCESWAL, Marcelo. 2015. As Experiências de Formação Humana dos Movimentos Sociais: as universidades populares educando rigorosamente o Estado? Tese de Doutorado apresentada ao PPFH-UERJ como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, p. 403/404.
[5] Vide http://arnobiorocha.com.br/2021/09/05/escola-nacional-florestan-fernandes-a-hogwarts-de-esquerda/. Acesso em 31 de agosto de 2022.
[6] FERNANDES, Florestan. Para o sociólogo, não existe neutralidade possível: o intelectual deve optar entre o compromisso com os exploradores ou com os explorados. Leia, v. 7, n. 96, p. 25, 1986.
[7] GOULART, Marcelo Pedroso. 2019. Elementos para uma Teoria Geral do Ministério Público. Belo Ho