Arquivos Diários : junho 12th, 2020

A luta antirracista é também por uma infância livre de trabalho

Hoje (12), no Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, o blog é orgulhosamente de Elisiane Santos, procuradora do Trabalho em São Paulo e mestra em Filosofia pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (SP)

Artigo de Elisiane Santos integrante do Coletivo Transforma MP no Estadão

Nos últimos anos temos discutido a relação entre trabalho infantil e racismo, especialmente a partir de pesquisa realizada no programa de mestrado do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (SP) [1], que, nascida de uma indagação relacionada à cultura, nos levou ao caminho do racismo estrutural na sociedade brasileira.

A partir disso, passamos a tratar do tema nas reuniões do Fórum Paulista de Prevenção e Erradicação do Trabalho infantil, no Ministério Público do Trabalho, junto aos movimentos sociais e entidades parceiras, na perspectiva de que a luta contra o trabalho infantil é também luta por igualdade racial, com vistas à redução das desigualdades sociais e garantia dos direitos fundamentais para todas as pessoas.

Durante muito tempo o racismo esteve ocultado na roupagem de cultura familiar, como se estas famílias tivessem condições de fazer escolhas numa realidade de vida em que direitos fundamentais não encontram materialidade e a luta diária é pela sobrevivência.

Esse discurso da “cultura” do trabalho infantil, desassociado de suas causas estruturais, termina por penalizar as famílias, que são vítimas da violência real, pelo trabalho precoce, com prejuízos ao desenvolvimento saudável das crianças; além da violência institucional, pelo Estado, ao não garantir direitos básicos como moradia, educação, saúde, cultura, entre outros. Muito embora o artigo 227 da Constituição Federal atribua a este e a toda a sociedade – aqui incluídas as empresas – a responsabilidade em assegurar proteção integral.

Quando analisamos o tratamento dado às infâncias no Brasil, encontramos um histórico de discriminações, tanto em relação às crianças pobres, filhas de operários migrantes, quanto em relação às crianças negras, filhas da diáspora. As primeiras, por terem sido vítimas de superexploração do trabalho nas fábricas no período industrial. As segundas, pouco entendidas como também vítimas do trabalho infantil nos estudos e na própria legislação. Passado com o qual não rompemos até os dias de hoje. Basta ver o retrato do trabalho infantil nas ruas nos dias atuais e encontraremos essa relação indissociável. A luta pela sobrevivência nas ruas, no pós-abolição, história normalmente ocultada ou desassociada do trabalho, produz e reproduz uma verdadeira desumanização das crianças negras desse país, que além de carregarem o estigma da marginalização, sequer tiveram proteção legislativa, no início do século, que lhes assegurasse a não exploração no trabalho.

A CLT, na redação original do seu artigo 403, e no parágrafo 2º (ainda presente no texto legislativo), permitia expressamente o trabalho de crianças nas ruas, praças e logradouros, autorizado pelos então Juízes de “menores”, quando verificada a necessidade de subsistência sua ou da família. Tal disposição, absolutamente incompatível com o texto constitucional de 1988, até recentemente vinha sendo aplicada por Juízes de Direito, a fim de justificar o trabalho de adolescentes por necessidade econômica, de forma totalmente contrária às disposições constitucionais sobre a idade mínima para o trabalho e a proteção integral da criança e do adolescente (artigos 7°, XXXIII e 227, CF).

Em relação ao trabalho doméstico não foi diferente o tratamento legislativo. O próprio Estatuto da Criança e Adolescente continha disposição inconstitucional, dispondo sobre guarda de adolescentes para a realização destes serviços. Estabelecia o artigo 248, revogado pela Lei 13.431/2017: “Deixar de apresentar à autoridade judiciária de seu domicílio, no prazo de cinco dias, com o fim de regularizar a guarda, adolescente trazido de outra comarca para a prestação de serviço doméstico (…)”. Importante lembrar que somente em 2013 a partir da Emenda Constitucional n° 72, foi reconhecida a igualdade de direitos entre trabalhadoras domésticos e os demais trabalhadores urbanos e rurais, com protestos e resistência no cumprimento desta legislação pelos empregadores até os dias atuais.

Essa herança colonial pautada no racismo nos permite afirmar que o trabalho infantil está diretamente ligado a este. Não por acaso 70% do trabalho infantil nas ruas é realizado por meninos negros, enquanto o trabalho infantil doméstico, nesta mesma proporção, é realizado por meninas negras. Podemos assim entender que essa “cultura” é em essência uma ideologia presente na formação do Estado brasileiro, que não pode ser atribuída às famílias, pois sedimentada nesse sistema econômico, jurídico, político, que perpetua a segregação racial – e as desigualdades -, a partir da distribuição injusta da riqueza produzida no país, acumulada – é necessário dizer – com exploração da mão de obra de negras e negros escravizados.

