A exploração, o preconceito, a violência e o sofrimento físico e moral de milhões de trabalhadoras sempre estiveram presentes na história do Brasil.
Na literatura, Carolina Maria de Jesus, em sua obra mais importante “Quarto de Despejo”, joga luz à realidade da vida sofrida das moradoras das comunidades, mais precisamente na Favela do Canindé, na cidade de São Paulo. Mãe solo, negra, catadora de recicláveis e lavadeira, Carolina retratava em seu diário sua vida de dificuldades e lutas. Nessa obra, ela descreve a exaustão diária ocasionada pelo excesso de trabalho, pela invisibilidade e pelas humilhações, escancarando sua desvalorização na sociedade, como mulher negra e catadora. Também faz críticas ao sistema desigual em que era obrigada a viver, sempre insistindo em não aceitar tal realidade miserável. Ela sonhava em dar dignidade aos seus filhos e morar em uma casa de tijolos. Uma vida de luta e resistência.
Carolina inspira muitas mulheres e assim perpetua seu legado de vida, de luta e de escrita. E inspiradas na leitura de “Quarto de Despejo”, quase duzentas mulheres – Carolinas – negras de todos os Estados da federação emprestaram suas vozes para a construção do livro “Carolinas”, FLUP, Bazar do Tempo.
“Carolinas” foi forjado a partir de um projeto idealizado pela FLUP – Festa Literária das Periferias – em parceria com o Ministério Público do Trabalho e com outras instituições, contando com a participação, além das autoras publicadas, de jornalistas, escritoras e escritores.
O projeto teve como ponto de partida um processo de formação que se iniciou no dia 12 de maio de 2020 e terminou no dia 19 de agosto de 2020, com encontros semanais, totalizando quinze encontros, para debater Carolina Maria de Jesus, sendo que o ciclo foi chamado de: “Uma revolução chamada Carolina”.
Os encontros ocorreram por meio de redes sociais e plataformas digitais e, conforme descreveu Júlio Ludemir (organizador e diretor da FLUP) no Prólogo do livro, “criou-se ali um emocionante grupo de terapia, em que o acolhimento era a palavra-chave. Embora jamais tenham tido a oportunidade de tomar uma cerveja juntas, o Zoom não escondia o brilho nos olhos de cada uma delas durante a escuta das companheiras. Era como se estivessem ouvindo o próprio relato. Ou então a história de uma familiar muito próxima. Nunca a literatura brasileira traduziu com tanta precisão a palavra Ubuntu, com a qual uma das etnias do povo sul-africano exprimiu seu sentimento de solidariedade”.
Neste espaço, adiante, rendo homenagens a todas as Carolinas do livro – trazendo pequenos excertos de algumas de suas vozes:
Nair Camilo Faria, “Invisível aqui dentro da minha casa”: “Eu sou casada e tenho cinco filhos mas quero dizer que mesmo assim me sinto invisível e desprezada. Eu saio para trabalhar e ninguém vê, e quando chego do trabalho ninguém me vê também nem para perguntar como foi o meu dia…”.
Andréia Gomes, “Instinto de sobrevivência”: “O Homem Sem Nome pensa na sua maloca, nas histórias das pessoas com quem anda pelas ruas e sente vontade de chorar. Quem vai querer ler as nossas histórias? Sabem que com os abismos mais esgarçados encontrar olhos que queiram realmente ver e sentir está mais escasso”.
Camila de Oliveira Silva, “Entre a rua, este quarto e o ser”: “Alguma vez já quis pedir ao dia que me levante. Não sei seguir por essa hora em chamas, nesse amarelo aberto que cai sobre o dia, que não me socorre. Às vezes, antes de ir à rua, me pego querendo ir direto para a noite”.
Jamile Menezes da Silva, “s/d”: “E o cabelo… É, sobre ele teria que fazer um registro específico. Mas, resumindo, recordo que os procedimentos químicos começaram aos 5 anos. E só me livrei deles aos 25 anos. Eu era a típica criança que chorava durante o processo de alisamento. Ardia. Doía.”.
Lilian Rocha, “Chuto pedra”: “Carolina, retorno para a minha cidade com a certeza de que os meus pés poderão ainda ter cheiro de barro, mas agora chuto a desgraça, a falta de infância, o descrédito, a pobreza, a graxa, a cachaça. A partir de amanhã, só chuto bola, levanto taças e ganho medalhas. Seguirei a minha intuição, não desistirei do meu sonho, assim como você”.
Que nenhuma Carolina desista de seu sonho.
*Eliane Lucina é Procuradora do Ministério Público do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP