“A ganância é um bem”. – Margaret Thatcher
Advertência: o texto contém spoilers de uma série que havia sofrido spoilers dos tabloides que cobrem a rotina da realeza britânica.
A premiada série dramática The Crown, talvez a mais cara da Netflix (orçamento estimado em 130 milhões de dólares por temporada), tem produção exuberante. Alguns dos episódios são primorosos ao mostrar nuances do longo reinado de Elizabeth II descrevendo, ou imaginando, a vida palaciana e as audiências semanais da chefe de Estado com os primeiros-ministros.
O bizarro “encontro” da Rainha com um plebeu que chocou o mundo em 1982 é o tema do 5º episódio da 4ª temporada.
O operário Michael Fagan, pintor e decorador desempregado, acorda no subúrbio. O som de fundo reproduz uma rádio que toca um típico discurso liberal sobre sacrifícios no presente, para os trabalhadores, com a promessa de um futuro de oportunidades e empregos.
Fagan, ocupado em serviços precários e com problemas de dinheiro, também enfrentava uma crise familiar. Desoladamente, toma um ônibus para encarar mais uma entrevista protocolar no balcão do auxílio desemprego. Música de fundo na cena, um rock da banda The Cure, sucesso nos anos 1980 – “Boys Don’t Cry”:
“Eu tento rir disso tudo
Cobrindo com mentiras
Eu tento rir disso tudo
Escondendo as lágrimas em meus olhos
Pois garotos não choram
Garotos não choram.”
No guichê da repartição, Fagan protesta, revoltado com os gastos do governo numa guerra insignificante, enquanto seu país atravessava grave crise econômica. A impaciente atendente o orienta a apresentar as reclamações ao seu representante no parlamento. Ele acredita. É recebido com desdém pelo Deputado e aconselhado a protestar junto à Rainha. Ele acredita.
A crise econômica inglesa dos anos 1980 foi marcada por altas taxas de desemprego. Externamente, explodiu o conflito das Ilhas Malvinas. Para quem lembra das especulações sobre as justificativas do Governo Militar Argentino para o conflito armado – diversionismo e união em face de um inimigo externo – é curioso constatar a leitura de que o conflito armado também tenha servido para os ingleses, de forma bastante semelhante, especialmente considerando o fracasso inglês, anos antes, e o orgulho ferido na Guerra de Suez.
Para ter um instante com a Rainha, o determinado Fagan driblou a segurança do Palácio de Buckingham esgueirando-se até o quarto da monarca. Nos breves minutos de entrevista Real, o decorador faz considerações sobre a precária conservação do Palácio, que precisaria de manutenção. Mas o diálogo ganha em densidade e substância quando o plebeu se propõe a explicar à Sua Majestade como as coisas são de verdade, para as pessoas comuns, dito por uma pessoa que não se “comporte bem” e não seja enquadrado pelas formalidades e reverências palacianas.
No drama, a compreensiva Monarca recomenda um caminho protocolar para a insatisfação. O operário argumenta que já havia falado com o parlamentar e escrito cartas, porém, nada funcionou. Pondera que os anunciados caminhos oficiais para a insatisfação contra as políticas do Governo seriam uma “miragem da democracia”.
Implora, então, pela intervenção da chefe de Estado para que o povo seja salvo da insensível primeira-ministra Margaret Thatcher, afinal, estavam com mais de 3 milhões de desempregados. Descreve seu drama pessoal, em que estaria sendo acusado de ter distúrbios mentais quando ser pobre seria o seu problema real.
A Rainha afirma que o Estado poderia ajudá-lo. Ele retorque: “Que Estado? O Estado se foi… Ela o desmontou! Junto com todas as outras coisas que a gente achava que poderiam ajudar a gente a crescer. Um senso de comunidade, sei lá… Um senso de obrigação. Um senso de bondade. Tudo isso está desaparecendo”.
A Rainha adverte que ele estaria exagerando. Argumenta que as pessoas estariam demonstrando bondade umas com as outras e inclusive pagado seus impostos. Ele contra-argumenta que o dinheiro estaria sendo gasto numa guerra desnecessária.
O invasor relaciona os direitos que faziam bem e que “foram embora”: direito ao trabalho; direito a estar doente, ser velho e frágil: ser humano.
A cena se encerra com uma solução protocolar da segurança dominando o invasor. A Rainha diz que não iria esquecer do que ele disse.
Parte da crítica assinala que a série teria usado licenças dramáticas na narrativa de alguns eventos sobre os quais não há registros. Numa entrevista de 2012, Fagan teria dito que a Rainha saíra correndo do quarto, “com seus pezinhos descalços”.
Entrevistada, a premiada intérprete da Rainha nas duas primeiras temporadas, Claire Foy, atribuiu as mudanças da rigidez da monarquia à necessidade de adaptação para a sobrevivência da soberana diante de um mundo em transformação e de uma imprensa menos complacente.
Na audiência seguinte da Monarca com a primeira-ministra, a Rainha usa um discurso baseado na moral da economia para questionar o desemprego, que teria dobrado com as políticas de Thatcher.
