“Prisão não é a solução para a violência, ela é parte do problema”, entrevista com Rafael Godoi

Livro detalha calvário dos detentos e suas famílias para acessar direitos e obter benefícios. "Muitos presos poderiam estar na rua e não estão", diz especialista

Publicado no El País.

“Tic, tac, ainda é 9h40, o relógio na cadeia anda em câmera lenta”, cantou o rapper Mano Brown na música Diário de um Detento. Para as 240.061 pessoas encarceradas no Estado de São Paulo, o tempo é sempre um inimigo. Ele é abundante e demora a passar em um ambiente prisional que oferece poucas opções de trabalho e quase nenhum lazer. Por outro lado, é sempre insuficiente para que o preso saiba o que ocorre com seu processo, o que um juiz desconhecido em um gabinete distante e com ar condicionado decidiu sobre um recurso, e quanto tempo ainda vai levar para que ele alcance a liberdade – ou para ver a liberdade cantar, no jargão do cárcere. Neste cenário, onde advogados públicos são escassos e a informação não chega, cabe ao preso – e seus familiares – ir atrás e tentar fazer a engrenagem do judiciário se mover. “[Na cadeia] Só sobrevive quem tá nos corre”, rimou Dexter, rapper e ex-presidiário.

Assim “ser punido em São Paulo é não somente estar reduzido à condição de objeto de um regime institucional de mero processamento de pessoas (e que abriu mão de qualquer tentativa de ressocialização), mas também ser responsabilizado por seu andamento, estar engajado e engajar os outros no próprio decorrer das penas, ser feito coartífice dessa administração”, escreve Rafael Godoi em seu livro Fluxos em Cadeia: As prisões em São Paulo na virada dos tempos (Editora Boitempo). Cadastros, depoimentos, citações, peças, remessas, juntadas, distribuições, recebimentos, pareceres, petições, vistas… Termos jurídicos estranhos à maioria da população (inclusive alguns advogados), mas que o preso precisa dominar se quiser deixar a tranca algum dia, em um desafio mais kafkiano do que o descrito pelo autor Franz Kafka em O Processo. Em conversa com o EL PAÍS, o doutor em sociologia fala sobre encarceramento em massa e os desafios enfrentados pela massa carcerária paulista para acessar alguns de seus direitos mais básicos.

Pergunta. Qual o grau de informação que o preso do regime fechado tem do seu processo? Ele é atualizado pelo Estado sobre alterações em sua pena ou possibilidades de mudança para regimes menos duros, como o semiaberto?

Resposta. Todas estas questões são motivo de grande angustia pra eles. O sistema carcerário funciona com uma pena progressiva, que promete a saída antecipada para bom comportamento e a progressão para regimes mais brandos. Mas ao mesmo tempo funciona de forma ilegível. O sistema de auxílio judiciário da FUNAP [órgão do Estado responsável por prestar auxílio aos presos] e a Defensoria Pública [que fornece advogados para quem não pode pagar] são precarizados. Em São Paulo, a área de execução penal, que regula o cumprimento de pena dos presos, não consegue abarcar os 240.000 presos do Estado. Devemos ter 700 defensores para toda a população de baixa renda de São Paulo, e a assistência para quem está no cárcere é precária. Logo os responsáveis por ir atrás da movimentação processual são o preso e seus familiares. Esses parentes precisam fazer verdadeiras peregrinações para correr atrás e fazer o processo andar. Cabe a eles provocar a defensoria, por exemplo, que age apenas quando acionada. Muitos presos já têm como ir para o regime semiaberto ou sair em condicional. Poderiam estar na rua e não estão. Às vezes o que falta é um documento…  O sistema de justiça tem um papel fundamental. O gabinete do juiz governa à distância a vida do preso, ele é o responsável pelo destino de quem está dentro da penitenciária, apesar de que, quando visita uma unidade, geralmente o magistrado conversa apenas com o diretor.

P. Existe transparência com relação ao processo e à execução penal, que é a modalidade do direito que rege o cumprimento da pena?

R. O sistema de execução penal compartilha e intensifica a opacidade que é própria do direito. Ela é cheia de termos técnicos e códigos que são pouco socializados e conhecidos. É quase um saber secreto. Embora tenhamos cada vez mais pessoas formadas em direito, a área de execução penal é praticamente ausente, não se ensina isso em muitas universidades. Então são poucos os advogados que atuam nessa área. Agora imagina: se esse desconhecimento da execução penal vale para quem é formado em direito, imagine para quem é totalmente leigo. Mas no final, quem mais sabe de execução penal são os próprios presos e seus familiares. Alguns presos são conhecidos dentro do sistema penitenciário como recursistas, por conhecerem melhor os meandros de um processo. Eles auxiliam os demais quanto a prazos, recursos e petições. Eles têm o conhecimento, mas o acesso ao que está acontecendo no processo e a possibilidade de intervir é muito dificultada. Os processos tramitam em tempos díspares dependendo da vara de execução penal onde estão. Como o preso circula muito no Estado, porque as transferências são comuns, o processo tem que circular também, e em cada lugar cai em uma dinâmica diferente, toda penitenciária tem um arranjo diferente.  É comum o preso cumprir integralmente sua pena sem nunca ter parado de correr atrás do processo o tempo todo [e sem acesso aos benefícios previstos em lei].

P. A família então desempenha um papel fundamental para o preso…

R. Ela faz o papel que deveria ser do Estado, de informar ao preso seus direitos e dizer como e quando ele poderá acessá-los. O preso muitas vezes não consegue sequer acessar o advogado da FUNAP quando quer, essa comunicação é muito dificultada. Então o papel do familiar é fazer essa ponte. Ele pode provocar setores administrativos da unidade prisional para que tomem determinada atitude, informam o preso da decisão do juiz, provocam a movimentação do processo no cartório, conversam com o setor de remissão [abatimento] de pena, informam este setor dos dias trabalhados pelo preso para que sejam computados… É um saber prático que se adquire com a experiência, com tentativa e erro.O preso sem laço familiar está um passo atrás.

