Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN
A Constituição tem palavras ditas, mal ditas e um grande fosso, onde se guardam as não ditas.
Quando o assunto é chão, o Sistema de Justiça berra o direito à propriedade privada, sussurra o direito social à moradia e se cala, impotente, diante dos artigos que falam de uma tal função social da propriedade.
Que função é essa, afinal? Para quem funciona a propriedade privada?
Há quase 1500 pessoas, hoje, na cidade de Valinhos, interior do Estado de São Paulo, fazendo palavras, casas, horta, música, festas, lágrimas, ruas e arpirellas do que foi silenciado nos cantos da Constituição nunca lida.
Chego no acampamento que se enuncia na negação da morte: “Marielle Vive”, se lê no portão que se abre. Paro diante de um mural grafitado com o sorriso da vereadora carioca brutalmente assassinada e junto com minha colega, me apresento: somos as Promotoras de Justiça que estão há um ano, em reuniões virtuais, tentando buscar alternativas autocompositivas para a ocupação. Somos do NUIPA – Núcleo de Incentivo em Autocomposição do MPSP.
Nos abraçam com os olhos.
O MST desta região é liderado por um casal de educadores que já morou no acampamento e que, hoje, mora na periferia de Campinas com o bebê de 2 anos. Eu conhecia seu chorinho das reuniões virtuais enquanto esperava o colo da mãe.
Olho ao redor e vejo senhoras chegando com suas cadeiras e se colocando em uma roda. Uma roda de espera. No centro, uma cesta gigante de verduras e legumes e uma caixa d’água.
É sobre esperas, afinal, que vamos todos falar.
A espera das crianças por computador para assistirem aulas. A espera pelo tratamento do braço que dói, da coluna que entortou. A espera de que sejam reconhecidos como moradores de Valinhos e possam receber cestas básicas. A espera do transporte escolar. A espera para serem ouvidos pelo Sistema de Justiça. Por mim, por nós.
Enquanto esperam por chão, água e dignidade, plantam, falam e bordam.
Assim como as mulheres chilenas, na década de 70, que passavam mensagens secretas em arpirellas – bordados de tecidos coloridos -, contra a ditadura de Pinochet, as mulheres do acampamento aprenderam que as esperas não são possíveis em silêncio. Só é suportável esperar nas letras. Letras faladas, escritas e costuradas.
Os tecidos coloridos nos gritam sonhos. Respondem o que é e para quem serve a tal função social da propriedade que esqueceram de explicar nas aulas de direito. Em fragmentos remendados de pano colorido, vejo famílias felizes vivendo em comunidade, em um dia de sol, trabalhando na terra cercada de área preservada, em uma casa colorida por flores, com água pra plantar, beber e banhar.
“Está vendo que bordei pedrinhas brilhantes na caixa d´água? É porque água vale como diamante”, me explicou a Marielle bordadeira.
Durante os dois anos de pandemia, faltou água no acampamento de Valinhos. Com a intervenção do NUIPA, a Prefeitura aumentou a frequência e regularidade da entrega de caminhão pipa, mas o problema ainda espera solução.
Nas várias reuniões virtuais feitas sob nossa intervenção, a espera pelo chão e pela água cedia, muitas vezes, para uma espera mais urgente: a de ter sua existência reconhecida.
“Essa área é muito valorizada do ponto de vista imobiliário, não tem cabimento cogitar de um assentamento popular aqui”; “não podemos estimular uma ‘favelização’ da cidade”; “essas pessoas não nasceram em Valinhos, precisam voltar para onde vieram”; “se eles criaram o problema com essa invasão, que arquem com as consequências”; “não podemos agir ideologicamente, temos que ser técnicos”…
É assustadora, para não dizer cínica, a facilidade com a qual naturalizamos a manutenção da exclusão social, que passa a ser vista como uma postura “técnica”, “não ideológica”, ética e esteticamente aceitável.
A reforma agrária, a segurança alimentar, o direito social de moradia e a função social da propriedade, tão “tecnicamente” previstas na Constituição Federal como o direito de propriedade privada, anuncia cidades justas e também bonitas, porque não há beleza nos 19 milhões que, hoje, passam fome nas ruas do Brasil.
