Sobre silenciamentos e omissões quanto aos ataques à democracia

Por Antônio de Padova Marchi Júnior no GGN

Num passado ainda recente, muito em função da corajosa resistência produzida por estudantes, sindicatos, intelectuais, artistas e religiosos, a sociedade brasileira conseguiu superar o arbítrio de forma esplêndida, grandiosa e absolutamente comprometida com a democracia e as liberdades individuais. Não por acaso se ouvia em bom tom o brado forte que simbolizou toda aquela luta heroica: “Ditadura Nunca Mais”.

A ventania democrática que varreu o país se refletiu na Constituição da República de 1988, cujos princípios pareciam garantir a cada cidadão as condições mínimas para desenvolver livremente as suas habilidades, conquistar o seu espaço e, assim, reduzir as desigualdades sociais e econômicas.

O fato, porém, é que tais princípios jamais foram efetivados plenamente. Não suportando a paulatina ascensão da classe operária e as seguidas vitórias do PT nas eleições presidenciais, a elite brasileira tratou de dominar o congresso apostando na lógica simples de lançar mais e mais candidatos com poderio financeiro e, portanto, com maiores chances de alcançar o mandato eletivo.   

Formada a maioria tanto na Câmara como no Senado, não foi difícil se aventurar no impeachment da Presidenta Dilma Roussef no curso do quarto mandato seguido dos trabalhadores, deixando a presidência a cargo do sempre oportunista PMDB.

O período coincidiu com o esplendor das redes sociais e das big techs, além da vertiginosa concentração de riqueza orquestrada pelo capitalismo globalizado. Estavam criadas as condições ideais para o avanço da extrema-direita ancorada no mais profundo fascismo.

Parece cada vez mais clara, especialmente após a descoberta de milhares de documentos produzidos pelo governo estadunidense acerca do Presidente Lula[1], a interferência americana no processo político brasileiro por meio da indefectível “Operação Lava-Jato”.

O quadro permitiu a surpreendente vitória de um até então menosprezado deputado do baixo clero para assumir a Presidência da República, num dos mandatos mais esdrúxulos da história política brasileira.

Não fossem as enormes trapalhadas, algumas delas de claro matiz criminoso, poderia ter conseguido a reeleição, mas, novamente, apesar do largo emprego da máquina pública, dos bancos estatais e, por incrível que pareça, das forças de segurança, como a Polícia Rodoviária Federal, perdeu as eleições por uma pequena margem.

Na oposição, a extrema-direita continua com a mesma virulência e está representada agora pelos governadores eleitos e pela expressiva parcela arregimentada no congresso, apesar da derrota no pleito presidencial.

Em outras palavras, inegavelmente se tornou uma força política ancorada no retrógado discurso que impulsionou as maiores atrocidades da história: Deus, pátria e família.

O presente artigo busca criticar o papel das instituições nessa realidade perigosa para a democracia ou para o que resta dela.

Estudos sociais requisitados pelo exército americano ao fim da 2.ª Guerra Mundial revelaram que a maioria dos alemães desconheciam a “solução final” enquanto prática aplicada nos campos de concentração nazistas.

Segundo os levantamentos oficiais daquela época, uma pequena parcela da população, representada por parentes e pessoas próximas dos oficiais, sabia e apoiava o holocausto. Outra pequena parcela sabia e não se conformava com o assombroso fato, mas pouco ou nada podia fazer. Por fim, a grande maioria dos cidadãos alemães propositalmente não se questionavam a respeito exatamente para não tomar posição a favor ou contra a eliminação dos judeus, numa espécie de “cegueira deliberada”.[2]

No início da década passada, contrariando os estudos acima, o Professor Robert Gallately, da Universidade da Flórida, reuniu provas concretas de que a sociedade alemã sabia sobre a Gestapo, sobre os campos de concentração e sobre as campanhas de perseguição aos judeus.[3]

Impressiona a entrevista que o referido autor concedeu para a Revista Veja em agosto de 2011 por ocasião do lançamento da obra no Brasil, pois em tudo se relaciona com os argumentos e com as estratégias empregadas aqui e agora pela extrema-direita:

