Por Clara Assunção, na Rede Brasil Atual.
São Paulo – Janaína Aparecida Quirino entrou na sala de cirurgia em fevereiro de 2018 para dar luz a uma criança. Saiu de lá estéril, e com a filha sendo encaminhada para adoção. Um ano antes, Tatiane Monique Dias deu entrada no hospital para realizar o parto do segundo filho. Dois dias depois, a jovem considerada “incapaz” pela Justiça por ter “retardo mental moderado”, foi submetida à laqueadura.
Como Janaína e Tatiane, há ainda outras duas mulheres, pobres e dependentes de algum tipo de substância psicoativa, alvos de processo de esterilização definitiva semelhante. Em comum, as mulheres da cidade de Mococa, no interior de São Paulo, não guardam apenas os procedimentos cirúrgicos, as circunstâncias ou a geografia, mas também por trás de cada ação judicial movida para que elas não tenham mais filhos o nome do promotor de Justiça Frederico Liserre Barruffini
Na quarta-feira (14) da semana passada, todo esse histórico, com exceção do caso de Tatiane, em que a mãe teria dado consentimento à cirurgia, foi levado a julgamento ao Órgão Especial do Colégio de Procuradores do Ministério Público de São Paulo. As três “canetadas” do promotor lhe renderam 15 dias de suspensão, sem remuneração ou benefícios, ou a possibilidade de recorrer da decisão. O afastamento, no entanto, tem início após data publicada no Diário Oficial do Estado, ainda sem previsão para ocorrer.
Quando soube da punição pelos meios de comunicação tradicionais, a promotora de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais Daniela Campos chegou a se alegrar com o que considerou um avanço: “São Paulo mostrou que a conduta do colega foi equivocada e contrariou a nossa missão constitucional”. Para um órgão como o MP, reconhecido por uma “política corporativista”, a decisão causou entusiasmo, uma onda que logo perdeu força para a promotora ao relembrar que a punição seria ínfima diante de um processo irreversível de esterilização.
A conduta do promotor que levou a pequena Mococa às altas instâncias judiciais do país chegou pela repercussão da história de Janaína, uma mulher negra e pobre que denunciara ter sido submetida à laqueadura contra a sua vontade, um processo que atendeu apenas a emergência imposta pelo promotor.
Embora relutante em realizar o procedimento, Janaína foi objeto de uma ação civil que determinava liminarmente “a realização de cirurgia, a qual deve ser feita mesmo contra a vontade da requerida”, sob a justificativa de garantia de vida da mulher. O processo foi deferido pelo juiz Djalma Moreira Gomes Júnior, e Janaína, após o parto de seu oitavo filho, saiu da sala de cirurgia sem nunca mais poder engravidar.
“Não acredito que tenha sido a punição ideal”, pondera a integrante do Coletivo Transforma MP comparando o caso a outra punição, também recentemente decretada, em relação ao procurador da Bahia Rômulo de Andrade Moreira que se referiu ao presidente Jair Bolsonaro como “bunda suja”, entre outros adjetivos, e foi suspenso por 30 dias sob a mesma condição do promotor de Mococa.
“No meu sentir é muito mais grave que, enquanto promotor de Justiça, você tenha o poder de pedir algo que interfere na autodeterminação de uma pessoa vulnerável, do que uma ofensa ao presidente da República por questões inclusive de posturas contrárias à Constituição Federal, mas nós tivemos uma punição e uma diretriz para os demais membros do Ministério Público, de que esse não é o caminho que o Ministério Público da Constituição tem que tomar”.
Dois meses depois de ter sido submetida ao procedimento cirúrgico, um recurso do Município de Mococa, que pedia a suspensão da esterilização compulsória de Janaína, foi acatado pelo Tribunal de Justiça, que considerou a realização da laqueadura como uma lesão à integridade física e um procedimento médico invasivo. O que levou Janaína a protagonizar a inversão de uma máxima, em seu caso, a da justiça que “não falhou, mas tardou”.
“Se você for medir a mulher que teve seu corpo mutilado, que não vai poder nunca mais ter filho, uma laqueadura irreversível, e o promotor perder 15 dias de salário, é absurdamente ridículo, a punição é baixíssima, chega a ser risível. Mas eles (promotores) têm tanta proteção e liberdade para conseguir interferir na reprodução das mulheres por exemplo, que, dentro do MP, o fato dele ter tomado uma punição já é um evento a se destacar, porque o MP viu o erro o que ele fez, o que já é difícil”.
A avaliação da co-fundadora da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde), advogada e mestranda pela Universidade de São Paulo (USP), Tainã Góis, leva em conta o histórico de punições da esfera judicial.
