Quando a noite cair
E uma estrela surgir
Sou eu, madrugada sou eu
Sou seu pirilampo
Viajante do céu
Procurando seu brilho
Na aba do meu chapéu
Sou seu pirilampo
Viajante do céu
“Viajante Pirilampo – Boi Pirilampo”
Depois de conhecer Recife, Olinda, Salvador, Itacaré, Morro de São Paulo, Natal, Praia da Pipa, Baía Formosa, Fortaleza e Maceió, imaginei que São Luís seria apenas mais uma cidade maravilhosa do abençoado Nordeste brasileiro. Ia eu para o VI Encontro Nacional do Ministério Público – Pensamento crítico e práticas transformadoras, que aconteceria entre 3 e 5 de julho, evento organizado pela Escola Nacional do Ministério Público, pelo Conselho dos Diretores das Escolas do Ministério Público, pela Escola Superior do Ministério Público do Maranhão e pelo Coletivo Transforma MP.
Já no primeiro dia na Ilha do Amor, entretanto, fui surpreendido por um estranho sentimento. Notei que São Luís (e depois percebi que em outros lugares do Estado ocorre o mesmo) é um lugar mágico; lugar que respira cultura e tradição; lugar em que dá vontade de chorar a cada música ouvida, a cada apresentação assistida, a cada amizade feita, a cada passeio realizado.
Na cerimônia de abertura do evento, após ouvir a Promotora de Justiça Luísa de Marilac, coordenadora do Coletivo Transforma MP, cantar “liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”, a diretora da Escola Nacional do Ministério Público, Ana Teresa de Freitas, o diretor da Escola Superior do Ministério Público do Maranhão, Márcio Thadeu Silva Marques, o Procurador-Geral de Justiça Luiz Gonzaga Martins Coelho, e também o Governador do Estado, Flávio Dino, oportunidade em que a expressão “resistência aos retrocessos” deu o tom das falas, houve a apresentação do Grupo “Boi Axixá” no palco do auditório da Procuradoria-Geral de Justiça. As lágrimas vieram-me pela primeira vez.
No segundo dia do evento, desta vez no Centro Cultural e Administrativo do MP do Maranhão – onde há a exposição de lindas obras de arte e a venda de produtos de artesanato e da culinária local –, o professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, Juarez Guimarães, com um arsenal teórico inigualável, falou sobre a ameaça às democracias no mundo pelo atual projeto neoliberal e também sobre a necessidade de se retomar uma cultura de direitos.
À tarde, o juiz de direito da Vara de Execuções Penais de Manaus-AM, Luis Carlos Valois, abordou o abismo que existe entre o Poder Judiciário e a população. Falou sobre a falta de bom-humor e de simpatia, da linguagem pouco acessível e da mentira que se tornou o sistema de justiça no país. Para Valois, “onde não há verdade, sobre solenidade”. Valois condenou a atual política de drogas, responsável por um direito penal de exceção, no qual os direitos fundamentais – há muito consagrados – não valem.
Tivemos ainda a oportunidade de conhecer o Arraial do Ipem: Bumba-meu-boi de Morros, Bumba-meu-boi Brilho da Ilha, Boi Pirilampo, Bumba-meu-boi Nina Rodrigues e outros. Segundo Allender Barreto, Promotor de Justiça em Minas Gerais, a cultura maranhense não é pasteurizada, não é aquela cultura enlatada com as quais estamos acostumados. Após comer um arroz de cuxá, vatapá, creme de macaxeira e torta de camarão, ouvimos a moça da barraca dizer: foi um prazer conhecer vocês. E novas lágrimas escorreram.
No terceiro e último dia, a emocionante e contundente fala da Promotora de Justiça da Bahia, Lívia Maria Santana Vaz, demonstrou como a sociedade e as instituições são influenciadas pelo racismo estrutural que desenhou a história no Brasil, e como aos negros e negras são reservados os espaços subalternos, gerando desigualdade de renda e de oportunidades, falta de direitos básicos e vitimização preferencial da ação da justiça criminal.
Surpreendeu positivamente também a exposição de Danilo Lopes, natural da comunidade tradicional quilombola de Canelatiua, de Alcântara, ameaçada desde a década de 1980 com a construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), havendo previsão de expansão em razão do recente acordo assinado pelos governos do Brasil e dos EUA. Logo depois, o sociólogo César Choairy, professor da Universidade Federal do Maranhão, explicou a respeito dos prejuízos que a instalação e a expansão da base causaram e continuam causando às populações tradicionais de Alcântara.
Todas as demais falas foram igualmente enriquecedoras e importantes, como das Promotoras de Justiça de Minas Gerais Daniele Arlé e Daniela Campos, que trataram sobre Justiça Restaurativa, da Procuradora de Justiça Ivana Faria Navarrete Pena, que tratou sobre a questão de gênero no MP, da juíza Rosália Guimarães, que abordou o cuidado devido a usuários e dependentes de drogas na justiça criminal.
No coquetel de encerramento, o diretor do Museu do Reggae (cuja visita também é imperdível), Ademar Danilo, falou um pouco sobre a história do ritmo e sua adoção no Maranhão como parte da cultura local, brindando os presentes com belíssimas canções e com a presença de instrutores de dança, com sua elegância e leveza insuperáveis.
Com a finalização do evento, parada obrigatória em Barreirinhas, município onde se situam os Lençóis Maranhenses – cuja beleza não pode ser medida em palavras. Pelo Rio Preguiça, visita aos povoados de Cantinho, Vassouras, Caburé e Mandacarú. A cultura simples dos pescadores e moradores desses locais colocam em dúvida a real importância do que temos e buscamos como objetivo de vida nas cidades grandes.
Já de volta a São Luís, e ao sair do quarto para realizar o check out, deparo-me com uma das funcionárias do Hotel. Havia ela acabado de encontrar um convite de casamento deixado num dos quartos. No papel, havia uma citação bíblica do Evangelho de Lucas sobre o amor (de cujo conteúdo infelizmente não me lembro). Disse-me ela: tomara que esse casal tenha mesmo esse amor. E as lágrimas caíram pela última vez em terras maranhenses.
Texto de Gustavo Roberto Costa, do MPSP, integrante do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP.