Caso Miguel: Por que negar o racismo estrutural deixa, nós brancos, em lugar de conforto e privilégio?

Quando se fala em racismo estrutural é preciso entender que os personagens das histórias não estão ali, com suas cores de pele, de forma aleatória, mas que existe toda uma história de desigualdade, exploração e violência racial por trás

Artigo de Érika Puppim* no GGN 

O caso do menino Miguel, de apenas 5 anos, fez sangrar a ferida do racismo à brasileira, de herança escravocrata. A sordidez do caso expõe a mecânica dessa estrutura silenciosa e bruta. Patroa branca moradora de prédio de luxo; empregada doméstica negra trabalhando durante a pandemia, precisa levar o filho para o trabalho. Patroa branca fazendo as unhas, manicure “delivery” enquanto a empregada passeia com o “pet”. Eis a cena.

Quando o pequeno Miguel pede por sua mãe Mirtes, torna-se um problema para a patroa e suas unhas. Como se resolve o problema do racismo no Brasil? Fechando os olhos para ele. De certo modo, foi o que ocorreu. A solução foi enfiar a criança no elevador apertar qualquer botão e pronto (!).

Apesar de ser gritante a desumanização do menino Miguel, que por ser “filho da empregada”, foi simplesmente colocado sozinho no elevador como se “encomenda” fosse, o discurso que vemos de pessoas brancas, especialmente dos setores conservadores, é de que “foi uma fatalidade, não tem nada a ver com racismo!” Como se fosse plausível imaginar que esta senhora colocaria sozinho no elevador o filho de 5 anos de uma amiga, da vizinha, quiçá o próprio filho.

O Sistema de Justiça Criminal, tão suave com a patroa, lhe liberou após pagar R$20.000 de fiança, porém, caso o contrário ocorresse – ainda que soe quase impossível tamanho descaso de uma babá, podemos imaginar o tratamento penal duríssimo que esta mulher negra receberia.

Ao que parece, para muitos de nós brancos, é tudo coincidência nesse cenário, assim como também foi uma mera coincidência o fato da primeira morte de Coronavírus registrada no RJ,  ter sido a de Dona Cleonice Gonçalves[1], empregada doméstica que estava trabalhando na casa da patroa que voltara infectada de uma temporada na Europa. Ela não teve folga e hoje não tem mais vida.

Quando se fala em racismo estrutural é preciso entender que os personagens das histórias não estão ali, com suas cores de pele, de forma aleatória, mas que existe toda uma história de desigualdade, exploração e violência racial por trás. Esse conceito já vinha sendo trabalhado pela filósofa, historiadora e precursora do feminismo negro no Brasil, Lélia Gonzalez, desde a década de 80, quando conclamou a construção de um debate nacional sobre o racismo, a partir de sua dimensão estrutural e das suas práticas enquanto modo de exclusão da comunidade negra[2].

Há ainda quem insista em negar o racismo afirmando ser desnecessário falar sobre isso (como se desta forma o racismo “sumisse” num passe de mágica), empregando bordões rasos: “somos todos humanos”. Para estes ainda é preciso dizer o óbvio: sim, somos todos iguais biologicamente, mas o conceito de raça é um conceito social, construído historicamente por cada sociedade, sendo o racismo excludente estruturante na formação da sociedade brasileira.

Percebemos o reflexo dessa estrutura racial quando olhamos para as cores das crianças, adolescentes ou adultos mortos pelas forças de segurança do Estado. Notamos a “coincidência” – apenas alguns exemplos: o menino João Pedro em São Gonçalo/RJ; o adolescente Dyogo Costa Xavier de Brito, em Niterói/RJ, que saía de casa com sua mochila contendo suas chuteiras; e o músico Evaldo dos Santos Rosa, em Guadalupe/RJ, que estava indo com sua família para um chá de bebê, vindo a ser morto após seu veículo ser alvejado com 80 tiros.

Nesses e tantos outros casos a “coincidência” é que as vítimas são negras e suas vidas são desvaloradas como “seres matáveis”, habitantes da “zona de não-ser” como nos ensina o filósofo Frantz Fanon[3], não sendo dignas de vida e nem mesmo da tutela penal, visto que os agentes estatais, na maior parte das vezes, não chegam a ser responsabilizados penalmente.

É preciso ainda lembrar que boa parte dos agentes policiais são também negros, recrutados em parcelas vulneráveis da sociedade, como agentes desvalorizados e descartáveis pelo Estado, para executar como ponta de lança sua política de segurança pública baseada no enfrentamento bélico e no extermínio, na medida em que as constantes mortes de pessoas negras são “socialmente aceitáveis” e vistas como um “mero dano colateral”[4], em uma verdadeira necropolítica, na terminologia do renomado intelectual camaronês Achille Mbembe[5].

