Em 2016, quando o golpe de Estado levado a cabo por um conluio entre as elites econômicas (nacionais e internacionais), parte do Poder Judiciário (inclusive de sua cúpula) – aí incluído o Ministério Público – e o monopólio dos meios de comunicação retirou ilegal e inconstitucionalmente um governo eleito pela população do poder central do país, integrantes do Ministério Público brasileiro – de quase todos os seus ramos – iniciaram uma união que se pretende duradoura, na defesa intransigente dos valores humanistas e democráticos que necessitam, finalmente, vigorar no Brasil. Nasceu o Coletivo por um Ministério Público Transformador.
Embora esses valores já estejam há mais de 30 anos inseridos na atual Constituição Federal, muitos não têm – e nunca tiveram – aplicação para o povo, notadamente aquele que sobrevive à margem da sociedade. Para os descendentes diretos dos escravos, os alijados da terra e as populações tradicionais – especialmente os indígenas –, a gama de princípios que embasam nosso ordenamento jurídico nunca passou de folhas de papel. Para quem mais precisa de promoção e proteção estatal, os direitos fundamentais não existem. Para eles, o “Estado Democrático e Social de Direito” somente aparece com seu braço policial – seja para criminalizar, seja para encarcerar, seja para matar.
A violência contra o povo, no campo e nas cidades, atinge índices que já são além de alarmantes. No ano de 2018, mais de 6.000 mil pessoas foram mortas pela polícia no Brasil – de cujo total 75,4% são negrasi. Tudo indica que, em 2019, novo recorde será registrado. No ano presente, somente no Rio de Janeiro, 1.546 pessoas já perderam a vida por ações policiaisii. Em 1º de dezembro do corrente ano, nove jovens e adolescentes, Denys Henrique Quirino (16), Gustavo Cruz Xavier (14), Gabriel Rogério de Moraes (20), Mateus dos Santos Costa (23), Bruno Gabriel dos Santos (22), Dennys Guilherme (16), Marcos Paulo (16), Luara Victoria de Oliveira (18) e Eduardo Silva (21), foram mortas pela Polícia Militar de São Paulo, no bairro Paraisópolis, localizado na capital do Estado, havendo indícios claros de violência desmedida e de abuso de poder por parte de policiais.iii Entretanto, o governo estadual diz que a “política de segurança pública” não irá mudar, e o que pretende o atual governo federal é aprovar projetos de lei capazes de isentar militares e policiais que matam em serviço.
Quanto ao encarceramento, o cenário é trágico. As últimas informações sobre o sistema penitenciário dão conta de mais de 800 mil presos no Brasil. Do total, mais de 40% são presos provisórios e 61% são negrosiv. O crime mais responsável por esse quadro é o tráfico de drogas – praticado sem violência (28%) – o qual também é a causa de 62% do encarceramento femininov. Nesse contexto, ganha destaque especial a desagregação familiar e comunitária das populações pobres com a retirada de mulheres do convívio com seus filhos.
Ao mesmo tempo, há uma destruição do sistema de garantia de direitos sociais. Os direitos trabalhistas aos poucos vão deixando de existir. As pessoas, em massa, passam a se dedicar a trabalhos cada vez mais precários, sem segurança, sem proteção, sem perspectiva e sem organização. Jornadas exaustivas, competitividade, individualismo exacerbados e ataques à previdência social são faces cruéis do neoliberalismo – modelo econômico que retira dos pobres para dar aos ricos, conforme tem sido demonstrado em pesquisas e análises econômicas, sociais e políticas, e vivenciado na prática por populações no Brasil, na América do Sul e no mundo.
O exercício da democracia direta com a participação da sociedade civil, por meio de conselhos, comitês e conferências de políticas públicas, tem sido impedido, seja pela extinção das instâncias participativas por normas administrativas, seja pelo esvaziamento do custeio de deslocamento dos seus membros. Da mesma forma, o ensino superior público e a produção de ciência e tecnologia sofrem ataques sistemáticos, questionando a seriedade e moralidade da comunidade docente e discente, ao mesmo tempo em que cortes orçamentários sem critérios impedem a continuidade de pesquisas e projetos científicos, comprometendo o desenvolvimento atual e futuro do país.
O sistema de justiça, cuja missão constitucional é ser o máximo guardião da democracia, não tem fornecido respostas satisfatórias para esse quadro de enorme desrespeito aos direitos humanos. Ao contrário, alguns juízes e membros do Ministério Público endossam e praticam ações contrárias ao que exige a ordem jurídica. A quebra do devido processo legal e da imparcialidade na denominada “operação lava-jato” demonstrou que o sistema de justiça serviu como instrumento da violação da institucionalidade; como instrumento de perseguição judicial e manipulação do processo eleitoral.
O principal processo que envolveu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no bojo do qual o julgador, ao que tudo indica, atuou como órgão acusatório – sugerindo provas, dando palpites no trabalho do Ministério Público e interferindo no da polícia – foi um exemplo eloquente de como o Poder Judiciário pode, caso não siga rigorosamente as formalidades legais, ser prejudicial à democracia. O direito penal do inimigo dá mostras dos riscos que representa. Mais grave ainda é a adoção dessas práticas, contrárias aos direitos e garantias processuais, no dia-a-dia forense – cujas milhares de vítimas são, em sua maioria, anônimas.
Ao mesmo tempo, a Justiça mostra-se incapaz de atuar quando as vítimas são os cidadãos. No Rio de Janeiro, por exemplo, Estado onde há o maior número de pessoas mortas em operações policiais, dados dão conta de que apenas 3,5% das investigações sobre essas mortes chegam à justiçavi. Do número total de homicídios no país, a grande maioria também não é apuradavii.
A guerra do capitalismo mundial contra a democracia tem um foco especial na América Latina. Países como Cuba e Venezuela têm sofrido há anos violações em sua soberania e autodeterminação – com imenso prejuízo para seus povos –, sem que organismos multilaterais sejam capazes fazer valer os princípios do direito internacional. À resistência popular ao neoliberalismo países como Equador, Chile e Colômbia têm respondido com violência e repressão. Na Bolívia, forças reacionárias e racistas alijaram do poder o governo constitucional, mediante violência, homicídios e torturas, notadamente contra a população indígena.
Por tudo isso e como resultado da sua reunião anual, após o diálogo com os movimentos sociais no dia 22/11 e discussões e deliberações dos(as) associados(as) nos dias 23 e 24/11/2019, o Coletivo por um Ministério Público Transformador posiciona-se contra a abissal concentração de renda no Brasil. Posiciona-se contra a dizimação dos direitos sociais, trabalhistas e previdenciários. Posiciona-se contra o neoliberalismo. Contra o racismo. Contra o genocídio negro e o encarceramento em massa. Contra a violência policial. Contra a interferência indevida do Poder Judiciário no sistema eleitoral. Contra a manipulação dos fatos pelo monopólio midiático. Contra a influência externa em países subdesenvolvidos.
Posiciona-se ao lado do povo brasileiro, principalmente do mais pobre e necessitado. Posiciona-se a favor dos movimentos populares de luta e resistência. Posiciona-se a favor das universidades e faculdades públicas, da liberdade de cátedra e da produção científica. Posiciona-se a favor das reformas agrária e urbana. Posiciona-se a favor do poder para o povo preto. A favor da efetiva igualdade feminina. A favor do fim da violência contra a população LGBTQI+. A favor dos trabalhadores. Dos desempregados. Dos aposentados. Da solidariedade. Da fraternidade. Da autodeterminação dos povos e da resolução pacífica dos conflitos. A favor da justiça histórica para índios e negros. A favor da justiça para os perseguidos em épocas autoritárias.
Posiciona-se a favor da justiça para Marielle Franco e Anderson Gomes. A favor de justiça para Ágata Félix e Lucas Eduardo Martins. A favor de justiça para as Mães de Maio. A favor da luta dos movimentos de mulheres, das mulheres negras, indígenas e quilombolas, dos movimentos negros, das associações de familiares e amigos de presos, dos movimentos de luta pela terra sem-terra, dos movimentos de luta por moradia, dos atingidos por barragens, LBGTQI+, de mulheres, de indígenas, de ribeirinhos e quilombolas.
A favor da justiça a todos os que dela necessitamviii.
i Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2019. Disponível em http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Anuario-2019-FINAL_21.10.19.pdf
ii https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/11/mortes-pela-policia-em-2019-batem-recorde-no-rio.shtml
iii https://www.cartacapital.com.br/sociedade/videos-mostram-agressao-policial-em-paraisopolis-apos-acao-em-baile-funk/
iv https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/17/cnj-registra-pelo-menos-812-mil-presos-no-pais-415percent-nao-tem-condenacao.ghtml
v INFOPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen Mulheres. 2. ed. Brasília-DF, 2018.
vi https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/05/16/em-3-anos-mprj-so-consegue-denunciar-35percent-dos-casos-de-morte-em-operacoes-policiais.ghtml
vii https://www.cartacapital.com.br/sociedade/homicidios-no-brasil-sao-pouco-elucidados-diz-pesquisa/
viii Para dar concretude a tais posicionamentos, os integrantes do Coletivo Transforma MP dividiram-se em grupos temáticos e regionais, com vistas a potencializar a aproximação com os movimentos sociais e meios acadêmicos e científicos, contribuindo para o fortalecimento da aliança de resistência em defesa da Constituição Federal de 1988 e da democracia no Brasil.