Por Marcelo Pedroso Goulart no GGN
No campo cultural, duas questões precisam ser enfrentadas: uma, relativa aos concursos de ingresso; outra, às Escolas Institucionais.
Práticas atentatórias à democracia, golpes e ensaios de golpe de Estado são recorrentes na história do Brasil. Poucos e curtos foram os períodos nos quais o país viveu sob a égide de regime democrático. Levando em consideração esse passivo político, o Constituinte de 1988 não mediu esforços para inscrever no texto constitucional mecanismos eficientes de defesa da democracia a evitar o retorno do Estado autocrático – registre-se que estávamos saindo do regime de exceção instituído pelo golpe burgo-militar de 1964. Mas foi além: elaborou projeto societário com a manifesta explicitação de valores, princípios, diretrizes, direitos e instituições próprios de uma democracia substantiva, ou seja, daquele tipo de democracia que se constitui de três dimensões: a política, a econômica e a social.
O Constituinte elegeu o Ministério Público como copartícipe da construção da nova ordem social, conferindo-lhe atribuições, instrumentos e garantias para o cumprimento dessa missão no âmbito do sistema de Justiça. Missão composta por quatro vertentes que, respectivamente, objetivam promover e defender: (i) a ordem jurídica, (ii) o regime democrático, (iii) os interesses sociais e (iv) os interesses individuais indisponíveis.
Na esfera da democracia econômica e social, o Ministério Público, desde os anos 1980, desenvolve atividades sociomediadoras e judiciais que asseguram, com alguma efetividade, a realização dos direitos transindividuais e individuais indisponíveis, como aqueles relacionados ao acesso à educação e à saúde, à proteção do consumidor, do meio ambiente, da infância, do adolescente, do jovem, do idoso, da mulher, do deficiente, das pessoas vítimas do preconceito e de discriminação, contribuindo, dessa maneira, para a redução das desigualdades sociais.
Já na esfera da democracia política, o Ministério Público ainda não desenvolveu modo de atuar compatível com a devida importância do tema, sobretudo na promoção e defesa da democracia semidireta, do adequado funcionamento de suas instituições e dos seus instrumentos, para que a representação política, a participação cidadã e o controle social das políticas públicas materializem-se como legítima expressão da soberania popular.
A compreensão limitada dessa incumbência reduziu as ações concretas do Ministério Público ao acompanhamento do processo eleitoral, como se tal tarefa esgotasse todo o conteúdo dessa importante vertente de sua missão. Daí o despreparo e a timidez da Instituição para enfrentar, nos últimos quatro anos, os ataques sequenciais da presidência da República à legalidade democrática e às instituições do Estado democrático de direito, como também os riscos de golpe de Estado, cuja tentativa acabou por ocorrer em 8 de janeiro passado.
Há, pois, muito por fazer.
No campo da organização institucional, é urgente a criação de órgãos de caráter permanente – promotorias e procuradorias de defesa da democracia política –, com cargos fixos e estrutura estável, com atribuições específicas ao seu objeto, tanto em matéria cível quanto criminal.
É preciso considerar, por conseguinte, que a formação de grupos, núcleos e forças-tarefas como sucedâneos das promotorias e procuradorias é incompatível com a natureza dessa atuação e das respectivas atribuições. Instâncias desse tipo são transitórias, atuam por tempo determinado para solucionar situações episódicas. Por isso, são instáveis na sua composição e estrutura. Além do mais, por não comportarem cargos, os integrantes são designados para o exercício de funções temporárias, o que leva à violação do princípio do promotor natural e à fragilização da independência funcional, hierarquizando algo que não pode ser hierarquizado.
Diante das circunstâncias ora apontadas, não cabe tergiversação: para a defesa da democracia política – tarefa permanente do Ministério Público – a morfologia e a fisiologia institucionais exigem a previsão de órgão de execução estável e permanente.
No campo cultural, duas questões precisam ser enfrentadas: uma, relativa aos concursos de ingresso; outra, às Escolas Institucionais.
O programa do concurso de ingresso à carreira de promotor de Justiça e de procurador da República deve conter disciplinas pertinentes à amplitude da missão institucional; portanto, não pode restringir-se à dogmática jurídica. No atual modelo de Ministério Público, a boa formação jurídica, embora essencial e necessária, é insuficiente para habilitar o candidato ao exercício das complexas funções de agente político. Disciplinas dos demais campos das humanidades devem figurar nesses programas. Ao menos um especialista de áreas afins – como Ciência Política, Teoria do Estado, Sociologia – deve participar das bancas examinadoras. Ao manter programa anacrônico, que não mede o realmente necessário, as comissões de concurso acabam por selecionar pessoas nem sempre qualificadas para a defesa da democracia política.
As Escolas Institucionais, por sua vez, têm papel a cumprir na melhora do desempenho dos membros do Ministério Público na defesa da democracia política. Matérias relativas a esse assunto devem compor a grade curricular dos cursos de formação continuada, dando-lhes tratamento profundo e multidisciplinar. Mais: nas atividades de extensão – aquelas dirigidas ao público externo –, às Escolas Institucionais cabe promover a capacitação do público para o exercício da cidadania. Essa capacitação passa necessariamente pela difusão do projeto societário definido na Constituição e dos valores e princípios democráticos que o embasam, bem como pelo ensino do manejo dos instrumentos que estão à disposição da cidadania para a implementação e defesa desse projeto.
No campo disciplinar, as Corregedorias precisam ficar atentas aos desvios funcionais dos membros da Instituição que, de forma comissiva ou omissiva, descumpram o dever de defender, com zelo e presteza, os fundamentos do Estado democrático de direito e as instituições e os institutos da democracia semidireta. Também devem ser objeto de atenção de tais órgãos as manifestações dos agentes do Ministério Público que denotam desapreço à democracia e à Constituição ou revelam simpatia e apoio a pessoas ou grupos sociais que cometam, tentam ou prometam cometer ofensa ao regime democrático, especialmente as manifestações proferidas em reuniões públicas, na imprensa e nas redes sociais. Esse tipo de comportamento macula a Instituição e é incompatível com o exercício do cargo.
Com foco na relevante tarefa de promoção e defesa da democracia política, apontou-se aqui, de forma não exaustiva, alguns dos passos a serem dados pelo Ministério Público no sentido de sua adequação ao modelo institucional previsto na Constituição Cidadã.
Sigamos em frente!
Marcelo Pedroso Goulart – membro do Coletivo por um Ministério Público Transformador (TransformaMP)