“Eles sabiam muito. O regime tinha orgulho de sua nova polícia e a celebrava anualmente no “Dia da Polícia Alemã”. Um bispo católico chegou a se gabar à congregação sobre como um campo de concentração na região tinha dado à área um novo ‘sopro de vida’. Hitler apostou no apelo popular por meio de um regime baseado no lema ‘lei e ordem’. Não são poucos os que preferem a repressão em nome da lei e da ordem em toda parte do mundo. E nós sabemos que esses recursos podem ser perigosos para pessoas ingênuas e inocentes. Por isso, o terror trouxe muito mais apoio ao nazismo do que tirou. O regime se vangloriava de sua nova abordagem contra criminosos reincidentes, alcoólatras crônicos, criminosos sexuais, desempregados e mendigos. Hitler prometeu ‘limpar as ruas’, e a maioria das pessoas aprovou a medida. Algumas acreditavam de fato no Hitler e no nazismo. Outras queriam proteger seu país e lutar como nacionalistas e patriotas. E provavelmente a maioria lutou para manter distantes os russos e os comunistas, que eram amplamente temidos e odiados no país.[4]

Parcela do eleitorado brasileiro quer a barbárie posta pelo bolsonarismo. Frustrados de toda ordem, microempreendedores pouco ou nada instruídos, crentes fervorosos, integrantes das forças de segurança, caçadores (hein?) e atiradores são exemplos de grupos facilmente capturados pelo discurso nacionalista propagandeado por uma elite financeira que tudo faz para (i) manter os seus privilégios, (ii) fomentar a indizível concentração de riquezas e (iii) se distanciar o máximo possível em espaço e oportunidades dos milhões de concidadãos (ou seria subcidadãos?) que passam fome.

Esses grupos que engrossam o caldo populista do bolsonarismo funcionam como inocentes úteis, pessoas em busca de melhorias sociais obtidas num passe de mágica, sem as reformas estruturantes indispensáveis para tanto.

Apesar disso, não podem, de maneira alguma, ser censurados na mesma medida daqueles que os manipulam por meio de antigas fobias, posto que influenciados e controlados pelas variadas redes sociais, agora otimizadas pelos algoritmos e, principalmente, pela Inteligência Artificial.

Além de vícios e estados depressivos, os sites e os aplicativos das redes sociais assim turbinados favorecem o extremismo e a polarização da sociedade, especialmente através da desinformação. No campo político, estão projetadas para que o usuário clique e passe mais tempo engajado com conteúdo capaz de manipulá-lo e torná-lo mais previsível ou fiel.

O professor Stuart Russell, da Universidade de Berkeley, dedica-se há décadas ao estudo da Inteligência Artificial (IA) e se tornou um dos seus mais notórios críticos, ao menos do modelo ora empregado pelo mundo. Segundo ele, as redes sociais, ao manipular as pessoas e aumentar o seu engajamento, podem torná-las indiferentes às consequências dos seus atos.[5]

A grande crítica, portanto, devem ser reservadas para a classe política e para os integrantes das instituições voltadas para a salvaguarda da Constituição e da Democracia.

A desfaçatez alcançou nível inimaginável entre os políticos que se calaram por motivos eleitoreiros aos seguidos escândalos a que a sociedade brasileira tem sido submetida pelo bolsonarismo.

Para ficar apenas nos principais fatos certos e comprovados – se é que se pode assim falar diante da realidade paralela que anima as redes bolsonaristas -, ainda que não tenham se convertido em ação penal condenatória, a prática da “rachadinha” nos gabinetes da família, a adulação de milicianos por meio tanto da indicação a comendas e medalhas como pela nomeação das esposas e filhos para cargos em comissão, a indiferença como forma de governo no curso da pandemia, o discurso de ódio contra a esquerda e a ideia fixa de incentivar o porte de armas mesmo na contramão do espírito pacífico do povo brasileiro, por si sós, deveriam merecer severa crítica e oposição pela classe política, isolando os seus protagonistas.

Do mesmo modo, as investigações em curso para apurar o incrível caso das joias – prática assustadoramente rasteira de enriquecimento ilícito -, a tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, o despropositado ataque às urnas e as anotações falsas na carteira de vacinação, entre outras estranhezas, em qualquer país sadio bastariam para decretar o fim da carreira pública do agente. Contudo, para os políticos aliados dispersos entre as bancadas do boi, da bala e da bíblia, nada disso impede a contínua aclamação do líder ruim.   

Uma pena que os registros históricos apontem para o silenciamento das ilicitudes para se alcançar a reconstrução do Estado, livrando os políticos adesistas de serem expurgados da vida pública apesar da covarde e interesseira inação frente ao mal.

Mais grave ainda é a tolerância dos agentes políticos, como os integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público, com tamanhas práticas abusivas.

Ainda que tenha falhado em importantes decisões que permitiram a ascensão do fascismo no Brasil, como avalizar a licitude do processo de impeachment da Presidenta Dilma e, num primeiro momento, as atrocidades da Operação Lava-Jato, o Supremo Tribunal Federal acabou se redimindo após o golpe de sorte que levou o hacker a desnudar o conchavo sujo de Curitiba. Já com o bolsonarismo em pleno curso, conseguiu realizar com segurança e absoluta transparência as eleições que consagraram o Presidente Lula para desespero da horda fascista que almejava permanecer no poder.

Porém, conforme já alertado acima, o perigo permanece latente.

O povo brasileiro não esperava e nem merecia a apatia do Ministério Público – destacado pelo constituinte para a proteção intransigente da cidadania – diante de tantas controvérsias que marcaram o último mandato presidencial.

Foi triste perceber como a instituição contribuiu para construir a ideia de normalidade no curso de um período tão anormal. Pior ainda foi constatar que as suas lideranças estavam prontas para referendar eventual golpe de Estado caso o plano colocado em prática em 8 de janeiro fosse adiante.

Essa realidade demonstra que é preciso repensar a Instituição, torná-la mais independente, mais plural e mais assertiva no exercício do seu principal mister: a defesa perene do Estado Democrático de Direito.

A propaganda que incita o ódio contra as minorias pelas redes sociais deve ser enfrentada de imediato pelos Ministérios Públicos dos Estados e da União, não podendo jamais ser naturalizada ou tida como moralmente defensável.

É preciso que a Instituição também demonstre a irracionalidade do emprego da violência policial contra a população periférica ao invés de camuflá-la como atos de “legítima defesa” indispensáveis para a proteção dos “cidadãos de bem”. Segurança pública não se faz com abuso policial.

Do mesmo modo, a difusão de armas entre os civis em nada favorece a redução da criminalidade. Os agentes políticos devem expressar as pesquisas sérias sobre esse dado e sobre as tragédias decorrentes de tal política armamentista.

Também a desinformação sobre as escolas e as universidades públicas devem ser enfrentadas de imediato pelo Ministério Público, dissipando as cansativas mentiras destiladas rotineiramente entre grupos conservadores.

Enfim, é preciso agir com rigor contra o mau uso das redes sociais enquanto critério ilícito de formação da opinião pública, pois reproduzem notícias falsas contra adversários políticos e inflamam o sentimento fanático em busca da desestabilização contínua do oponente.

Os agentes políticos, diferentemente dos cidadãos comuns, devem ser mais gravemente cobrados por eventuais omissões no exercício do grave mister de salvaguardar o Estado Democrático de Direito.

O artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

Antônio de Padova Marchi Júnior é Mestre e Doutor em Direito pela UFMG; Procurador de Justiça do MPMG; membro do Coletivo Transforma MP.

https://jornalggn.com.br/opiniao/sobre-silenciamentos-e-omissoes-por-antonio-marchi-junior/

[1] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/07/governo-dos-eua-produziu-ao-menos-819-documentos-ao-monitorar-lula-por-decadas.shtml#:~:text=Diferentes%20%C3%B3rg%C3%A3os%20do%20Governo%20dos,Fernando%20Morais%2C%20bi%C3%B3grafo%20do%20presidente.. Acesso em 20.7.2024.

[2] A visita virtual ao campo de concentração de Dachau, o primeiro a ser construído, informa a respeito. Disponível em < https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/dachau>. Acesso em 24.7.2024. No ensaio disponível em < https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/deceiving-the-public>, extrai-se a seguinte explicação: o uso da propaganda serviu como uma importante ferramenta para convencer a parte do público alemão que não apoiava Adolf Hitler, e para estimular o avanço do programa nazista, o qual exigia a aprovação, apoio ou participação de amplos setores da população. Combinado com o uso do terror para intimidar aqueles que não se submetiam ao pensamento nazista, um novo organismo de propaganda do Estado, chefiado por Joseph Goebbels, buscava manipular e enganar tanto a população alemã quanto outros países. A cada passo do caminho nazista, eram propagadas mensagens que apelavam à unidade nacional e a um futuro utópico, que ressoava de forma positiva para milhões de alemães. Simultaneamente, eram promovidas campanhas que facilitavam a perseguição aos judeus e a outros grupos excluídos da visão nazista do que era a “Comunidade Nacional”. Acesso em 24.7.2024.

[3] Gallately, Robert. Apoiando Hitler: coerção e consentimento na Alemanha nazista. Rio de Janeiro: Record, 2011.

[4] Disponível em https://veja.abril.com.br/mundo/os-alemaes-sabiam-e-aplaudiam-atrocidades-do-nazismo. Acesso em 25.7.2024.

[5] Disponível em < https://www.bbc.com/portuguese/geral-58810981>. Acesso em 25.7.2024.

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