Após ato de Bolsonaro, MP assume revisão de atestados de óbito da ditadura

Após paralisação no processo de retificação de atestados devido à demissão da procuradora regional da República, Eugênia Gonzaga, o MP-SP passou a atuar nesses casos por iniciativa do promotor Eduardo Valério.

Por Marcelo Oliveira, no UOL.

O MP-SP (Ministério Público de São Paulo) assumiu os processos administrativos relativos a mudanças em atestados de óbito de mortos e desaparecidos políticos na ditadura militar (1964-1985). Com as revisões, esses documentos passam a ter a circunstância da morte e a menção ao envolvimento de agentes de Estado nos casos. Antes, o atestado não mencionava as circunstâncias das mortes dos desaparecidos políticos.

O processo de retificação de atestados era conduzido, desde 2017, pela CEMDP (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos) em todo o país. Mas o projeto foi paralisado desde que a procuradora regional da República Eugênia Gonzaga foi demitida do cargo em julho deste ano pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido). O MP-SP passou a atuar nesses casos por iniciativa do promotor Eduardo Valério.

A mudança dos atestados de óbito de mortos e desaparecidos é uma das medidas de restabelecimento da memória e verdade recomendadas pela Comissão Nacional da Verdade em seu relatório final, publicado em dezembro de 2014.

Mortos pelo Estado

Nesta quarta-feira (18), o MP-SP realiza uma cerimônia para entregar a familiares os atestados de óbito corrigidos do sindicalista Virgílio Gomes da Silva e do jornalista Luís Eduardo Merlino, mortos sob tortura, em 1969 e 1971, respectivamente.

Silva foi o primeiro preso político morto pela repressão da ditadura militar que ficou desaparecido. Seu atestado de óbito original foi emitido somente em 1996, após a edição da lei 9140, de 1995, que reconheceu como mortos os desaparecidos políticos. No documento, consta apenas que Silva é desaparecido e não há nenhuma informação sobre como ele morreu.

No novo atestado constará que sua morte foi “violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto de perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora ao regime ditatorial de 1964 a 1985”.

Em um adendo ao documento, a família conseguiu a inclusão das lesões das torturas sofridas por Silva, constantes de um laudo necroscópico descoberto pela família em 2004. Silva foi torturado até a morte na sede da Operação Bandeirantes –que, posteriormente, seria base do Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) paulista– e enterrado como indigente.

Para o engenheiro Gregório Gomes da Silva, 52, filho de Silva, o atestado, 50 anos depois, representa um reencontro do Brasil com sua história.

É mais um passo de uma caminhada longa, iniciada pela minha avó, há 50 anos, em busca da verdade. Ficará assentado para sempre que o Estado foi responsável pela morte do meu pai [Gregório Gomes da Silva, filho de Virgílio Gomes da Silva].

Quem foi Virgílio

Nascido no Rio Grande do Norte, Virgílio Gomes da Silva migrou para São Paulo aos 18 anos e foi trabalhar como operário em uma indústria química e tornou-se sindicalista.

Preso em 1964 após o golpe militar, Silva foi para a clandestinidade após ser libertado e passou a integrar a ALN (Ação Libertadora Nacional), grupo guerrilheiro liderado por Carlos Marighella.

Em setembro de 1969, Silva foi preso novamente após ter participado do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, torturado até a morte e enterrado como indigente no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo.

O cemitério foi remodelado nos anos 70 e as sepulturas, renumeradas. Apesar de exumações realizadas pelo Ministério Público Federal e pela CEMDP, em 2011, seus restos mortais até hoje não foram localizados e identificados.

Assim como ocorreu no caso de Merlino, o atestado de Virgílio Gomes da Silva não foi retificado diretamente pelo cartório onde foi registrado o óbito, que, a princípio, decidiu consultar a Justiça antes de fazer a modificação.

Parecer decisivo

Segundo o promotor Eduardo Valério, um parecer do promotor William Roberto Rodrigues ao Corregedor Geral de Justiça com opinião favorável à retificação foi decisivo no processo de revisão da certidão de óbito de Silva. Após analisar o parecer, o corregedor determinou que os cartórios fizessem as mudanças nos atestados.

O caso de Silva teve trâmite semelhante ao de Merlino, cuja família soube em outubro deste ano sobre o novo atestado, conforme revelado pelo UOL.

No atestado de óbito original do jornalista, constava que ele morreu de “anemia aguda traumática”. Assim como no atestado de Silva, também constará que o jornalista faleceu “em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”.

Ao receber o novo atestado de óbito, no início da tarde de hoje, em uma cerimônia realizada no MP-SP, a viúva de Merlino, Ângela Mendes de Almeida, lembrou que tanto Silva quanto seu ex-companheiro foram mortos sob tortura e que, hoje em dia, a tortura está “completamente banalizada”.

Segundo o promotor Eduardo Valério, as famílias de mortos e desaparecidos políticos em São Paulo que estão com atestados de óbito com retificação pendente poderão entrar em contato com a promotoria de registros públicos para dar seguimento aos processos.

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