A ultraliberal e inflexível Thatcher, que ficou conhecida como a Dama de Ferro, defende-se com a metáfora da dosagem do remédio na economia e do que considera noções equivocadas e desatualizadas de dever coletivo. Faz a defesa das pessoas que, movidas por interesse próprio, seriam o motor que conduziria a nação. Lembra a história da própria família, que teria vencido sem ter com quem contar. A primeira-ministra se despede, pois precisaria participar do desfile da vitória da guerra das Malvinas.
A política de Thatcher, primeira-ministra entre 1979 e 1990, deu origem ao Thatcherismo, ideologia que faz ferrenha defesa do individualismo, do conservadorismo e do liberalismo, com repulsa a valores do coletivismo representados pelos sindicatos e pelo socialismo.
Margaret Thatcher cunhou frases que seguem sendo reproduzidas por liberais, como a que remete a uma suposta triunfante força interior do indivíduo bem-sucedido: “Gostaria que você soubesse que existe dentro de si uma força capaz de mudar sua vida. Basta que lute e aguarde um novo amanhecer”.
Sob o austero comando da Dama de Ferro, que mais tarde recebeu o título de Baronesa, o desemprego na Inglaterra saltou de 6,5%, em 1980, para 11,8%, em 1984. Depois caiu, mas ao final da gestão continuava acima da taxa que ela havia recebido. A desigualdade, medida pelo coeficiente de Gini (escala de desigualdade que vai de 0 a 100, sendo que quanto maior mais desigual é o país), subiu de 29,1, em 1979, para 40,6, em 1990. Ou seja, a austeridade da grande referência do liberalismo fez crescer o desemprego e a desigualdade, sendo que o PIB britânico cresceu menos do que a média das nações ricas do mundo no período.
Num dos episódios, The Crown utiliza um incidente com o filho predileto de Thatcher, Mark, perdido no rali Paris-Dacar, para encadear uma discussão sobre o distanciamento e as preferências da Rainha em relação aos seus 4 filhos.
Curiosamente, o empresário milionário Sir Mark Thatcher, filho da líder que propagava a prosperidade como feito da concorrência agressiva, do mérito e da força interior e que cunhou máximas do credo liberal como “não há e nem nunca houve essa coisa chamada sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos”; é retratado em matérias jornalísticas pelo envolvimento em investigações de possível tráfico de influências e do uso do nome da mãe para a obtenção de contratos e construção de sua fortuna. Em 2016, o jornal inglês “The Guardian” citou documentos que relacionam Mark a sociedades em paraísos fiscais e ao escândalo conhecido como “Panama Papers”. Em 2004, o filho de Thatcher chegou a ser preso acusado de financiar uma tentativa de golpe de Estado na Guiné Equatorial, na África. A rigidez e a insensibilidade do liberalismo parecem adequadas, para os do andar de baixo.
A morte da Dama de Ferro, em abril de 2013, foi efusivamente comemorada em manifestações populares nas ruas de Londres e da Escócia. Indiferente a isso, a direita liberal segue reverenciando as pregações de Thatcher.
No Brasil, no início de 2020, comentando eventual sensibilidade do presidente da república à pressão dos servidores públicos por reajuste de salários, o ministro da Economia do Governo brasileiro lembrou do rigor de ex-primeira-ministra britânica como liderança que seria forte e popular.
O ministro Paulo Guedes foi flagrado no chocante vídeo da reunião ministerial, de 22 de abril de 2020, referindo-se aos servidores como inimigos, e vangloriando-se de uma iniciativa que suspenderia por dois anos os reajustes salariais, com a alegoria de que isso seria uma “granada” colocada pelo Governo “no bolso do inimigo”.
O constrangedor episódio, num governo que cogitou tributar as parcelas do seguro-desemprego, reproduz a receita de Thatcher. Sacrifícios imediatos, para pobres e a classe média, adocicados por fantasias futuras: resultados magníficos no PIB; crescimento em “V”; criação de dezenas de milhões de empregos; e até a redução pela metade do preço do gás. Enquanto isso, na vida concreta, o gás dobrou de preço; o PIB tem resultados pífios; o desemprego saltou e atinge 14 milhões de brasileiros; a desigualdade se agrava; e as autoridades da economia e da saúde batem cabeça, emitindo sinais contraditórios, incapazes de alinhar estratégias efetivas de enfrentamento da pandemia.
Na bizarra aventura de Fagan sabe-se que teria havido uma primeira invasão ao Palácio, com alguma graça, pois ele teria sentado no trono e provado uma garrafa de vinho. À época, invadir o Palácio não era crime. Depois do colóquio com a Rainha, o atrevido invasor foi encaminhado para tratamento psiquiátrico. Na nossa desastrada epopeia tropical é difícil achar graça e “rir disso tudo” (The Cure). Fica uma pontinha de inveja de um reino que encontrou lideranças sensatas para corrigir os rumos, com equilíbrio no comando.
Obs. Quem não viu, deveria ver a série.
Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP