Quando Bertold Brecht escreveu “Ascensão e queda da cidade de Mahagonny” e Kurt Weill colaborou na composição da ópera, o modelo de sociedade capitalista estava estremecido pela grande crise que derreteu a economia global.[1] A Alemanha estava economicamente falida e mergulhada no caos político. Com a pobreza batendo à porta e as consequências da perda da Primeira Guerra Mundial ainda presentes, o povo alemão abraçou um projeto populista alternativo ao fraco governo democrático. A crise política (os dois partidos de esquerda, SPD e KPD, não formaram alianças) abriu caminho livre aos tentáculos persecutórios do regime de terror do nacional-socialismo, com a “solução final” num horizonte já desenhável. A estreia da ópera em Leipzig no dia 4 de março de 1930 já demonstrava o clima político da época de crise do capitalismo: protestos dos camisas-marrons nazistas do lado de fora e tumulto do lado de dentro do teatro impediu o maestro, no terceiro ato, de ouvir os próprios músicos.[2]
A peça musical narra a história de três malandros (Fatty, Moses e Begbick) que, em fuga e retidos no deserto próximo a uma zona de mineração, decidem então fundar, da noite para o dia, uma cidade-arapuca (Netzestadt): Mahagonny. Os fundadores prometem uma vida de prazeres, sem proibições. A cidade, uma espécie moderna de Sodoma e Gomorra, apresenta-se como um espaço de utopia do prazer e ociosidade, embora, na realidade, representasse mais bem uma armadilha destinada a capturar o dinheiro dos mineiros. A cidade-ouro (Goldstadt), povoada por prostitutas e burgueses insatisfeitos, cresce rapidamente devido a sua boa reputação: tu tens permissão (du darfst) de tudo, de agir como quiser, claro, desde que tenhas dinheiro para consumir. Afinal, com concordam Begbick, Fatty e Moses, dinheiro dá tesão (Geld macht sinnlich). Logo chegam as primeiras prostitutas (Jenny e seis companheiras) em busca de homens que paguem. Fatty e Moses estacam uma bandeira, anunciam a “cidade do ouro” de Mahagonny e que prometem prazer, paz e harmonia, aos trabalhadores de outras grandes cidades. A notícia espalha-se entre os descontentes de todos os continentes. Muitos partem em viagem. A promessa do paraíso de consumo capitalista, retratado na felicidade em troca de dinheiro e mercadorias, animou um grupo de lenhadores enriquecidos por duros anos de trabalho (Jim, Jack, Bill e Joe). Jim Mahoney exige a autorrealização radical de todos. Tu tens permissão (du darfst). Mas logo depois, Jim fica infeliz pelos sinais crescentes de proibição, do álcool barato e da vida aborrecida. Jim faz as malas e decide a deixar a cidade. Indagado porque iria partir, Jim diz ter visto um cartaz escrito “aqui é proibido” (Weil ich eine Tafel sehen musste, darauf stand: „Hier ist verboten“). E indaga a Begbick: “Veja só, tu fizeste cartazes e ali escreveste: isto é proibido; isto não pode. Mas daí não surgiu a felicidade.” (Siehst du, du hast Tafeln gemacht und darauf geschrieben: das ist verboten und dieses darfst du nicht und es entstand kein Glückseligkeit). Portanto, nada é proibido, tudo é permitido: es nichts verboten, du darfst es! Os seus amigos resistem e tentam dissuadi-lo: Mahagonny tem tudo. Mas Jim acha que falta algo (Aber etwas fehlt). Quando o dinheiro dos lenhadores mostra-se insuficiente e os negócios entram em crise, os próprios fundadores também planejam partir. Tudo muda, entretanto, quando um furacão destrutivo aproxima-se da cidade, pois a iminência da catástrofe, que surpreendentemente não acontece, reforça a ideia de Jim de que é preferível quebrar os cartazes e as leis proibicionistas impostas por Begbick. Assim como faria o furacão. Ora, se a morte é sempre iminente, então todas as proibições são inúteis. Assim, “tu tens permissão” (du darfst) retorna como o maior mandamento da cidade. É permitido fazer tudo (Alles darf man dürfen).
