Por Lênio Streck, no Conjur.
O Direito brasileiro inventou um novo conceito de “imparcialidade”, pelo qual tudo é/será permitido nesse novo jokenpô. Explicarei na sequência. Deus morreu… e agora tudo pode(?).
Pensemos em coisas que, em circunstâncias de democracia plena, causariam enorme indignação pelo menos no meio jurídico, em que qualquer livro de quinta categoria ensina o conceito de imparcialidade.
Pensemos em processos judiciais em que se descobre que um conjunto de protagonistas (no caso, a acusação) conversa entre si. Nos diálogos, lê-se coisas como “esse acordo não é moral” (o resto você já deve ter lido).
Pensemos em processos judiciais em que o juiz dá dicas ao Ministério Público em termos de provas. E fica comprovado que o MP seguiu a dica… só não deu certo.
Pois os diálogos publicados no dia 29.6.2019 pelo Intercept Brasil e Folha de S.Paulo, aliados aos anteriores já divulgados, apontam para uma espécie de anomia, terra sem lei ou estado de natureza delacionista que vem sendo praticado no interior da “lava jato”. Uma verdadeira waste land de T.S. Eliot. Enterremos os mortos!
Nas novas revelações, tem-se diálogos que mostram a normalidade com que os procuradores tratavam da necessidade de trocar anexos que não lhes pareciam interessantes. O trecho em que o procurador Athayde fala de versões que comprometem várias investigações é muito forte. É escabroso.
A falta de imparcialidade está demonstrada à saciedade e à sociedade. Dizer que os tais diálogos são produto de crime pode (até) livrar os protagonistas de processos, como parece que já fez o CNMP. Porém, não retira o fato de que a demonstração da falta de imparcialidade tem o condão de beneficiar réu(s).
No tocante aos acordos, fixemo-nos no caso Leo Pinheiro e o que diz o procurador Athayde. Qual é o busílis de tudo isso? Simples. O grande problema é a falta de accountability (como buscar a prestação de contas desses atos?) representada pela ausência de registro dos anexos entregues, o que, por óbvio, pode levar a uma manipulação dos fatos delatados por pressão do MP. E accountability, lembremos, é condição de possibilidade em uma democracia. Circunstâncias, afinal, em que certas condutas dariam azo a reviravoltas no modo de aplicar o Direito, além de anular processos em que essas “coisas” ocorreram.
Observe-se que a necessidade de formalização do procedimento só surge com uma portaria de 2018. A partir de então, todos os MPFs passaram a formalizar Procedimento Administrativo em que os anexos entregues são registrados. Ora, se antes da portaria nada se fazia em termos de formalização, isso não quer dizer que não era necessária. Quer dizer apenas que estavam agindo à margem da Constituição.
A Portaria 1/2018 não garante, por si, a lisura do procedimento. Mas ajuda. De novo, vem o grave problema de não adotarmos salvaguardas, e continuarmos a permitir que o MP investigue apenas para si e no modo como quer, sem que seja obrigado a mostrar (trazer aos autos) as provas encontradas que possam beneficiar ao acusado.
Tenho alertado a comunidade jurídica sobre isso de há muito. O Ministério Público — e os diálogos mostram isso — age estrategicamente, sem a necessária isenção que se exige de um órgão que possui as mesmas garantias da magistratura. Parece que o Ministério Público não se importa com isso — tanto é que nada fez em relação ao item 9 do acórdão do TRF na AC 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, em que ficou assentado que não se pode exigir isenção do Ministério Público. É legítimo isso?
Claro que não. E ainda que fosse, isso gera o paradoxo. Digamos que, ok, o MP não precisa ser isento; penso que todos concordam que pelo menos o juiz tem de ser isento. Certo? Como pode, então, ser legítimo que um então juiz-que-tem-de-ser-isento dê pitaco em ordem de operação e indique testemunhas pra acusação-que-não-precisa-ser-isenta? Quem responde? Se disserem que “isso é normal”, minha resposta é: às montanhas!
Como evitar o fator pedra-papel-tesoura no processo penal?
Com minha chatice epistêmica, venho por meio desta, pela enésima vez, insistir para que o Parlamento faça o que tem de fazer. Legisle. Para isso, até o gabinete do Tiririca resolve, na base do recorte e cola (afinal, isso está na moda até em sentenças judiciais), bastando pegar o artigo 54, “a”, do Estatuto de Roma — que está, aliás, incorporado desde 2002 ao Direito brasileiro, e adaptar (agora, é só copiar):
O Ministério Público deverá, a fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o devido processo legal e as garantias constitucionais e, para esse efeito, investigar, de igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa.