Um levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), divulgado em 2017, mostrou que em 12 anos de atuação do órgão, 189 punições disciplinares foram aplicadas a membros do MP. Desse total, apenas 56 foram suspensões, como a recebida pelo promotor Barruffini. “Por esses parâmetros não foi uma punição tão branda, apesar de parecer pouquíssimo um indivíduo perder 15 dias de salário e tomar uma suspensão, por ter modificado em absoluto o curso da vida de uma mulher”, explica Tainã.
Agora, Barruffini levará por sua carreira dentro do quadro do MP um histórico onde se inscreve o processo disciplinar com suspensão. Não fosse seu trabalho como 2º Promotor de Justiça atuando no âmbito de varas como Infância e Juventude e dos Direitos Humanos, por conta de um salário de R$ 27.500,00, segundo folha de pagamento de dezembro, sua vida em pouco cruzaria com a das quatro mulheres que pediu laqueadura. A remuneração de Janaína por exemplo, de acordo com ação do promotor, chega a ser pouco mais de R$ 400.
Inicialmente, Barruffini deixaria de receber todo o seu salário, como previa o relatório de investigação do procurador Marcio Sergio Christino, que o suspendia por 30 dias. Mas, na votação do colegiado, seus colegas optaram por uma pena mais branda.
Formado em sua maioria por homens – são 34 ante 8 mulheres – foram precisos 24 votos para a sanção disciplinar. Outros sete membros não reconheceram que a conduta do promotor tenha sido equivocada. Por meio da assessoria de imprensa do MP-SP, o procurador afirmou que preferia não se manifestar no momento sobre a decisão do Órgão Especial.
Quando homens brancos, postos como elite intelectual e econômica, tomam decisões sobre a vida de mulheres negras não deixa de fazer sentido para a presidenta da Comissão da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo (OAB-SP), Claudia Patrícia de Luna Silva, o quanto “todos e todas do sistema justiça somos herdeiros desse sistema que foi construído com base na Constituição de 1824”, ressalta a presidenta em referência a Carta Magna que conferia direitos e garantias fundamentais a toda a população brasileira, exceto negros e leprosos. “Não é de se estranhar que o poder judiciário, ainda branco, cis-hétero sexual, normativo, ele ainda reproduza decisões pautadas com base no machismo e no racismo, do qual eles foram frutos, foram formados e criados”.
É por isso que ao analisar, para a RBA, a punição e a conduta do promotor, as três especialistas destacaram que, na cabeça do promotor Barruffini, ou ainda do juiz, não deve ter passado que, ao fazer seu trabalho, ele estava cometendo diversas violações constitucionais ou ainda da Lei do Planejamento Familiar, que confere unicamente à mulher autonomia para decidir sobre a realização da esterilização.
“Eles contam a história de que essa mulher (Janaína) consentiu, e aí teve a oitava gravidez, não tinha como cuidar dos filhos, e foi realizada a laqueadura. A ideia é que eles não achavam que estavam fazendo um coisa errada, mas um bem para a sociedade, porque o que eles entendem por bem é o poder desse homem, branco, com poder de Estado e de interferir na vida de uma mulher que eles acham que não sabe cuidar da própria vida”, afirma a co-fundadora da DeFEMde.
“São questões difíceis, eu entendo o colega, na situação concreta a gente também é muito pressionado, mas é por isso que a gente tem todo esse poder para justamente separar o joio do trigo. Como promotores promovermos essa igualdade, então o raciocínio de que esse tipo de atitude no século 21 não é uma higienização, é difícil”, explica a promotora.
“Essa punição dá a resposta pedagógica. O promotor estava cumprindo o papel dele, só que na verdade ele extrapolou esse cumprimento a partir do instante que tudo isso causou um dano e uma lesão a essa pessoa”, acrescenta a presidenta da Comissão da Mulher da OAB-SP.
Procurado pela reportagem, o Ministério Público de Mococa informou que o promotor Barruffini não comentaria a decisão.
O caso de Janaína também é destaque em uma ação ingressada pela Defensoria Pública de São Paulo contra o Estado. No pedido de indenização, no valor de R$ 500 mil, a defesa busca “ressarcir minimamente Janaína de todas as violações que foram cometidas”. Até hoje a mulher também não sabe nem o tipo de laqueadura que foi feita. A respeito da punição do promotor, o órgão disse desconhecer o teor da decisão e que, pelo fato de o processo estar sob segredo de Justiça, não se manifestaria sobre o tema.
No caso do juiz Djalma Moreira Gomes Júnior, a Corregedoria do Tribunal de Justiça preferiu, em outubro, arquivar a investigação.
Ainda assim, a punição que marca agora a carreira de Barruffini também se torna um “emblema” para defesa de outras mulheres, como destaca Tainã. “Não diria que essa punição vai impedir que aconteça outros casos, mas eu acho que é um emblema para as mulheres organizadas e o meio jurídico progressista falarem que é possível denunciar ou pelo menos constrangê-los. Essa decisão do MP é mais um constrangimento, eles estão constrangidos com a repercussão social que tomou esse caso”.