Por Lúcia Helena Barbosa de Oliveira, no GGN.
“(…) enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade
dentro da sociedade e entre os vários povos,
será impossível desarraigar a violência.”
(Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 59)’ [1]
Este breve texto tem o objetivo de completar uma primeira trilogia iniciada pelo texto da colega Daniela Campos de Abreu Serra (O SUAS foi pro “Sacu”?) e seguido pela colaboração da colega Andrea Beatriz Rodrigues de Barcelos (Emenda do teto dos gastos e a máquina de concentração de riquezas e poder) sobre o desmonte do estado social brasileiro perpetrado pela Emenda do teto dos gastos, primeira providência que se seguiu ao golpe parlamentar que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff.
A tale on fraternity
Peço desculpas ao leitor e à leitora pelo uso da língua inglesa tendo em vista que a possível tradução não pareceu expressar tudo que gostaria de dizer. Escrever “uma estória sobre fraternidade” não satisfez meu apetite de contar algo que, ainda, que seja fantasia, eis que não possuo fonte segura de referência, expressa com grandiosidade minha antiga e hoje, talvez, ultrapassada argumentação contra a ideia de emancipação social exclusivamente pela conquista, positivação e reconhecimento de direitos, porquanto “direitos” se retiram, se burlam, se interpretam criativamente de acordo com a cara do freguês, se trapaceiam com medidas como as adotadas recentemente pelo desgoverno golpista de desmonte do estado social brasileiro associado à alienação de patrimônio estratégico nacional a preço de banana.
Vamos ao conto com a permissão de a ele aumentar um ponto. Conta-se que os revolucionários franceses do século XVIII se encontravam para regar as ideias fervilhantes com prazeres mundanos em um dos restaurantes/cafés mais famosos e chiques de Paris: Le Procope. O ideário burguês que informou a revolução francesa tinha apenas dois elementos incialmente: igualdade e liberdade até que, supostamente D’Alambert, o famoso enciclopedista, colocou a reflexão sobre a necessidade de aditar um novo elemento ao ideário revolucionário, vez que entendia que igualdade e liberdade não seriam suficientes para garantir a indispensável coesão social. Desta forma, sem mais delongas, as cabeças fervilhantes, mergulhadas em prazeres mundanos, em lapso genial de lucidez, fizeram da fraternidade o terceiro elemento a garantir a desejada coesão social ao novo estado burguês que haveria de levar a revolução francesa a bom termo.
Mais de dois séculos de vivência do sucesso burguês, podemos, com certeza, afirmar que liberdade e igualdade são valores neoliberais que estabelecem mais disputa do que coesão; mais separação que solidariedade; mais dissenso do que consenso, sem falar que guardam significado e praticidade extremamente relativos a depender a quem se dá o poder de deferir e garantir tais valores. Neste passo, fraternidade, sem dúvida, ainda que o conto não tenha qualquer plausibilidade factual, tem um papel de enorme importância na, digamos, sustentabilidade sociopolítica do ideário revolucionário burguês. Fraternidade impõe divisão do pão, segundo a fome de quem a sofre, a fim de que todos e todas se possam olhar, possam conviver, possam dispor dos espaços sociais como irmãos fraternos em uma sociedade dita de recursos limitados.
Não obstante o êxito dos revolucionários, a fraternidade que compõe o ideário defendido tornou-se tão somente caridade, filantropia, mera liberalidade/generosidade de corações e mentes devotados a comprar na terra, uma vez que o inferno é sempre uma possibilidade, a tranquilidade de consciências atormentadas pelas grandes desigualdades sociais que lhes saltam aos olhos. O caráter neoliberal de liberdade e igualdade para os amigos tem dominado a cena geopolítica mundial e interna de várias nações, em especial a brasileira, após o drástico golpe político-institucional que se deu em 2016, com o apoio quase irrestrito de atores jurídicos incumbidos da defesa ativa e/ou passiva do pacto constituinte e da ordem democrática. A tal chamamos de: a radicalização do projeto neoliberal.
A radicalização do projeto neoliberal[2]
Para exemplificar o que chamo de radicalização do projeto neoliberal, mediante a contenção da fraternidade a atos de caridade e filantropia, sugiro, primeiramente, o excelente filme Eu, Daniel Blake, que escarna os efeitos cruéis da terceirização do sistema de assistência e seguridade sociais do Reino Unido. O filme denuncia uma realidade, embora se tenha a nítida sensação de que o filme trata de ficção social … é de chorar de raiva …
Em terras brasileiras, citaria dois programas da série Sem Censura do canal TV Brasil, uma associada do sistema de comunicação pública sob a administração da EBC. A par de todo desmonte de tal canal é sintomático saber que vários funcionários da TV Globo passam temporadas no canal público e já é possível ouvir chamadas como “a gente se vê por aqui”. Pergunto-me quando virá o “plim-plim”. Antes do “plim-plim”, ouvi uma entrevista com o responsável pela campanha Natal Sem Fome, da ONG do Betinho por um país livre da fome, cujo sentido foi totalmente preenchido pelo programa governamental Fome Zero. O entrevistado, visivelmente constrangido, pediu ajuda para que pessoas, que voltaram ao mapa da fome, possam ter algum alimento neste fim de ano. Apelou-se ao sentimento de caridade que o Natal sempre desperta. O entrevistado deixou bastante claro que a campanha deste ano é uma necessidade ante o desmonte das políticas sociais onde inúmeras famílias foram retiradas do programa Bolsa Família.
Em outro programa da mesma série, a entrevistada propagandeava uma ONG chamada, salvo engano, “Berço Feliz”, lembrando, para minha total desolação, o famigerado programa caritativo recém lançado, “Criança Feliz”, expressão de “primeiradamice”, para que as consciências sejam aplacadas. A entrevistada também apelou ao sentimento do Natal para pedir ajuda para a ONG que recebe crianças de mães que precisam trabalhar e não dispõem de creches públicas para confiar a guarda dos filhos que não podem cuidar pessoalmente pela necessidade de que trabalhem para a sobrevivência de toda a família.
Fraternidade e o art. 3º da Constituição de 1988
A revolução burguesa falhou, como era de se esperar, ante o caráter liberal da empreitada, no implemento do terceiro elemento do ideário que defendeu. Assim, a fraternidade jamais se tornou a palavra certa para a descrição de políticas públicas em torno do ajuste estatal de desigualdades sociais, tendo-se visto, na sequência histórica do desenvolvimento dos Estados ocidentais, o crescimento do estado de bem-estar social.
No Brasil, após séculos de exclusão social de grande parcela da população, o pacto constituinte de 1988 estabeleceu como diretriz do estado brasileiro a erradicação da pobreza e das grandes desigualdades sociais com o fim de estabelecer uma sociedade solidária, ou melhor, coesa em torno do sentimento fraterno de que nossas riquezas devem servir a todos e todas, com precedência, todavia, dos menos favorecidos e dos historicamente excluídos do gozo e da fruição dos bens materiais e imateriais da vida que nos são comuns.
A Emenda do teto dos gastos é o ataque de morte do despontar da ofensiva neoliberal desde a promulgação da Constituição de 1988, cujo pacto tem sido aviltado pela ação irresponsável de legisladores derivados. O texto constitucional já não tem o mesmo brilho que reluzia no dia de sua promulgação. Todavia, com a Emenda do teto dos gastos fica patente que o estado fraterno do art 3º da CF foi substituído pelo projeto neoliberal cuja hipótese central defende que o contrário de mal-estar não é bem-estar mas, tão somente, estar. A Emenda 95 promove a inversão do pacto constituinte ainda em vigor no art. 3º c/c o art 167, III, ambos da CF, ao determinar como prioridade do estado brasileiro o pagamento da dívida pública para alegria de rentistas insaciáveis em desfavor da entrega de serviços públicos de assistência e seguridade sociais necessários para que se alcance a fraternidade de uma convivência social coesa e solidária.
A Emenda 95/16 insere-se num quadro mais amplo de ataque ao pacto constituinte de efetivação da fraternidade traduzida em prestação pronta e eficaz de assistência e seguridade social. Em tal quadro tem-se a chamada reforma trabalhista que traz o germe fatal de destruição do locus do trabalho como espaço privilegiado de promoção e realização do humano; o trabalho é coisificado, menosprezado, uberizado assim como o ser humano que o realiza.
Mas não é tudo, o governo trabalha com afinco para abrir mais um flanco para a realização desmedida de lucro a explorar o sofrimento humano dos irmãos, principalmente os historicamente esquecidos: trata-se da reforma previdenciária. A par de tanta ousadia, não nos esqueçamos de que patrimônio estratégico de propriedade dos brasileiros e brasileiras está sendo alienado a preço de banana com inúmeros favores fiscais. Mas e a crise? Proponho que se pare de falar em crise ou em austeridade, porquanto tal não se vê tal situação quando se trata de pagar os juros da dívida pública a rentistas cujas identidades são mantidas em estrito sigilo; também não quando se trata de honrar emendas parlamentares ou de deferir agrados de final de ano ao Poder Judiciário e/ou ao Ministério Público. Não há déficit orçamentário quando se trata de garantir privilégios aos amigos para que continuem a perseguir os inimigos. O que se vê é a triste debacle da fraternidade em nome da ascensão do mercado e das ideologias que o garantem como a malfadada “escola sem partido”.
Referi-me, no início deste texto, quanto à minha tese contra o caráter emancipador da via dos direitos. Pensava na minha construção em defender uma justiça que se ocupasse do cuidado e do humano e não dos direitos. Fraternidade, então, seria o avanço emancipador na entrega de serviços públicos não apenas como direitos mas como reconhecimento do humano em encontro fraterno entre pessoas: serviços públicos entregues com afetividade. O leitor precisa me desculpar pelo atropelo da talvez exagerada sentimentalidade… todavia, posso garantir que o pacto constituinte em seu brilho inicial me inspirou a detalhar plano que fosse além dos direitos para garantir espaço para o humano, em evidente prejuízo do plano neoliberal de nos reduzir a um número de CID e súmulas de sintomas sem que nosso mal-estar tenha real possibilidade de revelar o humano para a conquista de bem-estar que garante criatividade e avanço nas relações interpessoais e sociais a engendrar ambiente social de fraternidade compartilhada por todos e todas.
O que tem o MP a ver com isto?
Costumo caracterizar o MP como o 4º poder híbrido firmado no pacto constituinte de 1988, a desafiar a teoria tradicional tripartite do poder. O Poder Ministerial de caráter híbrido possui duas vozes que nunca falaram a mesma língua mas que, atualmente, vivem momento de confronto perigoso e de possível desarticulação da voz emancipadora, resolutiva e transformadora de que foi dotado o poder ministerial na Carta Cidadã.
A inversão do pacto constituinte perpetrado pela Emenda 95/16, de cunho inconstitucional, repete-se no aprofundamento da distância entre o MP perseguidor, punitivista, criminalizante, corporativo, comprometido com a perseguição dos inimigos dos interesses escusos do mercado, divorciado das aspirações constitucionais de inclusão social, aliado a Juízes e à Polícia, cuja atividade submete-se a controle ministerial, assim como todo o fazer sociopolítico, e o MP como agente político de transformação, que busca no agir resolutivo a superação de entraves à consecução do pacto constituinte de convívio social fraterno e solidário. Tal distância tem privilegiado o primeiro em desfavor da segunda voz; a voz do MP que entende fraternidade como dever do Estado na elaboração e execução de políticas públicas que promovam bem-estar dos historicamente alijados do desfrutar alegre dos bens da vida.
Falando concretamente, mister anunciar que a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PCDF) encaminhou representação à Procuradoria da República (PGR) para que proponha Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Emenda 95/16. Todavia, a PGR até o momento não se pronunciou. Ademais, os membros do MP nos municípios têm legitimidade para propor Ação Civil Pública para exigir a continuidade na prestação do serviço social na medida que a Constituição Federal exige, mediante declaração incidental de inconstitucionalidade da Emenda do teto. A PFDC, ainda, questiona a legalidade de operações de swap bancário, entendendo que tem o MP legitimidade para fazê-lo judicialmente quando a Procuradoria da Fazenda Nacional nada faz. Ao MP cabe, ainda, exigir a auditoria da divida pública, responsabilizando penal e civilmente agentes públicos e/ou privados que tenham cometido fraude contra o erário público. O MP é o guardião ativo da ordem constitucional que obriga a ação do estado no sentido de promover transformação social para superar a estrutura escravocrata e patriarcal que ainda domina as decisões dos mandatários do poder. Aqui a maior corrupção de que não se ocupa nem a turma de Curitiba nem mesmo as “desmedidas” contra a corrupção. Este MP se coloca em oposição ao velho modelo intuitivo, reativo e demandista, centrado exclusivamente na persecução. Assim, quando a turma de Curitiba fala não há falta funcional. Todavia, não cessam as representações que instauram processos administrativos contra colegas dispostos a trabalhar pelo MP que não aceita a inversão do pacto constituinte, cujo ápice é, sem dúvida, a série de medidas após o golpe de 2016, com a penhora do orçamento público que passou a ser garantia de lucro e acumulação crescentes para o capital rentista em desfavor da opção constituinte pelos mais pobres. … mas e o “criança feliz”?