Apesar de Jim Mahoney ser inicialmente aclamado pelos demais, a situação dele muda. Para cada dia de prazer em Mahagonny são necessários pelo menos 5 dólares. Jim gasta uma segunda rodada e apercebe-se de que não tem mais dinheiro. Moses exige o pagamento da conta e prende Jim. Ele então é algemado e submetido a julgamento por dívidas. Também outro cidadão, Tobby Higgins, é julgado por assassinato. Este, porém, convence a viúva Begbick e suborna o tribunal. É absolvido. Enquanto isso, sem ajuda dos amigos para pagarem suas dívidas, Jim é imputado por vários delitos. Finalmente, após confessar que não tinha dinheiro e não ceder aos olhares de corrupção de Begbick, Jim Mahoney é condenado a pena de morte por não pagar três garrafas de uísque e executado. O povo aplaude a barbárie. Nas suas últimas palavras, Jim ressalta que a felicidade que comprou não era felicidade e a liberdade à custa de dinheiro não era liberdade (Die Freude, die ich kaufte, war keine Freude und di Freiheit für Geld war keine Freiheit). Mahagonny mergulha no caos. A cidade está em chamas e uns contra os outros. Cortejos de manifestantes levam inscrições repletas de pautas contraditórias.
A história de Mahagonny retrata a desumanidade do terror monetário e consumista da sociedade capitalista. Conforme Adorno, nós vivemos em Mahagonny, onde tudo é permitido, menos uma coisa: não ter dinheiro.[3] Aí está o fundamento da ordem capitalista: todos são tratados como mercadorias que podem ser compradas e vendidas. A anarquia na produção de mercadorias é projetada na anarquia do consumo: não mais “penso, logo existo”, menos ainda “trabalho, logo existo”, mas sim “consumo, logo existo.”[4] Nesse contexto de totalitarismo financeiro, base da ideologia neoliberal, não é de se admirar que os grandes monopólios e as grandes corporações transnacionais tomem o posto historicamente reservado à política, como uma forma de neocolonialismo que suplanta o poder soberano dos estados nacionais.[5]
No que se refere à política penal de Mahagonny, os dois julgamentos mostram o funcionamento do sistema punitivo com espetacularização dos julgamentos, corrupção dos julgadores, desigualdade de tratamento dos acusados e desproporcionalidade entre pena e gravidade da ofensa. Em suma: um direito penal de luta contra os pobres que não é muito diferente da realidade atual.
Assim, punir os pobres não é algo exclusivo de Mahagonny. Os exemplos são muitos. Recentemente, em todos os poderes essa lógica perversa de punição se fortalece.
Em primeiro lugar, punir os pobres está embutido na execução eterna da pena de multa aos pobres. O condicionamento da extinção da punibilidade ao cumprimento da pena de multa acarreta danos à dignidade do preso e à finalidade reintegrativa da pena de prisão. As consequências da decisão do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.032/DF, de Rel. do Ministro Flávio Dino, são contraditórias com as conclusões da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Afinal, marginaliza ainda mais os egressos do sistema carcerário e despreza o objetivo de ressocialização. A conclusão da 3ª Seção do STJ, que se contenta com a autodeclaração de pobreza para extinção da punibilidade, é a única que não ofende o fim de ressocialização de pessoas presas. Isso porque sem essa extinção da pena os presos pobres não conseguem a reabilitação (art. 93 do CP), que facilita a busca por emprego formal, já que confirma a negativa de anotações penais. Ao contrário, a ausência de extinção por falta de pagamento pode forçar o preso ao trabalho precário informal e, em algumas situações, ao retorno às condições delitivas prévias. Portanto, é uma interpretação contraproducente, que se traduz num sobrepunição da pobreza. O contingente da população prisional em laborterapia e escolarizado é ínfimo e, portanto, sem os direitos do art. 25 da LEP, não tem como conseguir os recursos para o pagamento da multa sem ingressar no círculo vicioso de desespero.[6] Não por outra razão é que o CNJ editou a Resolução no 425/2021, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e estabeleceu: “Art. 29. Deverá ser observada a vulnerabilidade decorrente da situação de rua no momento de aplicação da pena, evitando-se a aplicação da pena secundária de multa. Parágrafo único. No curso da execução criminal, cumprida a pena privativa de liberdade e verificada a situação de rua da pessoa egressa, deve-se observar a possibilidade de extinção da punibilidade da pena de multa.” Enfim, a interpretação fria da realidade do sistema carcerário reforça a punição dos pobres e viola o artigo art. 3º, I e III, da CF e a Regra 107 das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela). Se essas normas são inaplicadas, então tudo é permitido na execução penal, menos não ter dinheiro.