Quando realizamos a pesquisa de campo, na dissertação de mestrado, em entrevista com um educador social, este relatou, sem conter a emoção, que era muito difícil convencer uma criança que dormia numa casa sem luz, sem mesa, com um córrego passando por debaixo da sua cama (o chão tinha um buraco), a ir para a escola todos os dias, frequentar os programas socioassistenciais, que oferecem bolsas com valores reduzidos e exigem uma participação distante da realidade por ela vivenciada[2]. Além disso, assistentes sociais entrevistados relataram a resistência das famílias em serem identificadas como “trabalho infantil”, por se sentirem estigmatizadas ao estarem praticando uma ilegalidade. Esses são retratos de realidades de vida de milhares de crianças trabalhadoras.

Revisitamos essas questões históricas e os dados da realidade, para dizer que em pleno ano 2020, com inúmeros protestos ocorrendo no mundo inteiro no enfrentamento ao racismo, e no Brasil,  país com maior população negra fora da África, e que não conseguiu até hoje romper com as amarras desse crime de lesa humanidade[3], é passada a hora de compreendermos o trabalho infantil como uma das violações de direitos produzidas por esse sistema desigual, que nos impõe o enfrentamento do racismo como causa estruturante, para avançarmos na luta por uma infância livre.

A morte do menino Miguel, ocorrida há pouco mais de uma semana, é um exemplo de como o racismo opera cotidianamente na sociedade brasileira, nas mais diversas situações, afetando crianças e adolescentes. Essa violência parte da naturalização de um não lugar de criança, introjetada na sociedade de forma sistêmica, que atua no agir com negligência, descuido, indiferença, desumanização dos pequenos corpos negros, o que ocorre também com o trabalho infantil.

Segundo dados do Observatório de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (MPT, OIT), entre 2007 e 2018 foram notificados 300 mil acidentes de trabalho com crianças e adolescentes até 17 anos[4]. Dias (2019), em reportagem realizada para a Rede Peteca, apontou o distrito Jardim Ângela como o que registrou maior número de acidentes no trabalho infantil em São Paulo nos últimos cinco anos, apontando que a maioria das crianças e adolescentes acidentadas eram negras[5].  Não por acaso, essa região aparece com um dos menores índices de expectativa de vida no Mapa da Desigualdade em São Paulo (2018).[6]

O trabalho infantil incide na menor expectativa de vida, pois além dos acidentes fatais, causa danos à saúde física, mental e social, além de perpetuar ciclos geracionais de baixa escolaridade, trabalho precário, criminalidade, tudo em decorrência da falta de oportunidades e direitos assegurados a essas crianças e suas famílias.

Não é mais possível tratar dessa violência sem análise de suas causas estruturais, que vão muito além de questões culturais, até porque a idade média de ingresso no trabalho, no Brasil, é 25 anos (IPEA, 2015), a traduzir, nessa ótica, uma cultura de trabalho para a juventude, e um discurso apenas seletivo em relação à cultura do trabalho infantil. Fica assim evidente que os marcadores de raça, gênero e classe são determinantes para a compreensão do problema e para a necessária efetivação de políticas de prevenção, reparação e resgate das infâncias.

Lamentavelmente, vivemos um cenário de destruição das políticas de proteção à infância, a exemplo da extinção do Ministério do Trabalho (transformado em Secretaria do Ministério da Economia); extinção da CONAETI, responsável pela articulação interinstitucional e elaboração dos três planos nacionais de enfrentamento ao trabalho infantil, que levaram à redução histórica do trabalho infantil ao longo de três décadas (período em que o país se tornou referência internacional no enfrentamento desta perversa violência praticada contra crianças e adolescentes); cortes orçamentários na educação, saúde, programas sociais (PEC 241); precarização no trabalho (reformas trabalhistas); além do endurecimento de ações policiais nas comunidades, que estão levando ao agravamento das violências praticadas contra crianças e adolescentes.

Somado a isso, a pandemia da Covid 19 traz inúmeros riscos às crianças vulneráveis, em situação de trabalho nas ruas, às que estão no trabalho doméstico ou acompanhando suas mães nesse trabalho, ou ainda em famílias que estão no trabalho informal ou sem rendimentos e são majoritariamente pretas e pardas (IBGE, 2019)[7], sem qualquer plano de ação por parte do governo federal para atendimento dessas famílias.

Diante disso, o Ministério Público e o sistema de Justiça devem atuar na defesa desses direitos, de forma prioritária, com vistas a exigir do Estado e da sociedade – aqui incluídas as empresas –, para a proteção integral de crianças e adolescentes, também a efetivação do princípio da igualdade e não-discriminação, mediante políticas de inclusão de pessoas negras no trabalho, de garantia do direito à moradia, alimentação, educação aos mais vulneráveis, bem como políticas de igualdade de gênero, presentes as mulheres negras na maior parte dessas famílias. Todas essas ações se refletem no enfrentamento ao trabalho infantil.

Contudo, a luta deve ser de toda a sociedade, com apoio às ações de inclusão de negros e negras no trabalho, nas universidades, de forma a reduzir essas desigualdades históricas; com defesa e promoção de uma educação antirracista nas escolas, no dia-a-dia, nas famílias; com práticas de respeito e valorização dos trabalhadores em diferentes funções, em atividades essenciais, no trabalho doméstico; com o fortalecimento de ações, grupos, organizações, pessoas comprometidas com a educação popular, com a cultura de cidadania, denunciando situações de racismo, violências e violações de direitos contra crianças e adolescentes.

É imprescindível que estejamos atentos na escolha de representações políticas comprometidas com os princípios democráticos. A consciência coletiva para transformação desse sistema injusto e desigual é dever decorrente do artigo 227 da Constituição Federal. Somente garantindo direitos fundamentais a todas as pessoas é que conseguiremos proteger as crianças do trabalho infantil.

Direcionar esse olhar para as infâncias negras, que representam a maior parcela da infância que trabalha, é proteger todas as infâncias, pois quando a estrutura da sociedade se movimenta, toda a sociedade se movimenta. Combater o racismo, é, portanto, combater as desigualdades e as violências mais perversas contra nossas crianças. É defender a democracia e proteger a infância.

[1] https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/31/31131/tde-01032018-123114/pt-br.php

[2]  Área rural ou urbana: R$ 25,00 por criança (para municípios com menos de 250 mil habitantes). Área urbana: R$ 40,00 por criança (para municípios, capitais e regiões metropolitanas com mais de 250 mil habitantes). http://www.caixa.gov.br/programas-sociais/peti/Paginas/default.aspx

[3] Embora tenhamos importantes avanços, fruta de luta dos negros e negras, durante o período de escravização, e dos movimentos negros no Brasil, culminando com importante legislação como a criminalização do racismo, o reconhecimento do direito à terra das comunidades quilombolas, ações afirmativas para ingresso nas universidades, obrigatoriedade do ensino afro-brasileiro nas escolas, todos estes direitos ainda defendidos arduamente pelos movimentos e órgãos de defesa para que sejam efetivados, especialmente em relação à igualdade de oportunidades no trabalho.

[4] http://blogs.correiobraziliense.com.br/servidor/mpt-em-11-anos-300-mil-criancas-sofreram-acidentes-de-trabalho/

[5] https://www.chegadetrabalhoinfantil.org.br/especiais/trabalho-infantil-sp/reportagens/jardim-angela-lidera-acidentes-de-trabalho-de-criancas-e-adolescentes-em-sao-paulo/

[6] https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/em-sp-morador-dos-jardins-vive-23-anos-a-mais-do-que-o-do-jardim-angela-aponta-mapa-da-desigualdade.ghtml

[7] Pesquisa sobre Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-11/negros-sao-maioria-entre-desocupados-e-trabalhadores-informais-no-pais

Caso Miguel: Por que negar o racismo estrutural deixa, nós brancos, em lugar de conforto e privilégio?

Quando se fala em racismo estrutural é preciso entender que os personagens das histórias não estão ali, com suas cores de pele, de forma aleatória, mas que existe toda uma história de desigualdade, exploração e violência racial por trás

Artigo de Érika Puppim* no GGN 

O caso do menino Miguel, de apenas 5 anos, fez sangrar a ferida do racismo à brasileira, de herança escravocrata. A sordidez do caso expõe a mecânica dessa estrutura silenciosa e bruta. Patroa branca moradora de prédio de luxo; empregada doméstica negra trabalhando durante a pandemia, precisa levar o filho para o trabalho. Patroa branca fazendo as unhas, manicure “delivery” enquanto a empregada passeia com o “pet”. Eis a cena.