O MP sofre de doença autoimune onde a voz punitiva silencia o MP, juiz em pé, que, como agente ativo da proteção do pacto constituinte e da ordem democrática, busca transformar a si mesmo e a realidade para que fraternidade não seja um elemento fantasioso esquecido em mentes fervilhantes embebidas pelos prazeres que Le Procope pode garantir ou entregue àqueles de boa vontade, mas que realize as condições necessárias de desenvolvimento do humano para todos e todas, especialmente para os menos favorecidos.
O MP punitivo, o Poder Judiciário parcial e partidarizado, como instituições totais, tais como, o cárcere, os condomínios, os manicômios, os shoppings, são depositários da suspensão por 20 anos, ou seja, da invalidação insuperável do ideal fraternal ínsito no pacto constituinte de inclusão social através da alocação de políticas públicas de distribuição de renda e atenção aos direitos sociais universais de todos e todas. Vale dizer, a PEC do fim do mundo foi uma concepção do desgoverno golpista, votada por um Parlamento de traidores da nação brasileira, mas cuja verificação da explícita inconstitucionalidade está nas mãos do MP e do Poder Judiciário, de quem se aguarda provimento para declarar inconstitucionais as Emendas 86/15 e 95/16 em nome da preservação do pacto constituinte de fraternidade como dever do Estado.
À la limite, diria com Christian Dunker, que a voz sufocada do MP tem escuta privilegiada do sofrimento do humano em estruturas opinativas, normativas e regradoras, constituídas por modelos culturalmente estabelecidos onde certos comportamentos e modos de processamento da informação são determinados, ou seja, tal MP é capaz de pensar políticas públicas de transformação de tais estruturas em nome de um ambiente de encontro fraternal pela emancipação de falas silenciadas porquanto em desacordos com tais modelos. O agir ministerial, neste sentido, dá voz a manifestações socialmente e culturalmente silenciadas, garantindo espaço fraterno de compartilhamento do sofrimento e de resgate do bem-estar coletivo. Como trabalhar assim, com a instalação do MP punitivo que silencia e criminaliza? Como implementar o pacto social de fraternidade e solidariedade com o teto caindo sobre nossas cabeças? Não há dinheiro para o SUAS mas há para pagamentos indenizatórios dentro do Poder Judiciário e do MP sem pronunciamento judicial e sem qualquer controle externo. O compromisso corporativo tem estreito vínculo com a continuidade da perseguição dos inimigos e a blindagem dos amigos. É isso fraternidade? Respondam-me, por favor, caros leitores!!!
Lúcia Helena Barbosa de Oliveira – Promotora de Justiça do Distrito nFederal e Territórios e fundadora do Coletivo por um Ministério Público Transformador
[1] www.cnbb.org.br Texto publicado em 20/01/2017. Último acesso em 20/05/2017. [2] É preciso ter em mente que os revolucionários franceses prestaram um serviço à burguesia para limitar o poder do rei e então do estado. Tal articulação foi realizada a partir de valores liberais que, na época, eram revolucionários. Assim, não diria que igualdade e liberdade expressem radicalização revolucionária porquanto fraternidade permanece um desafio na construção de coesão social solidária tanto no nível público de políticas sociais quanto nas relações interpessoais. Aprendi com minha atuação como MP interessado na transformação social que posso lutar pela organização e presença de CAPS, CAPS-AD, CAPS-I, CRAS, CREAS, mas no frigir dos ovos, o que muda a configuração do sofrimento subjetivo dos usuários é como o serviço é prestado. Fraternidade, assim, assume um caráter tanto na necessidade de políticas públicas que implementem direitos sociais em um projeto constituinte de sociedade solidária mas também exige que a prestação do serviço social humanize o usuário desumanizado pela exclusão do gozo fraterno dos bens da vida.