Por Élder Ximenes Filho* no GGN
Quero ver meu pai morto
E em sua figura desfeita
Meu rosto serenado
E em suas mãos translúcidas
Meu trabalho completo
E na carência das passadas
Meu caminho refeito
E em seu cheiro ausente
Meu cansaço da guerra
Quero ver meu pai morto
Em sua distância eterna
Entrar como o filho digno
que retorna à casa
e da casa avista um monte
e no monte avista um templo
que não precisa visitar
pois sabe que lá está
Quero ver meu pai morto
Quando minha guarda acabar
sem mais suor nem lágrima
que enxuguei e comparti
Nenhum temor no peito
não mais tremor nas mãos
pois aceito viver sempre
e morri por ele antes
Quero ver meu pai morto
e quando limpar seu corpo
e beijar seus pés
e alimentar seu óbulo
Celebrarei a bem cumprida vida
na morte recém-nascida
e crer que meu filho me verá
morto e, enfim, perfeito
Os amores, quaisquer amores, são melhor expressos em versos (mesmo os ruins). Mas é com a prosa prosaica, feia e dura que precisamos todo dia defender a vida – dentro da qual estão os poemas. Indago já das pessoas gentis-leitoras:
– O que você faria com quem matasse seu pai, um dia?
Ou
– O que você faria com quem deseja matar seu pai, hoje?
Ou
– O que você fará com quem arrisca matar seu pai, agora?
Notem a gradação proposta. Se a vingança não pregamos (nem devemos) é da defesa que precisamos tratar. Legítima – Defesa – De – Terceiros (amados). Em Direito, que é a mais dura das prosas, não vale antecipar-se à simples intenção. Podemos reagir com a força necessária à ameaça que se faz real e vai virando agressão. Leiam o que diz o art. 25 do Código Penal, pesquisável no eletrônico pai-dos-burros. Mas vejamos também estes outros:
“Perigo de contágio de moléstia grave
Art. 131 – Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio:
“Perigo de contágio de moléstia grave
Art. 131 – Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio:
Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa”
“Infração de medida sanitária preventiva
Art. 268 – Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.
Ora, quando falamos dos seus pais, dileto leitor, tenho certeza de que você pensa mesmo é neste artigo:
“Homicídio
Art. 121. Matar alguém:
Pena – reclusão, de seis a vinte anos.
Pois bem, existem pessoas trabalhando aí do seu lado que aceitam praticar estas condutas contra a sua família. Não por descuido, mas por opção consciente e bem informada. É óbvio que estamos falando do COVID-19 e dos histriônicos e babosos negacionistas. Os anti-vacinas e anti-máscaras que, após tanta campanha e tanta explicação (com a ciência ao alcance dos dedos) insistem em contaminar a si e aos outros. Contaminar você. Contaminar, por você, os seus pais. Usar você para matar seus pais. Pense nisto!
Claro está que poderíamos discutir sobre “dolo eventual” ou “culpa consciente”, a partir do mesmo Código Penal:
Art. 18 – Diz-se o crime: I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Incentivo, aliás, ao estudo também dos conceitos de dolo: alternativo, cumulativo, antecedente, genérico ou específico; as fases da compreensão, da volição e da anuência… Doutrina existe à mancheia, cheia de exemplos com os coitados Tício, Caio e Mévio – que de substantivos comuns latinos viraram meme nos grupos de estudos no Zap. Estudar é bom e cada vez mais necessário. Mas estou aqui instigando a um enfrentamento prático; problemas parem soluções!
No filme Crash – no limite, de 2004, há dialogo entre o chefe de polícia, homem negro que sabe o que é racismo e o policial irlandês, idem. Veio reclamar de um parceiro de patrulha que é grosseiro e abertamente racista. O chefe não quer o incômodo de abrir procedimento disciplinar e discutir racismo na polícia. Afinal, acredita ter superado este tabu – ora bolas, é negro e virou chefe e não me encham o saco! Mas também não pode obrigar o outro a trabalhar sob tensão e provocações. A solução? Faça um requerimento para ficar sozinho na viatura. A justificativa? Flatulência. Não do outro, mas própria! Apesar do ridículo, em nome da boa não-convivência, assim resolvem e segue a película.
Saindo das telas direto para a mesa ao lado. Imagine que o seu colega sofre de flatulência incontrolável, ou de halitose sensaburrosa ou trimetilaminúria (Síndrome do Odor de Peixe)? Coitado. Mas até que ponto você está obrigado a sofrer o convívio, calado, porque estas doenças são “culposas”?
Caminhando um pouco mais. O mesmo coleguinha resolve parar de tomar banho (promessa a algum santo estilita). Aqui é uma opção consciente; um “dolo eventual”. Ele sabe que incomodará e, mesmo assim, prossegue na violação ao direito alheio. Trabalhar sob desconforto que o outro cismou em causar…. por quê, cara pálida?
