Crises, circo, cerco e ciclos

Artigo da Procuradora de Justiça MPPE aposentada e membro do Coletivo Transforma MP, Maria Betânia Silva, no GGN.

Embora a História do Direito, transposta em códigos, leis esparsas, instituições e, sobretudo, no texto constitucional, diga muito sobre a História de uma sociedade, sobre sua evolução e suas involuções, o fato é que o repertório de normas escritas e suas respectivas classificações está longe de contar a História como um todo, que, não raro, é sacudida por forças violentas. Essas forças amassam os papéis, jogando-os sob botas que passam por cima de qualquer linha traçada e que represente um limite civilizatório a ser respeitado. Desse modo, caminha-se para além de qualquer limite e para o fundo de um poço com alçapão, como se tem dito nas redes sociais.

CRISE

É essa a sensação que se vivencia no Brasil desde 2016, pelo menos, quando se tirou do poder a Presidente Dilma, acenando-lhe um perverso “Tchau, querida!”. Situação, aliás, que foi muitíssimo agravada pela Lava Jato, a qual, com os seus homens engravatados, vaidosos de Harvard  e pobres de espírito democrático, forçou e arrebentou as linhas de interpretação constitucional para liberar endinheirados delatores (inventores de informação útil) em troca da prisão do ex-Presidente Lula, baseada apenas em convicção. Finalmente, a convicção revelou -se como farsa e foi desfeita por decisão do STF que constatou a inexistência de provas contra Lula, fato que tornou insustentável a prisão dele, sonhada numa apresentação de Power Point para atingir os fins messiânicos do combate à corrupção, sem nunca efetivamente combatê-la.

Mais especificamente, considerando a fratura exposta do sistema judicial brasileiro decorrente da Lava Jato, nesse mês de agosto de 2021, a temperatura da crise subiu alguns graus.

Há uma corrida frenética para não deixar a corda se partir e para fazer valer as instituições burocráticas e institutos da doutrina jurídica brasileira. Judiciário, Ministério Público e Conselhos Superiores que são instituições de garantia do ideal democrático acolhem em seus gabinetes pessoas com opiniões divergentes e até opostas e, em certa medida, nutridas por embates cotidianos. Isso por si só constituiria uma realidade democrática, não fossem os delírios de alguns a impor a necessidade de se fazer um esforço hercúleo, beirando quase o impossível, por parte daqueles que querem a mudança do estado de coisas cada vez mais desafiador quanto à preservação de um mínimo direito humano e de cidadania. Além do ambiente febril no sistema de justiça, no campo da representação política, se tem uma Câmara de Deputados, em boa parte, muito simpática à engorda de bois e não exatamente preocupada com a fome do povo que grassa nas esquinas das cidades e se estende no cerrado por um deserto onde antes era espaço verde de planta e habitat dos bichos mais atraentes e diversos da região.

Vive-se uma situação contrária ao respeito às diferenças e à nossa diversidade como povo. Vive-se uma situação que dá mostras de ser uma ameaça à nossa integridade física, social, política, territorial e institucional.

Paira sobre a cabeça dos membros dessas instituições (dos que querem superar abusos e desmandos e até dos que querem preservar apenas seus privilégios sem a consciência de que podem literalmente ter  os seus cargos extintos)  o temor de que as armas  venham a calar os embates sociais por meio das balas metálicas, sem que os detentores dessas armas assumam a sua própria divisão interna. Falsamente, exibem-se como bloco homogêneo capaz de lutar por todos. Hipocrisia! Há uma crise profunda entre as instituições, dentro e fora delas cuja solução, para quem quer viver num país sem sobressaltos quanto à sua própria existência, tem que admiti-la, isto porque, do outro lado, quem quer guerra e caos, encontra na crise a justificativa para guerrear e mantê-la.

CIRCO

Que ninguém se esqueça, mas o homem que hoje ocupa a cadeira de Presidente do Brasil é egresso das Forças Militares e tem na cabeça a ideia de ser um “Imperador”, anunciando de forma tosca: “Constituição sou eu”, “eu sou o Partido X” mesmo sem ter um. Além disso, declaradamente, seus filhos são os seus astros, a tal ponto que um deles chegou a ser cogitado para servir como embaixador do país. Eis aí o exemplo de uma família real, sem títulos nobiliárquicos. Os tempos do Imperador, que fique bem claro, não são sinônimo de bondade. Foi nessa época que pessoas foram escravizadas. Por outro lado, a dimensão estendida da família real, os seus agregados, encontra nas milícias (réplica na contemporaneidade brasileira dos capitães do mato) a proteção dos seus interesses e a realização das suas vontades.  Em torno desse “Imperador” sem coroa, mas coberto da arrogância despótica, gravitam outros serviçais, dentre estes, destaque-se: o Procurador do Rei.

