Todas essas medidas de exceção à ordem jurídico-trabalhista, com a MP 927, vieram em um momento em que o trabalhador já sentiu no lombo o peso da Reforma Trabalhista
Por Vanessa Patriota da Fonseca, no GGN
Estados Unidos, França, Itália, Inglaterra e outros países capitalistas têm lidado com a pandemia por meio do estabelecimento ou do fortalecimento de programas de renda mínima, e focado em medidas de preservação do contrato de trabalho, o que permite que o trabalhador se isole socialmente, contribuindo para não propagar o coronavírus, mas com condições de garantir sua subsistência. Enquanto isso, o governo brasileiro optou por uma postura em sentido contrário.
De início, para demonstrar essa assertiva, chamamos a atenção para o art. 18 da Medida Provisória 927/2020, revogado horas depois da sua publicação, que prescrevia que, por mero acordo individual entre empregado e empregador, o contrato de trabalho poderia ser suspenso, pelo prazo de até quatro meses, para participação do empregado em curso ou programa de qualificação profissional. Em português mais claro, o trabalhador poderia ficar por quatro meses em capacitação sem receber um real sequer. Não é preciso ser inteligente como o peixe para deduzir que isso aceleraria a estagnação econômica e colocaria o trabalhador em situação de maior vulnerabilidade, inclusive frente ao coronavirus. Como iria comprar medicamentos? Como iria adquirir itens de higiene? Aliás, como iria se isolar socialmente durante a pandemia, se teria que ganhar a rua em busca de qualquer bico que lhe permitisse garantir a sua subsistência?
Em que pese a revogação desse dispositivo, foi mantido o art. 2º da MP que dispõe que o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, e que esse acordo tem preponderância sobre instrumentos normativos eventualmente firmados pelo sindicato profissional e a categoria econômica.
O trabalhador possui tanta condição para negociar cláusulas contratuais, principalmente nesse momento de crise, quanto é correta a afirmação de que a terra é plana. Premido pelo temor do desemprego em meio a uma crise como a atual, o trabalhador aceitará qualquer negócio, qualquer migalha que lhe permita colocar um pão que seja na sua mesa. É se aproveitar da sua condição de vulnerabilidade e hipossuficiência para esmagá-lo.
Mas o pacote de maldades vai além, nos termos do art. 15 da MP, está suspensa a obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, exceto os exames demissionais. E nos termos do art. 16 está suspensa a obrigatoriedade de realização de treinamentos previstos em normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho.
Portanto, em meio a uma crise de saúde pública, o governo resolve afastar, exatamente, o cumprimento de normas de saúde e segurança no trabalho em vez de reforçar o seu cumprimento. O empregador não terá sequer a obrigação de realizar treinamento de segurança e saúde no trabalho visando orientar os empregados a se protegeram do vírus.
E mais, durante o de estado de calamidade pública os estabelecimentos de saúde podem, mediante acordo individual escrito, mesmo em caso de atividades insalubres e de jornada de 12X36, prorrogar a jornada de trabalho. Podem, inclusive, adotar escala de horas suplementares entre a décima terceira e a vigésima quarta hora do intervalo interjornada. Ou seja, está liberada a jornada de 24X24.
Não se refuta que seja razoável a prorrogação da jornada de profissionais de saúde em contexto de pandemia. Mas quando tais profissionais já exercem jornada de 12X36 a situação se torna extremamente grave. São trabalhadores que lidam com a vida humana, com instrumentos perfurocortantes, com risco à saúde, em situação de estresse, quando o risco de acidente aumenta consideravelmente.
E segue, a MP diz que durante o período de cento e oitenta dias, contado da data de sua entrada em vigor, os Auditores Fiscais do Trabalho atuarão de maneira meramente orientadora, exceto quanto à falta de registro de empregado, situações de grave e iminente risco, ocorrência de acidente de trabalho fatal, trabalho escravo e trabalho infantil.
Agora o empregador tem um salvo-conduto para fazer quase tudo o que quiser sem sofrer punição. Prorroga a jornada de trabalho por mais seis horas, e não será autuado. Põe trabalhador para laborar durante 12 horas seguidas sem intervalo para refeição, e não será autuado. Não fornecer EPI, justamente em momento de epidemia, e não será autuado.
Por fim, é importante destacar, também, a possibilidade de antecipação de férias prevista na Medida Provisória. Vejam, parece-nos bastante razoável a antecipação de férias, o estabelecimento de banco de horas, a antecipação de feriados não religiosos, entre outras medidas, durante esses dias tenebrosos em que vivemos e os que ainda estão por vir. Ocorre que o texto da MP diz que empregado e empregador poderão negociar a antecipação de “períodos futuros de férias” sem nada dizer sobre o total de períodos permitido. Se a situação durar seis meses e o empregador antecipar seis férias implica que ao retomar as atividades o trabalhador passará seis anos laborando sem parar. Trata-se de nítida afronta à saúde física e mental do trabalhador.
Todas essas medidas de exceção à ordem jurídico-trabalhista vieram em um momento em que o trabalhador já sentiu no lombo o peso da Reforma Trabalhista. A norma, além de não proteger o trabalhador formal, não prevê qualquer medida de proteção ao trabalhador informal, que vive em situação de grande instabilidade e penúria e que, para permanecer em isolamento social, ficará sem meios de subsistência no período de crise. Atualmente, 40,7% dos trabalhadores brasileiros ocupados sobrevivem do trabalho informal, muitos dos quais intermediados por plataformas digitais e com o vínculo empregatício sonegado apesar da existência dos requisitos da relação de emprego.
Se olharmos para além das nossas fronteiras, o caminho trilhado tem sido no sentido oposto. Na França, entre outras medidas, um dos responsáveis por filho menor de 16 anos, que não tenha com quem deixá-lo, recebe licença remunerada financiada pelo governo durante a pandemia. A Itália proibiu a dispensa imotivada dos trabalhadores por dois meses. Nos EUA, 1,5 trilhão de dólares será destinado, pelo governo, ao pagamento direto de benefício ao cidadão. E para não dizer que estamos olhando apenas para o hemisfério norte, o governo da Venezuela anunciou, neste domingo, que vai assinar um decreto proibindo rescisão de contrato de trabalho por iniciativa do empregador e suspendendo o pagamento do aluguel dos estabelecimentos comerciais e das residências principais nos próximos seis meses. Disse que serão concedidos subsídios especiais a mais de seis milhões de trabalhadores do setor privado e da economia informal. E, ainda, anunciou um plano prioritário de investimento agroalimentar.
Do lado de cá, o governo federal desligou profissionais do Programa Mais Médicos, contratados há três anos, por não terem o revalida, e reduziu em 158.452 o número de famílias atendidas pelo bolsa-família, sendo 96.861 da Região Nordeste. A decisão foi suspensa pelo STF após ajuizamento de ação por sete estados.
Por outro lado, o mesmo governo federal aprovou a liberação, pelo BNDES, de R$ 55 bilhões em medidas emergenciais de reforço para o caixa das empresas, mas, destes, apenas 5 bilhões para micro, pequenas e médias. Assiste-se à maior transferência de renda do pobre para o rico já vista nesse país, enquanto o trabalhador é jogado à própria sorte.
É preciso reverter essa lógica. É preciso tributar as grandes fortunas. É preciso promover uma alteração radical no sistema de seguridade social e de suas fontes de financiamento. Se a vida humana sofre, profundamente, com as movimentações das grandes corporações multinacionais, que invadem países, destrói o planeta e promove pobreza, é na taxação do seu capital que se deve vislumbrar um novo modelo de Estado que garanta a distribuição de rendas e riquezas, a estabilidade social e a dignidade humana.
É necessário que a população esteja atenta e forte. É imperioso ter clareza de o mais importante não é o tamanho da dívida pública, mas a preservação da vida humana!
*Vanessa Patriota da Fonseca é Procuradora do Trabalho, membra do coletivo Transforma MP e Doutoranda em Direito do Trabalho pela UFPE
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