Quem andar pelo acampamento Marielle Vive não verá mansões cercadas de muros e seguranças privados. Verá crianças livres, andando de mãos dadas nas ruas. Verá uma grande horta orgânica em forma de mandala da qual saem doações para periferia da cidade. Verá uma cozinha comunitária, onde todos os dias se fazem panelas de arroz, feijão e verduras para quem aparecer com fome. Será convidado para conhecer uma casa com cercas de bambus em forma de coração, e se nela parar por mais de cinco minutos para olhar o canto de meditação voltado para o horizonte, sairá com um vasinho de suculenta nas mãos: “presente”, vai te dizer um desconhecido, sorrindo.
Quem andar no acampamento Marielle Vive não verá uma só casa de alvenaria, mas encontrará flores de todos os tipos pelos caminhos de terra batida. Vai dar de cara com uma biblioteca comunitária, com consultório médico e uma sala de dentistas improvisada, onde profissionais da saúde se revezam, aos finais de semana, para cuidar de gente, incluindo eles mesmos, no acalento do sonho de mundo feito de mais doação que venda.
Vai ver a caixa d’água, aquela que guarda diamantes, e que espera estar cheia o ano todo, bem no centro do acampamento. Nela, verá três rostos pintados. Rostos de espera do que nunca aconteceu.
Um deles foi atropelado e morto, na frente do acampamento, por uma caminhonete dolosamente jogada contra dez pessoas. Seu corpo em sacrifício evitou a morte dos demais companheiros.
Outro entrou para as estatísticas de acidentes de trabalho fatais, apesar de, ironicamente, tantos associarem os integrantes de movimentos sociais a “vagabundos”. Uma maquita cortou seu corpo de trabalhador brasileiro ao meio.
O último cansou de esperar. Seu nome era Pedro, mas poderia ser Triz. Pedro não suportou o perigo de ser feliz. A espada, presa por um fio sobre sua cabeça, tal qual a anedota grega de Dâmocles, caiu. Pedro se enforcou, sem água e sem chão, em um dia qualquer, em meio a milhares que morriam de COVID no ano de 2021.
Quem andar pelas ruas do acampamento Marielle Vive, em Valinhos, andará por palavras. As não ditas. Mal ditas. Silenciadas e choradas.
O corpinho que esperava o colo da mãe nas reuniões virtuais que fizemos continuava saltitando na minha frente.
Eu, que ali cheguei carregando em silêncio a dor da minha espera pessoal no nada, por nada, saí carregando palavras, fotos, duas arpirellas, uma cesta de verduras, um vasinho de suculenta e a barriga cheia de comida de fogão de lenha.
Quase um mês depois de nossa visita, a ação de reintegração de posse foi julgada pelo Tribunal de Justiça: um mês para as mais de 450 famílias saírem do acampamento.
Mas pobres não desaparecem com sentenças. Seguem ocupando espaço porque ainda não aprenderam, com a Beatriz de Chico Buarque, a andar sem os pés no chão.
E seguem, assim como Marielle Franco, fazendo palavras da espera e da morte. Marielle vive e, agora, também “Marielle fica”, gritam. É preciso viver para não partir, ou se partir. Sentir, falar. Viver é verbo e movimento.
Dias depois, o Ministro Barroso, em decisão liminar recém confirmada pelo Supremo Tribunal Federal, prorrogou a decisão da ADPF 828 para dizer o que todos já sabiam: a pandemia não acabou, inclusive para os que insistem em querer existir. Em nome da dignidade da pessoa humana, estão suspensos os despejos, no campo e na cidade, em todo país, até 31 de março de 2022.
Corpos mobilizados, deslocados, atravessados e feridos fizeram festa. Três meses a mais para mostrarem que existem e que precisam de chão e água. Música. Crianças de laço na cabeça. Panelas de arroz, feijão, mandioca e salada foram servidas para quem chegasse. O verbo sorrir também existe.
No acampamento, parece que a esperança não é a de Espinoza. Não é a esperança servidão, de valência invertida e complementar do medo, que apenas paralisa. Ela é freiriana mesmo. Verbo. Mobilizadora e arrebatadora.
O desejo desejado e sustentado estica palavras. A espera para espera-ânsia, esperança, e se lança no impossível do acontecimento. Ele virá. A transformação é mente, corpo e coração. Cor – agem.
Para sempre, sempre, por um triz, Marielle vive e Marielle fica.
Cristiane Corrêa de Souza Hillal é Promotora de Justiça e integrante do Coletivo Transforma MP