P. Qual a importância do telefone celular no presídio, para além de organizar atividades criminosas?

R. O celular é usado para tudo. Ele ajuda a manter os vínculos familiares e de amizade, por exemplo. Ele pode funcionar para que o crime organizado consiga fazer suas operações, mas também faz com que o preso que tem família que não consegue visitá-lo mantenha contato e se informe sobre seu processo. O telefone é uma ameaça à segurança, mas também é um aliado da policia na perseguição desses grupos criminosos: vide os avanços em investigações obtidos à partir de grampos ou celulares apreendidos.

P. Qual o papel do Primeiro Comando da Capital para além do crime dentro dos presídios?

R. O PCC é um efeito em um sistema que está estruturado dessa maneira. O PCC é pintado como decorrência do Estado ausente. Essa pra mim é uma figuração problemática, porque perde de vista o que o Estado está fazendo. Se o Estado estivesse ausente nas prisões não haveriam prisões. O Estado obriga os presos a se articularem com pessoas de fora e a se mobilizar continuamente. O PCC não tem preocupação com o processo dos presos, mas ele faz parte dessa dinâmica dos presídios com a sociedade. É preciso entende-lo num contexto. Meu ponto é que o PCC é uma parte de um problema mais complexo e mais central que é o modo como o estado organiza a punição em São Paulo.

P. Qual o resultado da política de encarceramento em massa e de guerra às drogas em São Paulo?

R. O balanço geral é extremamente negativo. Tivemos o fenômeno do espalhamento das penitenciárias para o interior do Estado. Essas unidades foram construídas com uma proposta e promessa de desenvolvimento financeiro dessas cidades, que não tinham economia dinâmica. Mas nenhum destes efeitos econômicos se confirmou. E havia uma promessa de maior segurança na metrópole, que seria atingida com o fim das carceragens nas delegacias, e a demolição do Carandiru. O que se viu [dos anos de 1990 para cá] foi uma queda nos índices de homicídio, provocado não necessariamente pelo encarceramento massivo, e houve um aumento no número de roubos, furto, latrocínio. Ou seja, no final e contas, não se atingiu nenhum dos objetivos.E isso ainda teve os efeitos colaterais em várias comunidades: a prisão empobrece as famílias atingidas por ela, que precisam prover para o parente preso. Além disso, para manter o vínculo elas precisam viajar grandes distâncias [até os presídios do interior], o que não é barato. Para cada preso existem várias outras pessoas que são afetadas.

P. Por que os Centros de Detenção Provisória (CDP), que abrigam os presos sem condenação, ficam em São Pulo e as penitenciárias estão localizadas predominantemente no interior?

R. O CDP é provisório. Até hoje em dia eles ficam preferencialmente perto dos grandes centros, na capital e na região metropolitana, tendo em vista que a população carcerária é recrutada prioritariamente nestes locais. Por outro lado as penitenciárias estão preferencialmente no interior. Esse quadro decorre de uma política sustentada desde os anos 90, quando se passou a detenção provisória da responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública para a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Antes os provisórios ficavam em delegacias [administradas pela SAP], onde era precário e perigoso. Então criaram os CDPs, com um viés de segurança, impedir fugas, resgates e etc. Então após ser condenada, a pessoa além da pena ganha também centenas de quilômetros que o separam da família e amigos.

P. Você é contrário a uma abordagem que enxerga a prisão como um mundo à parte. Por que? Como devemos enxergar o cárcere?

R. Enxergar a prisão junto com a sociedade é fundamental para não achar que a prisão é a solução para todos os problemas. Muitas vezes quando ameaçadas as pessoas visualizam a prisão como sendo uma proteção. Mas o cárcere na realidade multiplica os problemas e as ameaças: ela não é solução, ela é problema. Um dos pontos mais evidentes é que ela estigmatiza massas de trabalhadores pobres, de periferia, que por uma passagem ou um parentesco com alguém que tem passagem pelo sistema, se veem alijados de oportunidades. E isso também expõe um grupo de pessoas ao extermínio. É sabido que vários grupos de extermínio utilizam a passagem pela prisão como uma forma de escolher alvos. Vide os assassinatos de maio de 2006: a maioria dos mortos tinha passagem. O encarceramento não exclui a política de extermínio, são dispositivos de gestão da população que funcionam de forma integrada.

P. Porque não temos mais rebeliões em São Paulo ou fugas como aconteciam nos anos de 1990?

R. Eu enfatizaria para além de uma acomodação entre o Primeiro Comando da Capital e o Estado, uma questão técnica. Não dá pra adotar o discurso simplista de que o PCC e o Estado entraram em acordo. As novas unidades que foram construídas recentemente são diferentes das que havia nos anos 90. Vários dispositivos de segurança foram criados. E outra coisa: essa alegada pacificação do sistema é relativa. Pipocam conflitos, brigas, tomadas parciais de poder. Mas não toma mais aquela proporção de antigamente. Mas entreveros entre detentos e funcionários continuam ocorrendo, é uma panela de pressão. O Estado criou o Grupo de Intervenção Rápida (GIR), que é uma espécie de Bope do sistema penitenciário, que age com truculência contra os internos, o que acaba também evitando que uma rebelião toma proporção maior. Além disso, não existe cobertura do que ocorre em um raio [corredor] no fundão de um presídio a 600 km da capital.

Por Gil Alessi


Foto: Joabe Thales/Divulgação

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