É um “espetáculo” de degradação, um atrás do outro, o que ocorre no centro da “Corte Imperial”. É como se ela fosse um picadeiro onde tudo que parece absurdo e, efetivamente, o é acontece diante de uma plateia atônita. É como um circo sem magia, um circo mambembe que não encanta sequer as crianças  para as quais o mundo real lhes serve apenas como fonte de imaginação. A imaginação seca diante do que se vê. É circo repleto de palhaços sem profissionalismo  que se movem na fronteira entre o cômico e o trágico sem saber interpretar nenhuma desses estados. Eles são um desses estados em essência. É circo cuja plateia se divide entre gente boquiaberta, que vê o fogo consumir a lona e se coloca na saída de emergência e gente que, ainda, se acha absorta nos aplausos.

O homem que, na República, detém o importante papel institucional para fazer funcionar com regularidade duas grandes instituições, Ministério Público e Suprema Corte, aquele que poderia contribuir para a esperança equilibrista, a fim de conter os horrores e os odores desse “reino” putrefato e, também, inibir os absurdos nesse circo de lona furada com fios expostos, ao invés de agir seguindo as atribuições que lhe foram conferidas pela CF/88, bloqueia-as.

CERCO

O trabalho que está sendo realizado pela CPI do Senado, por exemplo, vem provocando mal-estar, dentre muitas outras coisas, na soberba do “Imperador”.

Fácil ver que a morte se senta junto com vários depoentes diante dos senadores. A CPI, como se sabe, é um procedimento investigatório levado a cabo por essa Casa Legislativa porque decorreu de uma provocação feita por alguns dos seus membros para apurar omissões e decisões desastrosas do Presidente da República na gestão da Pandemia da Covid-19, a qual, no país, já causou mais de meio milhão de mortes e coloca o Brasil no mapa mundial de combate à pandemia como um dos países com os piores índices de morte e contaminação, algo que somente não está ainda pior por causa do trabalho dos cientistas brasileiros à frente dos Institutos de Pesquisa como Fiocruz e Butantan e, da capilaridade do SUS, que conta com profissionais de saúde dedicados e capazes de superar a inércia do Ministério da Saúde, marcado pela troca sucessiva de ministros e pela falta de habilidade, competência e comprometimento de um dos últimos, que ao longo de um ano, assumiu a pasta e agora se encontra na mira da CPI.

Como sói ocorrer com todo procedimento de natureza investigatória, ao final dessa CPI será elaborado um relatório de tudo que foi apurado e ele será encaminhado ao Procurador Geral de República (PGR) o qual, após exame minucioso, poderá ou não oferecer uma denúncia contra o Presidente, bastando para tanto que vislumbre indícios suficientes da prática de crimes. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, a Ministra Rosa Weber em direção contrária ao pedido de suspensão de notícia-crime contra o Presidente da República, pedido este formulado pelo PGR, afirmou que “no desenho das atribuições do Ministério Público, não se vislumbra o papel de espectador das ações dos Poderes da República”. O pedido de suspensão, por mais chocante que seja, se fez ante a ocorrência de indícios de omissão e desvios na compra de vacina do governo brasileiro, representado na pessoa do Presidente.

O despacho proferido pela Ministra não apenas faz lembrar qual é a atribuição do PGR como também insinua os contornos de uma atuação fiscalizadora e atenta do trabalho de investigação que vem sendo realizado pelo Senado, através da CPI. Mutatis Mutandis, numa atuação em tudo harmônica com o texto da Constituição Federal de 1988, nada impediria que o PGR acompanhasse, no recinto mesmo onde estão trabalhando os membros da CPI, os depoimentos tomados, como que exercendo aí também um controle da atividade investigatória no sentido de garantir os direitos fundamentais e coibir eventuais abusos. Ou seja, nada impediria que o PGR atuasse no âmbito da CPI como eventualmente um Promotor de Justiça atua no âmbito de um inquérito policial, tomando a devida cautela para se manter imparcial no desenrolar dos trabalhos que cabe à polícia realizar porque ela, em tese, detém os meios necessários para tanto.