Chegando onde é preciso. Todos sabemos que os não-vacinados têm centenas de vezes mais chances de ser contaminados, adoecer e morrer e – entre uma coisa e outra – contaminar você. Daí para seus pais. Mesmo vacinados, existe a chance de adoecimento. O que não existe é o direito de fazer adoecer. Isto é maldade. Isto é infração disciplinar. Isto é crime.
Vejamos algumas normas.
Estatuto do Servidor Federal, Lei 8.112/1990 (copiado por Estados e Municípios):
Art. 116. São deveres do servidor: (…) III – observar as normas legais e regulamentares; (…) IX – manter conduta compatível com a moralidade administrativa; (…) XI – tratar com urbanidade as pessoas;
Art. 239. Por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, o servidor não poderá ser privado de quaisquer dos seus direitos, sofrer discriminação em sua vida funcional, nem eximir-se do cumprimento de seus deveres.
Lei Orgânica da Magistratura Nacional:
Art. 35 – São deveres do magistrado: I – Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exatidão, as disposições legais e os atos de ofício; (…) VIII – manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.
Lei Orgânica Nacional do Ministério Público:
Art. 43. São deveres dos membros do Ministério Público, além de outros previstos em lei: I – manter ilibada conduta pública e particular; (…) IX – tratar com urbanidade as partes, testemunhas, funcionários e auxiliares; (…) XIV – acatar, no plano administrativo, as decisões dos órgãos da Administração Superior do Ministério Público.
Para servidores em geral, temos o exemplo do Decreto 60.442 da Prefeitura de São Paulo, em 06.8.2021 (bem fresquinho):
Art. 1º Os servidores e empregados públicos municipais da Administração Direta, Autarquias e Fundações inseridos no grupo elegível para imunização contra a COVID-19, nos termos definidos pela Secretaria Municipal da Saúde, deverão submeter-se à vacinação.
Parágrafo único. A recusa, sem justa causa, em submeter-se à vacinação contra a COVID-19 caracteriza falta disciplinar do servidor ou do empregado público, passível das sanções dispostas, respectivamente, na Lei nº 8.989, de 29 de outubro de 1979 e Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.
Art. 2º Caberá à Controladoria Geral do Município levantar os servidores e empregados públicos que, sem justa causa, não se vacinaram, adotando as providências legais e regulamentares pertinentes.
Para empregados do setor privado, mais fácil. Justifica-se a demissão por justa causa, como disse o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (SP), processo 1000122-24.2021.5.02.0472, decisão em 11.6.2021:
A bem da verdade, considerando a gravidade e a amplitude da pandemia, resta patente que se revelou inadequada a recusa da empregada que trabalha em ambiente hospitalar, em se submeter ao protocolo de vacinação previsto em norma nacional de imunização, e referendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), sobretudo se considerarmos que o imunizante disponibilizado de forma gratuita pelo Governo (vacina), foi devidamente aprovado pelo respectivo órgão regulador (ANVISA). Desse modo, considerando que a reclamada traçou estratégias para a prevenção da COVID19, divulgou informações e elaborou programa de conscientização para assegurar a adoção de medidas protetivas e a vacinação de seus colaboradores, não se mostra razoável aceitar que o interesse particular do empregado prevaleça sobre o interesse coletivo, pois, ao deixar de tomar a vacina, a reclamante realmente colocaria em risco a saúde dos seus colegas da empresa, bem como os demais profissionais que atuam no referido hospital, além de pacientes, e seus acompanhantes. Acrescente-se que é dever do empregador oferecer aos seus empregados ambiente de trabalho salubre e seguro, nos termos da Lei, reprisando-se que no caso vertente, a reclamada comprovou a adoção das medidas necessárias e disponibilizou aos seus colaboradores informativos sobre a necessidade de minimizar os riscos de contágio, incluindo, por óbvio, a necessidade de aderir ao sistema de imunização.
Situação análoga à do empregado que se recusa a usar os equipamentos de proteção individual, como a máscara. Se não quer se cuidar, que o faça em casa, não no ambiente de trabalho.
Mas como “obrigar legalmente”? Afinal, a Constituição diz, no art. 5º, II que “II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”. Ora, lembremos que o mesmo artigo diz: “VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;”. Não se interprete o sistema aos pedaços.
É contra o voto obrigatório? Arque com as consequências do art. 7º, § 1º do Código Eleitoral: não tira passaporte nem RG; sendo servidor ou equiparado, não recebe remuneração; não participa de licitações nem faz concursos (se fez, não toma posse); não recebe empréstimo de bancos públicos ou com participação do Estado; não se matricula em estabelecimento de ensino e não obtém documentos das repartições diplomáticas. É assim há mais de cinquenta anos e o mundo não acabou!
Ora, leis já existem e outras normas podem ser criadas. Para os servidores basta especificar o dever num Decreto (pois as Leis próprias vinculam-nos às normas internas); para o setor privado, a CLT já o obriga a seguir as ordens do patrão (que precisa zelar pela sanidade do ambiente de trabalho). Quer ser um “mártir da ignorância”? Procure outra ocupação!
