Publicado no site do MPF.
O Ministério Público Federal, por meio da, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) encaminhou ontem, 5, nota técnica aos parlamentares integrantes da comissão especial que analisa a proposta de reforma da Previdência do governo federal, apontando diversas inconstitucionalidades na matéria.
O documento ressalta que o estabelecimento de um novo regime com base em um modelo de capitalização altera o princípio da solidariedade estabelecido como núcleo central da Constituição Federal de 1988.
Além disso, segundo a PFDC, a proposta é inconstitucional porque pretende disciplinar questões relativas à Previdência, como idade mínima e tempo de contribuição, por meio de lei complementar. de conteúdo ainda desconhecido.
Na nota técnica, o órgão do Ministério Público Federal também destaca que a Constituição de 1988 traz normas que traduzem políticas públicas voltadas à superação da desigualdade histórica que marca a sociedade brasileira. De acordo com o artigo 195, a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, bem como de contribuições sociais.
Confira outros trechos da nota destacados pela PFDC:
“A ideia força da capitalização proposta pela reforma da previdência – comumente chamada de ‘poupança individual’ – é a do máximo egoísmo, em que cada qual orienta o seu destino a partir de si, exclusivamente. Nada mais incompatível, portanto, com o princípio regulativo da sociedade brasileira, inscrito no art. 3º da Constituição Federal, que é o da solidariedade”, critica a PFDC.
A Procuradoria aponta, ainda, que reformas constitucionais mediante emenda têm como limite as chamadas cláusulas pétreas – solução encontrada para, de um lado, salvaguardar determinados valores fundamentais, que não podem ficar expostos às flutuações de uma maioria, ainda que qualificada, e, de outro, permitir, quanto a tudo mais, que as gerações futuras tenham o direito de deliberar sobre as soluções constitucionais que lhes convenham.
“E não há como negar que os temas atinentes à capitalização e à desconstitucionalização dos principais vetores da Previdência alteram o núcleo essencial da Constituição de 1988”. Para a Procuradoria, a capitalização, sob a forma de poupança individual, como regime substitutivo ao de repartição, aumenta a desigualdade de renda e gênero, na contramão do grande investimento constitucional na redução das desigualdades e discriminações de todos os tipos. Do mesmo modo, a desconstitucionalização das questões centrais da Previdência fere de morte valores fundantes da Constituição de 1988, tal como o de explicitar, em nível constitucional, os principais fundamentos das políticas públicas voltadas à construção da sociedade nacional projetada no artigo 3º.
Privatização fracassou em outros países – Nos subsídios enviados aos parlamentares, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão elenca dados de estudo produzido em 2019 pela Organização Internacional do Trabalho em que analisa três décadas de privatização da previdência social em países do Leste Europeu e da América Latina – como Argentina, Chile, Bolívia e Peru. O estudo aponta o absoluto fracasso dessas medidas, em razão do acúmulo de evidências sobre os impactos sociais e econômicos.
O levantamento narra a experiência de ao menos 30 países que, entre 1981 a 2014, privatizaram total ou parcialmente seus sistemas previdenciários. De acordo com o estudo, a grande maioria dessas nações se afastou da privatização após a crise financeira global de 2008, quando as falhas do sistema de previdência privada tornaram-se evidentes e tiveram que ser corrigidas.
O texto elenca uma dezena de impactos da medida, como: estagnação e diminuição da cobertura previdenciária; aumento da desigualdade, inclusive a de gênero; altos custos da transição entre os sistemas público e privado e as enormes pressões fiscais advindas desse processo; bem como a transferência, ao trabalhador, do ônus dos riscos típicos do mercado financeiro, entre outros pontos. “Tendo em vista a reversão da privatização pela maioria dos países e a acumulação de evidências sobre os impactos sociais e econômicos negativos da privatização, pode-se afirmar que o experimento da privatização fracassou”, aponta.
A nota técnica elaborada pela PFDC evidencia que os impactos econômicos e sociais advindos do modelo proposto como novo regime de previdência tornarão impossível o cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no que se refere à proteção dos direitos humanos – inclusive quanto aos estabelecidos no âmbito da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (ODS), que estabelece 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e 169 metas para erradicar a pobreza, proteger o planeta e garantir que as pessoas alcancem a paz e a prosperidade. “São compromissos integrados e indivisíveis, equilibrando as três dimensões do desenvolvimento sustentável: a econômica, a social e a ambiental
Benefícios assistenciais – A nota técnica chama atenção para o fato de que, embora a proposta encaminhada ao Congresso tenha por mote a reforma da Previdência, ela alcança também benefícios assistenciais atualmente em funcionamento no país. “Os mais desvalidos não são poupados pela PEC 6/2019, que pretende restringir até o Benefício Assistencial de Prestação Continuada (BPC), destinado aos idosos e a pessoas com deficiência que não tenham como prover a sua subsistência”, ressalta a PFDC.
Acerca da matéria, a Procuradoria aponta que sequer o argumento econômico socorre a proposta, tendo em vista que, segundo dados da própria Previdência Social, em janeiro de 2019, os gastos com o benefício assistencial correspondiam a apenas 3,4% (R$ 16.663.256,00) do valor total pago pelo INSS (R$ 490.433.881,00).
“O paulatino enfraquecimento dos direitos dos trabalhadores, a revolução tecnológica e a própria redução das perspectivas de aposentadoria tendem a aumentar a demanda pelo BPC. O Estado deveria, portanto, estar preocupado em fortalecer esse sistema, para cumprir com seu dever de garantia do mínimo existencial e da dignidade humana”, diz o órgão do Ministério Público Federal.
Foto: Chico Bezerra/PJG.