A legítima defesa como barômetro da sensibilidade democrática

Transformar a legítima defesa em direito ilimitado conduz ao autoritarismo e a uma política de morte

Por Jacson Zilio, na Carta Capital.

O presidente Jair Bolsonaro sancionou, no dia 24 de dezembro de 2019, o chamado “pacote anticrime” (Lei n. 13.964/19), que altera dispositivos da legislação penal e processual penal. No Código Penal (Decreto-Lei n. 2.848/40), especificamente na Parte Geral, a lei introduziu o parágrafo único no artigo 25 com a seguinte redação: “Observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.

Essa alteração legal, tímida em comparação as pretensões do governo (contidas no Projeto de Lei Anticrime apresentado pelo Ministério de Justiça e Segurança Pública) de reprimir duramente delitos e imunizar policiais que matam em serviço, é dogmaticamente supérflua e politicamente autoritária. Supérflua porque as situações de sequestro sempre constituíram uma agressão injusta atual, legitimadora do uso racional e moderado da força (violência real) pela vítima ou por terceiro; politicamente autoritária porque permite a eliminação de vidas humanas justamente pelas agências penais que deveriam, nas democracias liberais, protegê-las.

A questão que fica aberta, agora, é relacionada apenas aos limites do exercício da legítima defesa. Afinal, podem os agentes de segurança pública, nas situações de agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes (o plural é desnecessário), repelir violentamente e causar a morte ou lesão grave no agressor?

Por exemplo, o truculento ex-juiz federal e atual governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, celebrou (com braços levantados e punhos cerrados) e elogiou a morte a tiros de um sequestrador de 20 anos (William Augusto da Silva) que mantivera reféns, na ponte Rio-Niterói, no dia 21 de agosto de 2019, 39 passageiros. Familiares do sequestrador, no entanto, afirmaram que ele sofria de transtornos mentais.

Obviamente, em tais situações, não é possível legitimar o uso de violência por agentes estatais sem restrições ético-sociais. A razão é simples: se fosse possível permitir a morte ou lesão grave no agressor, sem restrições racionais, haveria desvirtuamento completo do fundamento da defesa pessoal e inversão do sentido limitativo que ela deve ter quando utilizada por agentes estatais armados.

Como se sabe, a legítima defesa exige sempre o respeito ao princípio da menor lesividade ao agressor. A aceitação ilimitada de uso de meio mortal pelo agredido ou terceiro conduz à destruição do princípio da menor lesividade ao agressor e, assim, também à exigência de racionalidade do meio. Na verdade, conceder aos agentes de segurança pública o poder absoluto de utilização de meio muito perigoso é o mesmo que aceitar a legítima defesa como um direito de natureza ilimitada.

Ora, o direito de legítima defesa é parte de um direito estritamente delimitado, seja por requisitos formais, seja por restrições de ordem material. Por isso, a compatibilidade entre o princípio de menor lesividade ao agressor e a autorização de emprego de armas de fogo ou instrumentos extremamente perigosos, especialmente por agentes estatais, exige utilização gradual e de acordo com as regras administrativas impostas às autoridades que restringem o uso de armas de fogo.[ii]

Nesse aspecto, Iglesias Río apresenta alguns caminhos exigidos para o reconhecimento da racionalidade da defesa: primeiro, o defensor (vítima ou terceiro) deve advertir o agressor do perigo do instrumento de defesa que pretende aplicar; segundo, o defensor (vítima ou terceiro) deve utilizar o aparato não em direção ao agressor (por exemplo, deve antes efetuar um disparo de advertência ao ar, se outra advertência anterior não surtiu efeito); terceiro, os disparos efetuados na direção da vítima não podem tocar zonas corporais vitais, para não produzir um resultado mais grave que a ofensa; por fim, se todas as medidas anteriores não forem suficientemente aptas para a proteção de um direito fundamental individual atacado, então o defensor pode fazer um disparo mortal, sempre e quando seja a ultima ratio necessária para a defesa da vida.[iii] Portanto, a legítima defesa praticada por agentes estatais, máxime quando utilizam armas de fogo ou instrumentos extremamente perigosos, submete-se a requisitos mais severos.[iv]

Aliás, a Lei 13.060/2014, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff, é clara ao afirmar que “os órgãos de segurança pública deverão priorizar a utilização dos instrumentos de menor potencial ofensivo, desde que o seu uso não coloque em risco a integridade física ou psíquica dos policiais, e deverão obedecer aos seguintes princípios: I – legalidade; II – necessidade; III – razoabilidade e proporcionalidade.” (art. 2). Além disso, “não é legítimo o uso de arma de fogo: I – contra pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros; e II – contra veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros.” (parágrafo único).

Ao contrário do que parece acreditar o atual governo de ultradireita, que só enxerga liberalismo no uso da violência e no mercado, a legítima defesa não é uma ferramenta política de luta contra o delito, pois sequer o agredido pode ser tratado como soldado auxiliar do poder punitivo. A legítima defesa, como quebra excepcional do monopólio estatal da violência, é direito concedido ao particular com o objetivo de proteção de bem jurídico individual (próprio ou de terceiro) e prevalecimento do direito, quando há agressão injusta, atual ou iminente (como visto, no Brasil, o atividade policial de intervenção deve respeitar, antes de qualquer coisa, os ditames estritos da Lei 13.060/14). Logo, a legítima defesa rege-se por princípios preventivos e de garantísticos, que não apenas legitimam a violência do resultado justificado, mas também limitam este mesmo resultado a um âmbito de conflito absolutamente restrito.[v]

Muñoz Conde advertia que “a legítima defesa é um bom barômetro da sensibilidade democrática de um país”.[vi] De fato, a única mensagem que essa alteração legislativa envia é sua antidemocraticidade, traduzida na morte impune do povo. O dispositivo funciona como norma proibitiva e permissiva ao mesmo tempo: por um lado, ao mencionar os requisitos do caput do artigo 25 do CP, proíbe matar; por outro lado, ao não fazer referência direta às restrições ético-sociais, permite que os agentes estatais matem impunemente. Não há, aí, nada mais parecido com aquela figura do direito romano arcaico que tratou Giorgio Agamben: At homo sacer is est, quem populus iuducavit ob maleficium; neque faz est eum inmolari, sed qui occidit, parricidi non damnatur.[vii] Em outras palavras e guardadas as devidas proporções: é proibido matar alguém fora das situações de legítima defesa; mas, se algum agente estatal matar um sequestrador, mesmo sem adotar procedimentos prévios limitativos relacionados ao princípio da menor lesividade possível, não será considerado homicídio.

Em suma, antidemocraticidade básica e necropolítica num único dispositivo.

Jacson Zilio é integrante do Coletivo Transforma MP. Doutor em Direito Penal e Criminologia/Universidade Pablo de Olavide de Sevilha/Espanha. Promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná. 


Referências:

 ROXIN, Claus, Die sozialethischen Einschränkungen des Notwehrrechts. Versuch einer Bilanz, em 93 ZStW 1981, p. 68 e ss.

[ii] POMARES CINTAS, Esther. Delitos de acción. La antijuridicidad (I). In: ZUGALDÍA ESPINAR, José M. (dir.); PÉREZ ALONSO, Esteban J. (coord.). Derecho penal. Parte general. Valencia: Tirant lo Blanch, 2002. p. 576.

[iii] IGLESIAS RÍO, Miguel Ángel. Fundamento y requisitos estructurales de la legítima defensa. Consideración especial a las restricciones ético-sociales. Granada: Comares, 1999. p. 208.

[iv] ROXIN, Claus. Strafrecht – Allgemeiner Teil – Band I – Grundlagen – Der Aufbau der Verbrechenslehre, München: Verlag C. H. Beck, 2006. p. 712: “Allerdings wird auch nach der hier vertretenen Ansicht ein Polizist bei der Ausübung von Notwehr faktisch in der Regel schonender vorgehen müssen als ein Privater. Denn er ist zur Abwehr von Angriffen besser ausgebildet und ausgerüstet als der gewöhnliche Bürger, so dass er schon mit weniger eingreifenden Abwehrmassnahmen zum Ziele kommen kann.”

[v] ZILIO, Jacson. Legítima defensa. Las restricciones ético-sociales a partir de los fines preventivos y garantísticos del derecho penal. Buenos Aires: Didot, 2012. p. 31.

[vi] MUÑOZ CONDE, Francisco. Prólogo. In: FLETCHER, George P. En defensa propia (Sobre el caso Goetz y sus implicaciones legales). Valencia: Tirant lo Blanch, 1992. p. 15

[vii] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Valencia: Pre-Textos, 1998, p. 93.

Foto: Agência Brasil

Deixe um comentário