Ainda sobre Jacarezinho: A realidade que grita!

Contam-se, até o momento, 28 mortes, sendo uma de um policial e as demais, segundo apontam as informações colhidas nas declarações públicas da polícia, de “traficantes”.

Por Fabiano de Melo Pessoa no GGN 

Em meio ao tormento trazido pela persistência da crise sanitária gerada pela pandemia da COVID-19, que já completou aniversário de um ano e que se apresenta como o problema central dos debates em todos os meios de comunicação, as questões que devem ser levantadas a partir dos fatos ocorridos na operação policial em Jacarezinho, Rio de Janeiro, no último dia 06 de maio, ainda ecoam em nossas cabeças e merecem ser repercutidas.

Contam-se, até o momento, 28 mortes, sendo uma de um policial e as demais, segundo apontam as informações colhidas nas declarações públicas da polícia, de “traficantes”.

Na data de ontem, 20.05.2021, informações da imprensa nos dão conta de que, em comunicação ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, a Polícia Civil daquele estado, responsável pela operação informou que a “extrema violência imposta” por facção criminosa e “constantes violações aos direitos fundamentais dos moradores”, teriam sido as razões para a realização da operação, mesmo sob a égide de decisão do STF proibindo operações policiais em comunidades carentes, durante a pandemia.

Apresenta-se, portanto, a garantia de direitos fundamentais como justificativa para a realização de operação para dar cumprimento a mandados de busca e apreensão e de prisão, naquela data e na localidade indicada e que resultou em número tão elevado de mortes.

Seria esse propósito inicial, a defesa de direitos fundamentais, apresentado ao Ministério Público, compatível com o resultado obtido ao final da referida operação?

Ora, parece-nos haver uma contradição inconciliável entre a expressão narrativa que se pretende empregar como justificativa da realização da ação, mesmo diante das restrições de operações deste tipo, em meio ao estado de calamidade pública, decorrente da Covid – 19, conforme decidido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, de Relatoria do Ministro Edson Fachin, no STF, e os seus resultados práticos efetivos.

A decisão, em seus termos, deixa claro que só excepcionalmente se poderá ter uma intervenção massiva de forças policiais, nas comunidades mais carentes, durante a pandemia, tendo em vista o comprovado risco de que referidas ações possam incorrer em consequências não suportáveis, neste momento, aos que ali estão vivendo.

Pois, não há como não nos saltar aos olhos e, por conseguinte, nos causar forte impacto que ação voltada para a efetivação de direitos fundamentais dos moradores da referida comunidade, expostos que estariam (e que de fato costumam estar) a extrema violência imposta por facção criminosa ali dominante, se exteriorize de forma igualmente tão violenta e que apresente, como resultado, a morte de 28 pessoas, a maioria delas, com exceção do policial morto, presume-se, membros daquela mesma comunidade, seja qual for o qualificativo jurídico-penal que possa ser atribuído a eles, após a análise de suas fichas corridas.

Não há como não se chegar, partindo-se desta evidente contradição entre a narrativa apresentada e o resultado prático obtido, a questionamentos sobre a efetividade de uma política de enfrentamento ao crime, cuja fundamentação expressa tem como objetivo a garantia do exercício de direitos fundamentais, mas que ao final torna ainda mais aguda a situação de vulnerabilidade deste grupo de pessoas, com a exposição delas a uma prática de intervenção massivamente violenta, com todos os riscos e danos, justamente, aos que se encontram nestas comunidades, que daí decorrem.

A conclusão a que se pode chegar é que algo não está funcionando no caminho trilhado. Há uma evidente distorção entre os objetivos apontados e os resultados obtidos.

Na esfera do disperso debate público, contudo, impulsionado a milhares de “cliques” nas diversas redes sociais, os efetivos custos impostos aos moradores destas comunidades parecem não ser percebidos ou, ao final, tidos como “consequências inevitáveis” desta “guerra” entre “bandidos” e mocinhos”.

Porém, referidos custos haveriam de ser tidos como não razoáveis, inclusive, no que se refere aos agentes policias envolvidos. São crescentes os números de mortes de agentes do sistema de segurança em ações de confronto direto.