Não é de se crer que a pena e a prisão possam ser a panaceia para os males do mundo, notadamente para o racismo, mas faz parte dessa necropolítica a desumanização da vítima negra, a ponto desta não ser considerada ser humano em sua integralidade, nem mesmo merecedora da proteção do Direito Penal – mas ser apenas o alvo deste.

Assim, nós brancos, assistimos impávidos e serenos, as estas e a tantas “coincidências” em nossa sociedade racista, tal como o fato de termos tão poucos professores universitários negros, raros juízes e promotores negros, pouca representatividade negra na mídia, no jornalismo, na política e em altos cargos executivo-empresariais, mesmo tendo pouco mais de 50% da população negra[6].

Muitos de nós não queremos enxergar a disparidade racial em lugares de destaque ou poder, as quais expõem os privilégios da nossa branquitude e da nossa desigualdade vincada predominantemente pela cor da pele. E assim, o conservadorismo branco pretende conservar a sociedade tal como ela hoje é: racista, desigual e violenta.

Outro argumento comum no negaciocismo do racismo é o mito da “democracia racial[7]”, pelo fato de que não tivemos um racismo segregacionista explícito, legalmente instituído como nos EUA. No entanto, temos uma história própria de racismo excludente à brasileira, calcada no colonialismo, na miscigenação decorrente dos estupros coloniais e na ideologia do “branqueamento da população[8]”. Ademais, o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888, sem que nenhuma política pública tenha sido implementada para incluir a população negra em um projeto efetivo de cidadania e democracia, em sentido material.

Assim, em razão desse desejo de nos manter em um lugar cômodo e confortável, no qual não enxergamos o racismo, é que vemos tanta indignação com a política afirmativa de cotas raciais, afinal, quando uma parcela de vagas em universidades públicas ou em concursos públicos se destina a corrigir uma desigualdade histórica, se busca uma sociedade mais justa e igualitária, mas para a branquitude é apenas a perda de um privilégio.

Portanto, sendo o racismo estrutural um problema que afeta a toda sociedade, retomo mais uma vez as lições de Lélia Gonzalez: “Enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo: negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma práxis de conscientização da questão da discriminação racial nesse país, vai ser muito difícil no Brasil, chegar ao ponto de efetivamente ser uma democracia racial.”[9]

Um exemplo recente de como as pessoas brancas podem de fato colaborar na luta antirracista foi a corrente que mulheres brancas fizeram, formando uma barreira entre os manifestantes negros e a polícia, durante os protestos contra o assassinato pela polícia de Breonna Taylor, uma jovem negra profissional de saúde em Louisville, EUA[10], usufruindo assim de seu privilégio branco para apoiar e proteger a manifestação antirracista.

Nessa esteira, cabe especialmente a nós, brancos, refletir sobre a parcela que nos cabe nesse latifúndio de dor, extermínio e opressão, bem como sobre o que temos feito e deixado de fazer para perpetuação dessa desigualdade racial. Para além de reconhecer o racismo bem diante dos nossos olhos, é urgente rever nossos privilégios e agir de fato, para que um dia, quem sabe, possamos chegar a uma sociedade menos racista, menos injusta e violenta e assim, mais humana e digna para todos.

 

*Érika Puppim – Promotora de Justiça do MPRJ e integrante do Coletivo Transforma MP

 

[1] Ver mais na coluna de Djamila Ribeiro: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-ribeiro/2020/03/domestica-idosa-que-morreu-no-rio-cuidava-da-patroa-contagiada-pelo-coronavirus.shtml

[2] https://terradedireitos.org.br/acervo/artigos/20-de-novembro-resistencia-negra-na-luta-contra-o-racismo-estrutural/22682

[3] https://www.geledes.org.br/frantz-fanon-pele-negra-mascaras-brancas-download/

[4] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/11/politica/1541976646_763406.html

[5] MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.

[6] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-populacao-chega-a-205-5-milhoes-com-menos-brancos-e-mais-pardos-e-pretos

[7] Artigo de Abdias do Nascimento: https://www.geledes.org.br/democracia-racial-mito-ou-realidade/

[8] https://www.geledes.org.br/a-ideologia-do-branqueamento-tudo-que-voce-precisa-saber/

[9]Entrevista concedida em 1985: https://banhodeassento.files.wordpress.com/2011/11/depoimtuape.pdf

[10] https://www.blackenterprise.com/white-protesters-form-human-barrier-to-shield-black-protesters-from-louisville-metro-police/

[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/11/politica/1541976646_763406.html

[2] MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.

[3] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-populacao-chega-a-205-5-milhoes-com-menos-brancos-e-mais-pardos-e-pretos

[4] Artigo de Abdias do Nascimento: https://www.geledes.org.br/democracia-racial-mito-ou-realidade/

[5] https://www.geledes.org.br/a-ideologia-do-branqueamento-tudo-que-voce-precisa-saber/

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