Mas se o Prefeito, o Governador ou o Patrão for negacionista? Você que valoriza a vida deve resistir e há muitas formas. Entre o bate-boca e a greve, você pode representar formalmente contra quem arrisca a vida de sua família (tanto seu colega quanto seu Chefe). Você, empregado, pode ingressar com ação trabalhista contra seu patrão. Você, servidor, com Mandado de Segurança ou Ação Ordinária contra o Estado ou Município ou a União. Não morra calado!
O Supremo Tribunal Federal, em decisão praticamente unânime (o Min. Nunes Marques, nomeado pelo Presidente negacionista, discordou em alguns detalhes), já deu o caminho das pedras na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.586, no final de 2020. O corpo é inviolável (não se pode “agarrar alguém e vacinar à força”), porém:
- A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, porquanto facultada sempre a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e
- i) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes,
(ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes,
(iii) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas,
(iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade e
(v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente
Mas não é só! O corpo e a vontade são invioláveis enquanto o uso do próprio corpo não ameaçar outrem e a vontade permanecer válida. Até a posse da própria morte é discutível. É o caso das greves de fome de prisioneiros. Predomina no mundo (em debate permanente) que enquanto estiver consciente (podendo manifestar a vontade), o grevista deve ser respeitado e não poderá ser alimentado à força (sonda, soro). Deixar a pessoa inconsciente falecer no cárcere implicaria na responsabilização do Diretor do estabelecimento (art. 122 do CP, pena dobrada) e do próprio Estado. A ideia consta da Declaração de Tóquio, da Assembléia Médica Mundial de 1975 e do art. 51 do Código de Ética Médica do Brasil.
Um exemplo radical (e que por isto, ensina) é o da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 618/DF. A Procuradoria da República busca garantir que Testemunhas de Jeová, internados em hospitais, não sejam obrigados a receber transfusões. Assim, os médicos não praticariam nenhuma infração deixando morrer quem assim preferir. Nada contra; mas há um detalhe: a opção é personalíssima e apenas para adultos capazes. Os pais jamais poderão decidir pela doença ou pela morte dos filhos. Imagine então o sujeito que se dispõe a contaminar os colegas de trabalho (ou os passageiros do veículo que ele pilota ou os clientes que ele atende)!
Mas isto não vai dar confusão? Claro que sim e é bom que aconteça! Não estamos em Hollywood! Além disto, a história (que se repete como tragédia e depois como farsa) já demonstra quem está certo. Lembem da “Revolta da Vacina” e as batalhas campais no Rio de Janeiro, entre 10 e 16 de novembro de 1904. Mudou-se a legislação e foram criadas as brigadas da vacina e mata-ratos. Foi criada uma série de vedações (como matrículas escolares ou autorizações de viagem) para os que não se vacinassem. Mas já havia “fake news” e espalharam que a campanha implicava em derrubarem as portas das casas e despidas as jovens à força. Somem-se as desastradas intervenções urbanas de “modernização” da então capital da república – leia-se: despejos forçados e destruição de lares da população pobre (gentrificação já existia também). Também não eram novidades os políticos negacionistas e os empresários preocupados em esconder a realidade de uma cidade pragada por febre amarela, varíola e peste bubônica – que Oswaldo Cruz, Diretor Geral (atualmente seria o Ministro) da Saúde, prometeu erradicar. Afinal, o porto que se transformou num viveiro de ratos era o mesmo que exportava o café e recebia os imigrantes italianos para “branquear a raça” e substituir a mão-de-obra escrava… Aproveitando a convulsão social, um grupo de militares (sempre assim e sempre eles) tentou dar mais um golpe de estado, sendo derrotados. No final, havia quase mil presos, 30 mortos e 461 deportados para o Acre! Revogada a Lei da vacinação compulsória, mas foi decretado estado de sítio e as reformas (e as vacinas) progrediram apesar da oposição. No final das contas, Oswaldo Cruz cumpriu a promessa. Hoje é nome de Instituto, além de patrono da Saúde Pública e do Sanitarismo brasileiros e referência mundial em doenças tropicais e endemias. Em 1908 a população fazia filas para vacinar-se contra a varíola e os negacionistas sumiram das notícias. Vai acontecer de novo; observemos…
Em todo o mundo os países começam a relaxar as medidas de isolamento social apenas na medida em que a vacinação avança. Em compassos diferentes, nas várias “culturas jurídicas” vem se formando um consenso: a pessoa que não se vacina é perigosa para a comunidade e precisa arcar com algum “desconforto”, legalmente determinado. Isto ainda é pouco, mas quem sabe é o vírus…
Passamos pelo dia dos pais. Após vidas longas e felizes, desejo a todas as famílias aquele final santo do poema. Exatamente por isto não aceito, não arrisco nem admito que outra pessoa venha tirar isto de mim.
E você, quer ver seu pai morto?
*Élder Ximenes Filho é Mestre em Direito Constitucional, Promotor de Justiça e integrante do TRANSFORMA MP