Mas descrever esse tipo de atuação é quase que idealizar um PGR. A realidade mostra que temos um agindo à imagem e semelhança do seu senhor. Com isso, vão sendo rompidos os contornos institucionais construídos ao longo de décadas da História do Direito no País e não por acaso, subprocuradores da República, em representação dirigida ao Conselho Superior do Ministério Público Federal, invocaram a aplicação do art.57, da Lei Complementar nº75/95, postulando a designação do Subprocurador Geral da República para agir, em lugar do PGR, neste caso.

CICLOS

O Brasil vai assim a galope aos primórdios da República, pela boca e atitudes de um Presidente transmutado em “Imperador” sem coroa, que vocifera em favor da tradição, da família e da propriedade. A tradição é manter nesse território os homens, os machos brancos, de peito estufado contra negros, índios e mulheres, exatamente como fizeram os colonizadores. Estes chegaram em caravelas, o Presidente, ora em motocicleta, ora a cavalo para cumprir um suposto papel de macho: demarcar território. Animalesco, aliás! Mas essa demarcação, ironicamente, nem o xixi, nem o peito estufado, nem as patas lhe são suficientes; as armas lhe são providenciais. É como se fossem continuação dos seus braços e demonstração de coragem, a qual, na realidade, ele não tem! Tirem-lhe as armas e não se ouvirá um pio.

Com mais um passo à frente a ser dado por esses homens armados, conheceremos em tempo real o Brasil Império e a Guarda Nacional que protegia o Imperador, bem como a importância do Procurador do Rei.

Como se fosse uma série, “Enquanto isso na sala de Justiça”, alguns membros do Ministério Público enfrentam dificuldades para agir diferentemente do Procurador do Rei, outros se acomodam em fazer um pouco e, de mão em mão, canetadas consignam despachos salutares, brilhantes, corajosos e alguns outros tresloucados e determinantes do pior; os magistrados  vão tomando as decisões nos casos para os quais são demandados ou diante das situações em que precisem defender a existência e o exercício de suas funções, produzindo juízos ora acertados, ora equivocados. Lá vai o Brasil cumprindo um ciclo de um eterno retorno!

Eterno retorno, aliás, é uma noção trazida por Nietzsche e compreendida por vezes apenas numa dimensão cosmológica como se fosse um destino fatídico. Em uma linguagem didática e acessível a todos, essa noção pode ser explicada através da metáfora de cartas de um baralho[1]. Imagine que essas cartas sejam contínua e perpetuamente embaralhadas… em virtude disso, sucede que as combinações entre elas, dentro de um tempo que é infinito, vão se repetir e podem mesmo indicar uma sequência de repetição porque as combinações das cartas são finitas. Mas, ao mesmo tempo, esse processo pode abrir a possibilidade de “um novo referencial cosmológico” diverso daquele que vem sustentando a moral do Ocidente.  Um dos pilares dessa moral, que repousa no Cristianismo, é a do juízo final. Acredita-se no apocalipse e que ele deve ser o fim de tudo, contraposto, aliás, ao começo de tudo: o Big-Bang!

Esquece-se a ciência, segundo a qual o Universo continua se expandindo e também a teoria quântica que enxerga uma partícula cuja trajetória no espaço é incerta. Esquece-se o saber ancestral vindo da África que se move de modo circular e não linear; esquece-se a argúcia dos povos indígenas que protegem a natureza para que os ciclos que lhe favorecem a existência e a sobrevivência não tenham fim. O esquecimento vem do dogma religioso.

Mas, há incertezas dentro do ciclo! Que alívio! E a Filosofia de Nietzsche, paradoxalmente, traz algum conforto. Ela não é a inquietação que popularmente se lhe atribui.

Não se pode negar que há angústia em saber da incerteza da vida mas a ocorrência daquilo que não vislumbramos independe do fato de estarmos ou não conscientes disso. A angústia da morte, por exemplo, decorre justamente da consciência de ter a certeza dela. E isso inspirou um dos versos de Vinícius de Morais mais cantados: “…quem sabe a morte, angústia de quem vive, quem sabe a solidão fim de quem ama”.

