Artigo do procurador e integrante do Coletivo Transforma MP, Prof. Plínio Gentil, no GGN.
Aqueles integrantes de carreiras jurídicas que, como eu, há décadas construíram também uma carreira como docentes nas faculdades de Direito, puderam perceber a virada da educação superior, de um direito para um serviço. O motor dessa virada foi a transformação da escola-instituição em escola-organização, ou escola-empresa, sem enraizamento social ou histórico, movida pelos ideais de gestão, controle, êxito e lucro, estimulada pela competição. Seu motivo é o que muitos chamam de reforma empresarial da educação, fruto de um movimento do capital internacional, a partir da década de 1990, que se voltou para a exploração da educação como mercadoria, impondo, sobretudo nos países periféricos, a lógica do Consenso de Washington.
Portanto era preciso padronizar os conteúdos escolares, formação de professores e critérios de avaliação, pois o capital trabalha com horizontes claros e odeia correr riscos. Assim vieram programas, diretrizes e recomendações de organismos supranacionais, cujas intenções declaradas eram melhorar a qualidade do ensino, acabar com a evasão escolar e democratizar a escola, “preparando os países subdesenvolvidos para um salto que os capacitaria a responder aos desafios do século XXI”. Todo esse palavrório representa, por óbvio, um eufemismo para edulcorar a exploração da educação como mercadoria no terceiro mundo, criando oportunidades para sócios locais, com a adesão, é claro, dos respectivos governos.
Mudado o ambiente escolar, muda também o perfil do professor. Educação converte-se em aprendizagem, o educador torna-se uma espécie de tutor. Assim, nesse novo cenário, a figura de um professor tarefeiro, sem empáfia nem glamour, vai substituindo, nas faculdades de Direito, aqueles doutores de antigamente, tornados professores mais por seus títulos que por suas qualidades para a docência. Mas, ao contrário do que se pode pensar, isso não representa evolução alguma: na verdade troca-se um problema por outro e o professor com algum brilho, capaz de provocar inquietação no aluno, continuará opaco e nivelado pela ditadura dos itens e planilhas de uma avaliação padronizada, que produz robôs tarefeiros, de quem apenas se pede o cumprimento das metas da organização, num horizonte em que a pesquisa instigante e a inútil igualam-se completamente.
Eis que, como uma subespécie do professor tarefeiro, surge o professor gratiluz. Dócil, feliz, acredita que é quase um sócio da organização escolar que o emprega. Convencido pela pregação neoliberal, acha que a ciência é neutra, acredita na imparcialidade das instituições e na sacralidade do direito. Na sua vida pessoal, se algo não lhe saiu bem, entende que foi por sua própria culpa.
O professor gratiluz é, ao mesmo tempo, uma vítima e um produto da reforma empresarial da educação, que formou a escola-empresa. Como não se sente pertencendo a uma categoria, dirige-se aos colegas sempre os chamando de ‘professor’, evitando intimidades. Sem o perceber, nega-lhes pessoalidade, reduzida a um crachá, e interdita o companheirismo. O fato de compartilharem o balcão da cantina e as exigências da coordenação e da secretaria não o faz sentir-se parte de um grupo que possa, em bloco, reivindicar alguma coisa, parecendo-lhe natural que qualquer questão há de ser tratada individualmente com a organização. Uma modalidade mais radical do professor gratiluz, ao referir-se a si mesmo, fala suavemente com os alunos na terceira pessoa do singular, neles projetando uma infantilização que reflete sua própria visão pueril do processo de ensino-aprendizagem. Um infantilismo produto, em parte, da própria organização, ao tratar alunos como clientes que não devem ser desagradados, especialmente com notas baixas e registro de faltas.
Na escola-empresa as demissões ocorrem fria e mecanicamente, nada mais significando, aos olhos do professor gratiluz, que uma reposição de peças numa engrenagem; tanto que, sobre os colegas descartados, esse professor, agradecido por sua sobrevivência, vai aderir a um pacto geral de silêncio. Demitidos e recém contratados não lhe despertam saudades nem júbilo e o professor gratiluz adestrou-se para não sentir emoções inconvenientes. Diferente do oportunista, que monta um negócio no entorno da escola-empresa, e do militarista assumido, que grita contra a universidade pública e os direitos humanos e apoia o escola sem partido, o professor gratiluz habita uma espécie de mundo esotérico, no qual uma relação entre energias cósmicas, fé e trilhas na mata faz todo o sentido. Seu repertório emocional externa-se em palminhas no grupo de whatsapp e saudações metafísicas em que esbanja gratidões e enaltece um mundo de luz, flores, pássaros e corações. Exalando uma humildade sem sentido concreto, escreve ‘namastê’ e clica enviar. Dessa maneira exterioriza um intimismo que só encontra espaço numa dimensão imaterial, contra o qual ninguém haverá de se insurgir, justamente porque situado para além de uma existência real.
Acata agradecido tudo que a organização lhe passa e, mesmo oprimido pela gradual e constante imposição de novas tarefas, espalha nas redes carinhas de contente e disponível. Ante a súbita obrigação de navegar em intrincadas plataformas, legendadas em inglês, que a reforma empresarial da educação introduziu, especialmente durante a pandemia do coronavírus, sente-se genuinamente feliz, quase orgulhoso, quando percebe que, depois de horas e horas não remuneradas diante do próprio computador, consegue dominar, mesmo precariamente, algo daquele universo virtual. O professor gratiluz vê oportunidade nesse aprendizado de outras tarefas e não uma nova modalidade de superexploração, graças à qual a organização economiza recursos, quer deixando de contratar, quer demitindo funcionários especializados.
Aceita integrar grupos e redes por meio dos quais será cobrado em tempo integral e em prazos exíguos, como uma espécie de Diário Oficial acelerado, sem limite de horas ou fins de semana. É a organização que, criando à sua revelia um e-mail institucional, lhe determina o lugar em que receberá correspondências, contrariando aquela regra da natureza de que é o morador quem fornece o endereço de sua casa. Para atender exigências dos medidores de qualidade das escolas, precisadas de bom nível no ranking, concordará em se inscrever em eventos pagos de seu bolso, assim como agrupar-se com colegas para uma pesquisa de duvidoso interesse científico, cuja publicação pagará para algum veículo parte dessa indústria da publicação que surgiu nas imediações da educação mercantilizada.
O professor gratiluz, totalmente de bem com a vida, não desenvolverá qualquer percepção estrutural dessa sua condição, nem de sua precariedade. Vendo profissionalismo nesse alheamento e proclamando-se apolítico, seguirá contente, como um profissional good vibes, que aprendeu a sentir-se parte da escola-empresa, ao invés da categoria laboral que integra. Insciente do papel que ele próprio poderia representar no antagonismo entre capital e trabalho, serve a um modelo em que vai aos poucos sendo substituído por plataformas de ensino, ou vídeo aulas, onde o que menos importa é justamente a figura do professor. Crente que seu mérito individual o distinguirá frente ao empregador, repudia qualquer sinal de vida associativa. É uma peça moldada pela escola-empresa, que o faz personagem de uma narrativa modernosa, destilada pela mídia corporativa. Assim, sua ínfima relevância para o modelo é adornada pela imagem de um colaborador, não mero empregado: um predestinado luminoso, dotado de tamanha grandeza, que não lhe fica bem ocupar-se com quinquilharias como acúmulo de funções ou reduções indiretas de salário e mais besteiras desse naipe.
A palavra namastê, em sânscrito, designa um sentimento de respeito obsequioso, e deve ser pronunciada com as mãos postas e uma ligeira curvatura de cabeça: isso possui um sentido real, apropriado a certas relações interpessoais nas culturas indiana e nepalesa. Fora de contexto, utilizada naquela dimensão metafísica em que o professor tutor tarefeiro gratiluz proclama aos céus a alegria de ser explorado, insistindo em se manter ingenuamente alheio a essa realidade, namastê representa o coroamento do sucesso, para o capital, da reforma empresarial da educação, que desmobiliza a reivindicação e deslegitima sindicatos e associações em sua luta secular por redução do abismo social entre a propriedade e o trabalho. Esse namastê dirige-se, na verdade, à escola-empresa, à qual é dito ‘eu humildemente me curvo e a saúdo’. Difícil, muito difícil, fazer cumprir-se dessa maneira o papel histórico da educação, incorporado no texto constitucional (art. 205), que é emancipar de toda opressão.
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Plínio Gentil é Professor universitário. Integrante do Grupo de Pesquisa Educação e Direito (UFSCar). Procurador de Justiça em S. Paulo. Membro fundador do Coletivo MP Transforma. Contato: <pabgentil@apmp.com.br>