Perdem-se, nesta “guerra”, tantas vezes, a vida de jovens dedicados a uma causa que acreditam ser a da justiça. Todavia, ao serem expostos como “pontas de lança”, à execução de uma política pública que pouco tem sido pensada no que se refere a uma lógica de obtenção de resultados que se mostrem compatíveis com objetivos mais claramente aferíveis, como a pacificação social, o bem-estar da comunidade, a inclusão dos que se encontram em situação de vulnerabilidade, a construção de melhores condições de vida e, por conseguinte, da tão buscada segurança, carece de uma fundamentação consistente e convincente, quanto à maneira que vem sendo encaminhada, em face dos resultados claramente insatisfatórios no alcance destes objetivos concretos.

Parece-nos, a este estágio de coisas em que nos encontramos, que o barulho produzido pelos incessantes ataques desferidos a todos aqueles que apontam para o descompasso entre as narrativas da necessidade de defesa de uma política de desordenado enfrentamento à criminalidade, introjetada em ações violentas, supostamente em consonância com o que se costuma indicar como a doutrina da “lei e da ordem” (com todas as contradições que essa expressão possa implicar e, ademais, como se alguém fosse contra a proteção ao direito à vida, à garantia das liberdades individuais, a uma convivência mais harmoniosa e pacífica, etc) tem impedido que se possa enxergar o quão desastrosos são os resultados obtidos e, portanto, o somatório final deste tipo de abordagem, para o alcance mesmo de qualquer estado de pretendida “segurança pública”.

Os números, de mortes, de casos de violência, de prisões, não param de crescer. Há de haver uma reflexão quanto ao resultado obtido, até agora.

Costuma-se, então, ao amplo espectro da arena virtual do debate público, quando da análise de eventos deste tipo, dividir as pessoas entre aqueles que são “defensores de bandidos” e os que estão do lado da “polícia”. Mais recentemente, com os novos impulsos divisionistas de cunho ideológico, requenta-se a distinção entre “esquerdistas” e a “direita”, buscando apresentar aqueles como defensores da desordem, da tão propalada “balbúrdia” e esta, como a guardiã da “ordem” e dos “bons costumes”.

Ficam, à margem, todavia, para além da divisão ideológica, dicotomias que se mostrariam bastante pertinentes ao debate, como, “democratas” e “não democratas”. “Negacionistas” e “não negacionistas”. Aqueles que tem na análise dos dados e fatos, o ponto de partida para suas discussões e os que não estão dispostos a ter esta premissa como importante.

Falar da importância de um exercício autocontido, posto que consciente dos limites que lhe são necessários, e do contínuo controle da atividade policial, em momentos como esse, passa a ser logo tachado como algo “ofensivo” aos policiais e, por conseguinte, aos interesses da comunidade. Toda a reflexão crítica sobre os resultados práticos de uma política criminal calibrada na “ponta do fuzil” passa a ser tida como falta de solidariedade para com os agentes de segurança pública, quando, não é tida como “alinhamento” com a “bandidagem”.

E, assim, caminhamos a passos largos, ainda mais profundamente, a um estado de coisas de conflitos e tensões que não nos permite a efetiva compreensão dos graves fatos que temos pela frente.

Produz-se, na verdade, à custa do sofrimento de todos aqueles que estão expostos aos efeitos práticos de ações com expressão tão violenta, um sentimento de ainda mais insegurança. E, com base neste medo constante, uma retórica que gesta discursos cada vez mais virulentos e desconectados com as causas reais do estado de violência e insegurança que nos deparamos.

Ora, tudo isso parece tão patentemente absurdo mas, ao mesmo tempo, tão efetivamente presente no momento em que nos inserimos, no mundo de hoje, que nos leva a uma grande desesperança quanto à possibilidade de uma desobstrução próxima do ambiente do debate público, quanto a estas questões.

Como pode?

Precisamos, de modo urgente, buscar apresentar, da forma mais clara e objetiva possível, para que possa ser efetivamente compreendido, as contradições deste conjunto de fatos e circunstâncias. Apontar o desequilíbrio dos resultados danosos colhidos pela execução de uma política pública, no campo da “segurança”, em descompasso com uma melhor compreensão dos fatores reais da violência e o deficit de encaminhamentos capazes de gerar ações voltadas para efetivas soluções.

E ocupar, com informação, consistente e aferível, este vasto espaço gerado pelo vazio e desilusão decorrentes da onda barulhenta e feroz que se regozija com a dor e que nos vê, a todos, como engajados em posições estanques, que não se comunicam, em uma guerra que não tem nos levado a lugar algum.

Fabiano de Melo Pessoa é Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Pernambuco Membro Fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP

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