Quando o pequeno Miguel pede por sua mãe Mirtes, torna-se um problema para a patroa e suas unhas. Como se resolve o problema do racismo no Brasil? Fechando os olhos para ele. De certo modo, foi o que ocorreu. A solução foi enfiar a criança no elevador apertar qualquer botão e pronto (!).

Apesar de ser gritante a desumanização do menino Miguel, que por ser “filho da empregada”, foi simplesmente colocado sozinho no elevador como se “encomenda” fosse, o discurso que vemos de pessoas brancas, especialmente dos setores conservadores, é de que “foi uma fatalidade, não tem nada a ver com racismo!” Como se fosse plausível imaginar que esta senhora colocaria sozinho no elevador o filho de 5 anos de uma amiga, da vizinha, quiçá o próprio filho.

O Sistema de Justiça Criminal, tão suave com a patroa, lhe liberou após pagar R$20.000 de fiança, porém, caso o contrário ocorresse – ainda que soe quase impossível tamanho descaso de uma babá, podemos imaginar o tratamento penal duríssimo que esta mulher negra receberia.

Ao que parece, para muitos de nós brancos, é tudo coincidência nesse cenário, assim como também foi uma mera coincidência o fato da primeira morte de Coronavírus registrada no RJ,  ter sido a de Dona Cleonice Gonçalves[1], empregada doméstica que estava trabalhando na casa da patroa que voltara infectada de uma temporada na Europa. Ela não teve folga e hoje não tem mais vida.

Quando se fala em racismo estrutural é preciso entender que os personagens das histórias não estão ali, com suas cores de pele, de forma aleatória, mas que existe toda uma história de desigualdade, exploração e violência racial por trás. Esse conceito já vinha sendo trabalhado pela filósofa, historiadora e precursora do feminismo negro no Brasil, Lélia Gonzalez, desde a década de 80, quando conclamou a construção de um debate nacional sobre o racismo, a partir de sua dimensão estrutural e das suas práticas enquanto modo de exclusão da comunidade negra[2].

Há ainda quem insista em negar o racismo afirmando ser desnecessário falar sobre isso (como se desta forma o racismo “sumisse” num passe de mágica), empregando bordões rasos: “somos todos humanos”. Para estes ainda é preciso dizer o óbvio: sim, somos todos iguais biologicamente, mas o conceito de raça é um conceito social, construído historicamente por cada sociedade, sendo o racismo excludente estruturante na formação da sociedade brasileira.

Percebemos o reflexo dessa estrutura racial quando olhamos para as cores das crianças, adolescentes ou adultos mortos pelas forças de segurança do Estado. Notamos a “coincidência” – apenas alguns exemplos: o menino João Pedro em São Gonçalo/RJ; o adolescente Dyogo Costa Xavier de Brito, em Niterói/RJ, que saía de casa com sua mochila contendo suas chuteiras; e o músico Evaldo dos Santos Rosa, em Guadalupe/RJ, que estava indo com sua família para um chá de bebê, vindo a ser morto após seu veículo ser alvejado com 80 tiros.

Nesses e tantos outros casos a “coincidência” é que as vítimas são negras e suas vidas são desvaloradas como “seres matáveis”, habitantes da “zona de não-ser” como nos ensina o filósofo Frantz Fanon[3], não sendo dignas de vida e nem mesmo da tutela penal, visto que os agentes estatais, na maior parte das vezes, não chegam a ser responsabilizados penalmente.

É preciso ainda lembrar que boa parte dos agentes policiais são também negros, recrutados em parcelas vulneráveis da sociedade, como agentes desvalorizados e descartáveis pelo Estado, para executar como ponta de lança sua política de segurança pública baseada no enfrentamento bélico e no extermínio, na medida em que as constantes mortes de pessoas negras são “socialmente aceitáveis” e vistas como um “mero dano colateral”[4], em uma verdadeira necropolítica, na terminologia do renomado intelectual camaronês Achille Mbembe[5].

Não é de se crer que a pena e a prisão possam ser a panaceia para os males do mundo, notadamente para o racismo, mas faz parte dessa necropolítica a desumanização da vítima negra, a ponto desta não ser considerada ser humano em sua integralidade, nem mesmo merecedora da proteção do Direito Penal – mas ser apenas o alvo deste.

Assim, nós brancos, assistimos impávidos e serenos, as estas e a tantas “coincidências” em nossa sociedade racista, tal como o fato de termos tão poucos professores universitários negros, raros juízes e promotores negros, pouca representatividade negra na mídia, no jornalismo, na política e em altos cargos executivo-empresariais, mesmo tendo pouco mais de 50% da população negra[6].