Em termos práticos, quando as incertezas são muitas e a realidade nos tortura, ser espectador dela não nos emancipa. Voltando à metáfora do baralho, ser espectador nos faz reduzir as cartas e lidar com um número ainda mais limitado de combinações.

É preciso pensar em como se pode embaralhar as cartas, transvalorando aquelas que sugerem uma seqüência indesejada. Aplicando essa metáfora à realidade brasileira, vê-se que nem todas as possibilidades foram ainda jogadas: se o atual Presidente e sua “Guarda Nacional” pretendem jogar as cartas sem a maioria do povo, então que a maioria do povo se mantenha no baralho mudando o valor das cartas.

O Senado é instituição antiga do Brasil e desde 1889, ano da proclamação da República, cumpre o papel de representar os estados da Federação Brasileira que nunca funcionou, na realidade, como um estado federado tal como dito na teoria. Na prática, por ter sido a República e a forma federativa de Estado, um ato imposto pela força militar por importação e influência de ideias estadunidenses, a autonomia dos estados-membros virou ficção nos primeiros anos dessa República, no Brasil, evoluindo para um funcionamento cheio de falhas, até se tornar a nossa mais profunda realidade.

Na Constituição de 1988, pela representatividade conferida ao Senado, cabe a essa casa legislativa aprovar o nome do membro do Ministério Público indicado pelo Presidente para assumir o cargo de Procurador Geral da República. Atualmente, o PGR está ultimando seu mandato e foi anunciado pelo Presidente da República para continuar no cargo, sinalizando, portanto, a sua recondução. Nessa hipótese, não se dispensa a sabatina que cabe ao Senado realizar para aprovar ou não o nome do indicado ao cargo.

Se a inércia cúmplice do PGR ignorando a má gestão da pandemia pelo governo federal potencializa os vírus em circulação, no âmbito dos estados-membros da federação brasileira, tem-se obtido algum resultado com a oferta de vacina em prol da população justamente porque, na situação de crise, os governadores descobriram que o sistema federativo brasileiro abre possibilidades para exercício da autonomia dos estados em matéria de saúde, o que foi sinalizado em decisão do STF sobre o assunto.

Nesse cenário há uma carta a ser usada pelo Senado em duas direções historicamente importantes.

A primeira, rejeitando o nome do indicado à recondução ao cargo de PGR, obrigando o Presidente a repensar suas escolhas, para assim se esgotar as tentativas institucionais de conter a sua pulsão destruidora do país, podendo o Senado, inclusive, estender essa rejeição também ao nome daquele que foi indicado à ocupação de vaga no STF por ser “terrivelmente evangélico”, na esteira de um fundamentalismo religioso que transpõe para o Brasil a lógica Talibã e ofende o princípio da laicidade.

A segunda direção que pode ser um grande passo para o Senado e para o país é fortalecer a organização político-administrativa, enfraquecendo o Executivo Federal que pretende concentrar em suas mãos a administração do país a favor dos seus próprios interesses. Enfraquecido nos seus poderes administrativos e incapaz de coordenar o que quer que seja, o Presidente haverá de assistir aos estados correrem nas raias da autonomia de seus governadores, realizando o sonho federativo que motivou a adoção desse modelo, com menos traumas do que aqueles vivenciados nos EUA. Atente-se a partir disso para a escolha criteriosa dos membros do Congresso Nacional e façam o Brasil feliz de novo.

Tudo isto, então, contraposto à lógica apocalíptica que orienta pessoas terrivelmente evangélicas, leva a pensar que não há dia de Juízo Final para aqueles que não acreditam em Messias. E, para os que nele acreditam, lembrem-se dos inúmeros avisos sobre os falsos Messias: quem é que lhes garante que aquele que se apresenta como tal seja o verdadeiro? Em que reside exatamente o poder de Messias? Na indicação de discípulos sem qualquer presença entre o povo? No gatilho de uma arma feita pelo homem? Ou, na palavra? Qual é a palavra de Messias que prevalece em nossos corações: aquela nos assegura a salvação ou que nos leva à destruição?

…a refletir…

*Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça MPPE – aposentada e Membra do Coletivo Transforma MP. 

[1] Melo Neto, João Evangelista Tude de. “10 Licões sobre Nietzsche”. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. – (Coleção 10 Lições). Pp 88-98.

 

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