Por Gustavo Roberto Costa, no GGN.
Com a revelação de conversas privadas entre integrantes do Poder Judiciário e do Ministério Público atuantes em importantes e conhecidos processos criminais, uma profunda reflexão torna-se necessária. Como não houve negação da autenticidade dos diálogos, algumas consequências são inexoráveis.
Há indicativos de que os equipamentos utilizados para as conversas não eram particulares, mas públicos, concedidos aos profissionais para o exercício de suas funções. Se assim for, há dúvidas se poderão alegar invasão de privacidade. O que é público não pode permanecer secreto. Mas esse não é o objeto da presente – e singela – reflexão.
Instituições como o Judiciário e o Ministério Público receberam uma importante missão da Constituição Federal: fazer valer o ordenamento jurídico; defender as leis. Para tanto, foram dotados de autonomia com relação a outros poderes e, seus membros, de independência. Foram blindados de pressões externas e internas para cumprir seu trabalho de maneira isenta. Mas como tenho alertado há alguns anos, na prática a teoria foi outra.
Ocorreu que alguns integrantes dessas instituições – felizmente ainda não todos – viram-se desobrigados de observar mandamentos legais. A lei passou a ser um entrave para sua atuação. Devido processo legal? Presunção de inocência? Contraditório? Ampla defesa? Embora sejam princípios consagrados nacional e internacionalmente, não raro se veem, no âmbito do sistema de justiça, solenemente ignorados. E não há a quem recorrer.
As instituições são independentes exatamente para que realizem suas funções de forma imparcial. No âmbito penal, a polícia investiga, o Ministério Público promove a ação e produz as provas em juízo (tem poder de iniciativa) enquanto o Judiciário (que não tem poder de iniciativa; é inerte) analisa os casos trazidos a si, as provas, as alegações das partes e aplica o direito ao caso concreto. Qualquer conserto prévio entre juiz e uma das partes é ilegal, pois impede que uma instituição fiscalize e controle a correção do trabalho da outra.
Algo muito nebuloso ocorre quando a sugestão de testemunhas pelo juiz para uma das partes, a cobrança do juiz para que “operações” sejam realizadas, o adiantamento do conteúdo de decisões e a “bronca” do juiz num membro do Ministério Público – e nenhum Promotor ou Procurador que se preze deve aceitar broncas de juiz – não chocam a comunidade jurídica como um todo.
Como não há certeza sobre a obtenção das conversas, e nem se foram de aparelhos públicos ou privados, eventuais providências administrativas, civis e criminais contra os agentes envolvidos ainda são incertas. Se a captação da conversa se deu de maneira ilegal, ainda que em tese as condutas sejam incorretas, nada poderá ser feito (art. 5º, LVI, CF). Prova ilícita é prova ilícita. Devem ser extirpadas de qualquer processo administrativo ou judicial – embora essa não seja a opinião de muitos dos membros da tal “força-tarefa”.
É praticamente unânime na doutrina processual, entretanto, que as provas ilícitas podem ser consideradas quando beneficiar o investigado, réu ou condenado. Por todos, Greco Filho, citado por Aury Lopes Junior: “uma prova obtida por meio ilícito, mas que levaria à absolvição de um inocente (…) teria que ser considerada, pois a condenação de um inocente é a mais abominável das violências e não pode ser admitida ainda que se sacrifique algum outro preceito legal”[1].
Assim, todas as ações penais em que houve conversas prévias, acertos, conselhos e auxílio entre membros de diferentes instituições devem ser anuladas. São nulas de pleno direito. Não podem surtir efeito no mundo jurídico. Estão viciadas e maculadas desde sua origem – e pouco ou nada importa se os acusados são culpados ou inocentes.
A consequência imediata deve ser a soltura de todos os investigados, processados e punidos (ainda que com sentença transitada em julgado) pelos interlocutores das conversas. As dúvidas quanto à higidez dos processos exigem cautela com a liberdade alheia. Se há possibilidades concretas de anulação dos processos, a liberação é medida de rigor.
Se as instituições jurídicas – às quais se confiou a guarda da constituição – não adotarem essas providências, se não agirem por medo de linchamentos virtuais, se se acovardarem diante de indícios sérios de violação a princípios fundamentais do direito (como o da imparcialidade do juiz e do órgão acusatório, da paridade de armas entre as partes e do devido processo legal), se não pararem esse ataque incessante à institucionalidade, não haverá dúvida: será a falência do sistema de justiça.
A luta de narrativas, as notícias falsas que não param de ser compartilhadas, a distorção dos acontecimentos, a repulsa à ciência e à pesquisa, os ataques incessantes aos professores e à educação exigem que todos aqueles que ainda se preocupam com os direitos humanos manifestem-se. O Estado Democrático precisa se impor. A sociedade deve exigir o respeito a seus direitos – que são de todos, e não de uma meia dúzia de privilegiados.
Nessa guerra híbrida, é vencer ou vencer.
Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD. Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM
[1] LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 406.