Em segundo lugar, punir os pobres está na manutenção da criminalização de posse de drogas para consumo pessoal. Os pobres são os que mais sofrerem com a atual política de drogas e seguiram estocados em masmorras com a eventual aprovação da absurda PEC 45/2023. Mas nas democracias ocidentais, por sorte, o poder legislativo não pode tudo. Ainda que por meio de emenda constitucional, os direitos de liberdade, de autonomia pessoal, de disposição da própria saúde individual e da dignidade humana não podem ser suprimidos ou esvaziados por um legislador conservador de plantão. A manutenção da criminalização não poderá sequer impedir que o poder executivo delimite, por ato administrativo da própria da autoridade sanitária, quais são as substâncias consideradas ilícitas. Tampouco impedirá que sejam definidas as quantidades mínimas de posse de qualquer tipo de drogas, a fim de evitar um limbo na diferenciação entre traficantes e usuários. Na ausência de clareza, inclusive pelo território que habitam, os pobres são definidos pela autoridade policial como traficantes, enquanto os ricos são imunizados como meros consumidores, independentemente da quantidade. Parece claro aqui que há um corte racial e social que gere o funcionamento do aparato punitivo. Outra vez: tudo é permitido no direito penal de drogas, menos não ter dinheiro.
Em terceiro lugar, punir os pobres está na lógica da flexibilidade de buscas pessoais e domiciliares. O STJ, outra vez, avançou muito nesse tema de direitos individuais, fixando critérios objetivos, em benefício direto aos mais vulneráveis, que são os únicos abordados discricionariamente na rua e que possuem seus lares invadidos pela polícia. À polícia, como o poder punitivo de Mahagonny, tudo é permitido; aos pobres, ao contrário, nada é permitido, nem caminhar na rua sem ser humilhado nem ter o descanso do lar livre de suspeitas, principalmente quando não se tem dinheiro.
Em quarto lugar, punir os pobres é o pano de fundo da restrição de saídas temporárias na execução da pena privativa de liberdade. Revogar as saídas temporárias viola os direitos das pessoas presas, de manter ativo contato social, na perspectiva da função ressocializadora da pena. O veto parcial do projeto de lei 2.2253/2022 é insuficiente: reativar o inconstitucional exame criminológico está à direita do processo civilizatório e constitui, na prática, um outro muro de concreto na progressão de regime. Por certo, gerará descontrole dos presídios, violência e aumento da população carcerária, apesar da frontal contradição com a decisão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Como se vê, os pobres encarcerados não possuem sequer os direitos civilizatórios mais elementares de esperança progressiva da liberdade.
Enfim, a genialidade de Brecht desvelou a mecânica crua do capitalismo, em que o dinheiro ainda governa a vida humana na sua totalidade e na qual tudo se reduz ao valor de troca de mercadoria, em todos os âmbitos. Mas não é só isso. A política penal de Mahagonny segue vigente na realidade de carne e osso dos pobres enjaulados do mundo. Nessa lógica, não basta a execução aplaudida na cadeira elétrica de Jim Mahoney. Para essa gente perversa, é preciso mais: querem gozar do sofrimento daqueles que não se adaptam ao poço de dinheiro de Mahagonny contemporânea. A sociedade punitiva da atual era do confinamento converte a prisão em aspirador social e máquina de moer.[7] A prisão, portanto, hoje é “zona de estocagem”, em que as funções reabilitadoras do encarceramento cedem à dimensão primitiva do castigo e da mera neutralização.[8] Nesse contexto, de trabalho desclassificado, a regulação social da pobreza não se dá mais com objetivo de inclusão social, mas sim por meio de mecanismos de controle por repressão penal.[9] O sofrimento e a humilhação voltam a ocupar centralidade na atual onda punitiva do capitalismo. O individualismo, o mundo de puro consumo utópico e o horror aplaudido de Mahagonny ainda tem muito que nos ensinar no horizonte político, social, moral e ético.
Jacson Zilio é Promotor de Justiça do MPPR e integrante do Coletivo Transforma MP.
[1] BRECHT, Bertolt, WEILL, Kurt. Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny. Wien/Leipzig: Universal-Edition A.G., 1929. BRECHT, Bertolt, WEILL, Kurt. Aufstieg und Fall der Stadt Mahagonny. Erste Auflage. Berlin: Suhrkamp Verlag, 2013.
[2] STUART, Jeffries. Grande hotel abismo: a escola de Frankfurt e seus personagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p.137.
[3] ADORNO, Theodor W. “Mahagonny”. Trad. Jamie Owen Daniel. In: Discourse: Journal for Theoretical Studies in Media and Culture. Vol. 12. Article 5, Wayne State University Press, 2013, p. 5.
[4] STUART, Jeffries, op. cit., p.139.
[5] ZAFFARONI, Eugênio Raùl. Colonização punitiva e totalitarismo financeiro. A criminologia do ser-aqui. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2021.
[6] REsp 1785383 SP; e 1785861 SP, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 24/11/2021, DJe 30/11/2021.
[7] ARANTES, Paulo Eduardo. Zona de espera. Uma digressão sobre o tempo morto da onda punitiva contemporânea. In. O novo tempo do mundo e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 141.
[8] ARANTES, Paulo Eduardo. Zona de espera, op. cit., p.
[9] WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.