Muitos de nós não queremos enxergar a disparidade racial em lugares de destaque ou poder, as quais expõem os privilégios da nossa branquitude e da nossa desigualdade vincada predominantemente pela cor da pele. E assim, o conservadorismo branco pretende conservar a sociedade tal como ela hoje é: racista, desigual e violenta.

Outro argumento comum no negaciocismo do racismo é o mito da “democracia racial[7]”, pelo fato de que não tivemos um racismo segregacionista explícito, legalmente instituído como nos EUA. No entanto, temos uma história própria de racismo excludente à brasileira, calcada no colonialismo, na miscigenação decorrente dos estupros coloniais e na ideologia do “branqueamento da população[8]”. Ademais, o Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 1888, sem que nenhuma política pública tenha sido implementada para incluir a população negra em um projeto efetivo de cidadania e democracia, em sentido material.

Assim, em razão desse desejo de nos manter em um lugar cômodo e confortável, no qual não enxergamos o racismo, é que vemos tanta indignação com a política afirmativa de cotas raciais, afinal, quando uma parcela de vagas em universidades públicas ou em concursos públicos se destina a corrigir uma desigualdade histórica, se busca uma sociedade mais justa e igualitária, mas para a branquitude é apenas a perda de um privilégio.

Portanto, sendo o racismo estrutural um problema que afeta a toda sociedade, retomo mais uma vez as lições de Lélia Gonzalez: “Enquanto a questão negra não for assumida pela sociedade brasileira como um todo: negros, brancos e nós todos juntos refletirmos, avaliarmos, desenvolvermos uma práxis de conscientização da questão da discriminação racial nesse país, vai ser muito difícil no Brasil, chegar ao ponto de efetivamente ser uma democracia racial.”[9]

Um exemplo recente de como as pessoas brancas podem de fato colaborar na luta antirracista foi a corrente que mulheres brancas fizeram, formando uma barreira entre os manifestantes negros e a polícia, durante os protestos contra o assassinato pela polícia de Breonna Taylor, uma jovem negra profissional de saúde em Louisville, EUA[10], usufruindo assim de seu privilégio branco para apoiar e proteger a manifestação antirracista.

Nessa esteira, cabe especialmente a nós, brancos, refletir sobre a parcela que nos cabe nesse latifúndio de dor, extermínio e opressão, bem como sobre o que temos feito e deixado de fazer para perpetuação dessa desigualdade racial. Para além de reconhecer o racismo bem diante dos nossos olhos, é urgente rever nossos privilégios e agir de fato, para que um dia, quem sabe, possamos chegar a uma sociedade menos racista, menos injusta e violenta e assim, mais humana e digna para todos.

 

*Érika Puppim – Promotora de Justiça do MPRJ e integrante do Coletivo Transforma MP

 

[1] Ver mais na coluna de Djamila Ribeiro: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-ribeiro/2020/03/domestica-idosa-que-morreu-no-rio-cuidava-da-patroa-contagiada-pelo-coronavirus.shtml

[2] https://terradedireitos.org.br/acervo/artigos/20-de-novembro-resistencia-negra-na-luta-contra-o-racismo-estrutural/22682

[3] https://www.geledes.org.br/frantz-fanon-pele-negra-mascaras-brancas-download/

[4] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/11/politica/1541976646_763406.html

[5] MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.

[6] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-populacao-chega-a-205-5-milhoes-com-menos-brancos-e-mais-pardos-e-pretos

[7] Artigo de Abdias do Nascimento: https://www.geledes.org.br/democracia-racial-mito-ou-realidade/

[8] https://www.geledes.org.br/a-ideologia-do-branqueamento-tudo-que-voce-precisa-saber/

[9]Entrevista concedida em 1985: https://banhodeassento.files.wordpress.com/2011/11/depoimtuape.pdf

[10] https://www.blackenterprise.com/white-protesters-form-human-barrier-to-shield-black-protesters-from-louisville-metro-police/

[1] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/11/politica/1541976646_763406.html

[2] MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.

[3] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/18282-populacao-chega-a-205-5-milhoes-com-menos-brancos-e-mais-pardos-e-pretos

[4] Artigo de Abdias do Nascimento: https://www.geledes.org.br/democracia-racial-mito-ou-realidade/

[5] https://www.geledes.org.br/a-ideologia-do-branqueamento-tudo-que-voce-precisa-saber/