É o mesmo que exige a US Supreme Court desde 1963 (não gostam tanto do Direito dos Isteites?): por uma questão de due process, a promotoria de lá tem um dever constitucional de trazer aos autos tudo que puder inocentar o réu. Ah, vejam o alerta feito até em editorial pelo NY Times: não basta reconhecer a obrigação; se a regra não for imposta, se não houver responsabilização a quem não a seguir, o negócio não funciona.
Detalhe. O Estatuto de Roma copiou esse mecanismo “anti-agir-estratégico do MP” lá da Alemanha. Querem ver? Leiamos o que diz o parágrafo segundo da seção 160 do CPP da Alemanha. O dispositivo diz, e traduzo livremente, que
“[o] ‘Ministério Público’ deve buscar [no sentido de investigar] não apenas as circunstâncias incriminatórias como também as que exoneram[o réu].” („Die Staatsanwaltschaft hat nicht nur die zur Belastung, sondern auch die zur Entlastung dienenden Umstände zu ermitteln und für die Erhebung der Beweise Sorge zu tragen, deren Verlust zu besorgen ist.“
Está aqui, e já falei sobre isso aqui. Aqui está a maior salvaguarda, para evitar o que se vê nas revelações do Intercept.
Portanto, trazendo às claras: uma das medidas de accountability seria, além da exigência de que qualquer investigação do MP também deva ser feita para buscar a verdade inclusive a favor da defesa, seria a de punir ao agente que, de algum modo, deixasse de apresentar elementos objetivos a favor do réu.
Isto também se aplica aos casos de delação, mormente aos delatados, que ficam à mercê dos delatores, cujos acordos são de difícil fiscalização.
Vejam: Imagine um caso em que, havendo elementos a favor do indiciado, este aceita o acordo porque desconhece os elementos que poderiam levar ao arquivamento ou à sua absolvição. Deu para entender? Nem vou falar do que diz o Código Penal alemão sobre a falta de parcialidade e o não trazer à lume todas as provas. Já discorri, exercitando minha chatice ortodoxa, muitas vezes sobre isso (ver aqui, por muitas vezes).
Portanto, parafraseando o poeta, delatar deve ser preciso (correto, certo, transparente, fiscalizável); o que não tem sido preciso (no sentido de precisão) é justamente o agir estratégico do Estado-acusação.
Isso tudo, no caso da “lava jato”, misturado com a parcialidade do juiz, dá uma receita para uma tempestade perfeita: Juiz-que-devia-ser-isento + conversa fora dos autos + MP-que-não-precisa-ser-isento + espetacularização da justiça + punitivismo + democracia frágil. O resultado da equação?
Fácil. Parcialidade. Partidarismo. Postura incompatível com a de juiz. Juiz inquisitivo, que viola o sistema acusatório. Que só é tolerado por seus resultados. Quem diz isso não sou; são procuradores da República. É só clicar para ler.
Parece que estamos em face do fator pedra-papel-tesoura. A pedra que ganha da tesoura que ganha do papel é a conversa do juiz imparcial com o MP que é parcial que conversa com o juiz imparcial que conversou com o MP parcial e, portanto, não mais é imparcial. Jokenpô da “lava jato”. Qual é o busílis? Nessa “teoria dos jogos”, pra entrar na onda, o réu sempre perde. Talvez esteja aí a explicação do fascínio pelos EUA: em Vegas, a casa sempre vence.
Repito: quem insiste na tese de que isso é normal há que sair do paradoxo. Se o MP não precisa ser isento, e se o juiz precisa, como pode ser normal que o segundo interfira diretamente na atuação do primeiro?
Os três juntos não dá certo. Ou o MP tem de ser isento, ou assumimos de vez que o juiz pode ser parcial, ou os dois não conversam desse jeito. O curioso é que os protagonistas da “lava jato” insistem em sustentar as três teses concomitantemente. MP não precisa ser isento, o juiz é imparcial, não há nada de errado nos diálogos. Desculpem minha sinceridade, mas quem diz isso está insultando a inteligência do interlocutor.
Peguemos nosso dinheiro de volta das faculdades que cursamos. Ou vamos devolver os livros. E processar, buscando dano moral coletivo, os autores que gastaram rios de tinta ensinando o conceito de imparcialidade.
Uma pergunta final: nesse jokenpô, o que sobra para os réus e os advogados? Principalmente em um país em que o exercício da advocacia se transformou em um exercício de humilhação e corrida de obstáculos, como já (d)escrevi tantas vezes.