Por Lúcia Helena Barbosa de Oliveira, no GGN.
A presente fala tem o propósito de articular, com um pouco mais de eloquência, a preocupação da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado Federal em torno do sistema de (in)justiça a partir da organização de 6 audiências públicas. A primeira delas deu-se no último dia 10/10 e tratou do tema “Acesso à Justiça e Imparcialidade do Juiz”, da qual participou o COLETIVO Transforma MP a cujo pedido, tento, agora, sintetizar a conversa que se desenvolveu na audiência referida.
O primeiro argumento lançado, que nos parece fundante da preocupação da CDH, trata-se da lembrança perspicaz de que o sistema de dicção do direito assenta-se sobre a disparidade injusta da diferença de salários, benefícios e privilégios entre os operadores do direito (especialmente juízes e membros do Ministério Público e Defensoria Pública) e os demais trabalhadores da Nação. Uma tal dissonância, baseada na meritocracia organizacional ou funcional, tão odiosa quanto a sócio-político-econômica, impede o olhar e a postura empáticos dos operadores do sistema de dicção do direito, com grande poder institucional, no sentido de despirem-se da vaidade e do entendimento, tão falso quanto velado, de que fazem parte de uma casta superior acima do bem e do mal.
Assim, poderosos que são, fazem o que querem quando bem querem e torcem a lei, a constituição e impõem o sentimento do justo que, se existe, por certo não habita neles, porquanto não se sentem parte da injustiça que se lhes é apresentada. Desta sorte, a primeira conclusão fundante é no sentido de que habemus lex, posto que o quadro constitucional ainda vigente, por mais vilipendiado que esteja sendo, é contra-hegemônico porquanto impõe políticas públicas e postura governamental em prol da extinção das enormes desigualdades sociais que afligem a sociedade brasileira. Em decorrência disto, conclui-se que nenhum aperfeiçoamento do quadro constitucional/legislativo operará como um toque de Midas para a superação das mazelas do sistema de dicção do direito dominado pela consciência soberba de superioridade social e humana dos operadores que o dão vida a impor, até mesmo ao arrepio da lei e do quadro constitucional contra-hegemônico, um modelo individualista, egoísta, a serviço dos interesses do mercado e do rentismo, e sem qualquer compromisso com a diminuição e superação do sofrimento dos esquecidos e marcados como inimigos de um Estado oligárquico, que protege uma classe pequena de pessoas e interesses mesquinhos em prejuízo do compromisso constitucional de implementar uma sociedade solidária.
Neste passo, lembro a passagem registrada por Iris Murdoch no romance “A Fairly Honourable Defeat”, 1970, citada por Allan Wolfe(1), que descreve uma conversa entre os personagens Jullius e Ruppert. O primeiro um cientista cínico, e o segundo um pai que está enfrentando a rebeldia de um filho adolescente em processo de expulsão da escola onde estuda. Vejamos o diálogo:
“Jullius parou em frente do amigo. ‘Escute, Rupert. Se existisse um juiz perfeitamente justo eu beijaria os pés dele e aceitaria de joelhos qualquer punição que ele me impusesse. Mas são meras palavras e sentimentos. Não existe um tal ser e mesmo o conceito de um tal ser é vazio e sem sentido. Eu digo a você, Rupert, é uma ilusão, uma ilusão.’ ‘Eu não acredito em um juiz’, disse Rupert, ‘mas eu acredito em justiça’ (…) ‘Não, não, se não há juiz, não há justiça. E nenhum deles existe, Rupert.’”
Minha tese começa com esta citação porquanto argumento no sentido de que se reconheça a falência do modelo posto se tomamos justiça como a dicção do direito que se faz em tribunais.(2) Defendo que não se pode chamar de justiça a dicção do direito porquanto tal prática. Ainda que feita sob o completo respeito aos cânones formais da igualdade, imparcialidade, publicidade, universalidade, estado de direito, esquece, desrespeita, desconsidera, silencia uma prática que chamo de feminina do cuidado em contraposição ao sistema patriarcal, masculino dos direitos. Não faço a defesa cínica, como Jullius, nem mesmo nihilista, como parte da elaboração filosófica chamada pós-moderna, de negar a existência de juiz e de justiça; de outro giro, defendo a necessária complementaridade entre o modelo posto e o que chamo de justiça feminina do cuidado.
Tudo isto para justificar minha prática de preservar/restringir o uso do termo “justiça” e caracterizar o modelo posto de sistema de (in)justiça porquanto, na melhor das hipóteses trata-se, tão somente, de um mecanismo para dizer o direito em face da lide posta, ou seja, do caso concreto. Ressalto que assim se dá aqui e alhures, onde impere o que se entende por democracia ocidental. Não se trata, a meu ver, de um problema tupiniquim, mas sim de uma falha estrutural que não vamos vencer sem a completa reinserção da voz feminina silenciada e identificada com a natureza que não participa da centralidade da vida sociopolítica.(3)
Tomemos a inspiração de Wolfe, já no título do artigo que cito na nota 1, para refletir sobre como seria um sistema de dicção do direito fundado em um algoritmo. Algoritmo é um conjunto de regras e procedimentos lógicos perfeitamente definidos que levam à solução de um problema em um número finito de etapas.(4) Assim, facilmente, poder-se-ia pensar a dicção do direito como uma operação levada a cabo por um computador. O programador, no caso o legislador, cria o conjunto de regras e procedimentos lógicos, ou seja, a lei, e os operadores do direito, em etapas perfeitamente definidas, chegam à solução dos casos apresentados. Logo, na presença dos mesmos comandos a mesma solução seria encontrada. É isso que acontece no sistema de dicção do direito aqui ou alhures? É desejável um sistema operado por computadores ainda que absolutamente seguro? Enquanto se festeja a segurança jurídica como um valor, não se abre mão de que o sistema seja operado por humanos ainda que, raramente, as soluções sigam o algoritmo dado. De outro lado, o humano operado dentro de parâmetros patriarcais e masculinos, esquece uma parte substancial do expressar feminino no mundo da natureza, da cultura e, prospectivamente, no mundo sócio-político. Assim, uma vez entregues às mazelas humanas, faz-se necessário reconhecer que a neutralidade é uma quimera; que não pode jamais ser entregue vez que juízos são sempre produtos de representações subjetivas a caracterizar formas diferentes de olhar o mesmo fato. Qual a saída?
Neste ponto, após a superação da perplexidade quanto ao tema “acesso à justiça e imparcialidade do juiz”, pelo entendimento de que ao sistema de dicção do direito cabe dizer o direito e não fazer justiça, a discussão impõe que se verifiquem as condições formais de dicção justa do direito. Neste passo, mister avançar sobre uma concepção substancial da imparcialidade do juiz ou qualquer outro operador do direito como aquele que NÂO age de forma autoritária, fascista e/ou antidemocrática. Tal análise segue um script que define a personalidade autoritária, fascista e antidemocrática em homenagem ao entendimento de que não há que se falar em sistema de dicção do direito que afaste representações subjetivas.(5)
A fim de não alongar o texto com a descrição dos 14 sintomas de personalidade autoritária que afetam vários operadores do direito em foco no Brasil, possível resumir que o agir de um tal ator jurídico demonstra uma espécie de distúrbio psiquiátrico conhecido por quadro mental paranoico ou surto psicótico, para ser mais genérico, onde não são os fatos que informam a verdade de uma hipótese, mas é a hipótese que é tomada como certeza ou verdade delirante a ser comprovada forçosamente por quaisquer meios: “Não temos prova, mas temos convicção [e um power point]”. “A sentença é irrepreensível posto que foi escrita em mais de 200 páginas. Neste passo, qualquer fato e argumento se prestam a comprovar a verdade delirante advinda de quadro psicótico, fazendo-a definitivamente recepcionada e legitimada para a desgraça dos jurisdicionados submetidos a uma jurisdição que necessita de tratamento psiquiátrico como foi decidido recentemente pelo júri popular, instalado na cidade de Curitiba, em agosto último, quando foi julgada a conhecida Operação Lava Jato. “O decisium popular(6) foi no sentido de condenar a Lava Jato e converter a pena em medida de segurança ante o quadro psiquiátrico grave em que se encontra, devendo submeter-se a tratamento ambulatorial por prazo indeterminado até que retorne ao estado de normalidade institucional.
A par das afirmações acima, o COLETIVO Transforma MP apresentou duas ideias para implementação dentro da ordem. Chama-se de “ordem” o controle normativo posto que, como algoritmo, determina previamente os passos para solução de conflitos juridicamente relevantes. Primeiramente, poder-se-ia alargar o rol de situações de impedimento para a declaração de parcialidade do juiz, aditando-se os artigos 144 a 148 do Código de Processo Civil (CPC) e os 252 a 256 do Código de Processo Penal (CPP), especialmente o 254, para criar a Exceção de Parcialidade a recepcionar a Teoria da Aparência, desenvolvida pela Corte Europeia de Direitos Humanos e adotada pelo Tribunal Constitucional Espanhol(7), segundo a qual o operador do direito não deve apenas ser imparcial mas deve parecer imparcial. Assim, o operador do direito que dá entrevistas e fala fora dos autos sobre matéria a ser tratada por ele não parece e nem éimparcial; também aquele que é flagrado em situação social de congraçamento com adversário político de pessoa submetida à jurisdição pela qual tem autoridade/poder de decisão ou com pessoa ela mesma em tal situação não parece e nem é imparcial. Ressalte-se, neste ponto, a natureza jurídica de direito humano que se empresta ao direito de ser julgado por operadores jurídicos imparciais.
Ainda no âmbito da ordem, o COLETIVO Transforma MP propõe para a radicalidade democrática do controle dos atores jurídicos a representação popular em níveis mínimos de 80% em todos os Conselhos Superiores dos Tribunais, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas estaduais, Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com a possibilidade de que tais órgãos julguem em sede originária as exceções de parcialidade conforme descrita no parágrafo anterior.
Em oportunidade anterior, comecei minha crítica ao sistema de (in)justiça que blinda amigos e criminaliza inimigos, citando o rapper Criolo, que canta: “Não existe amor em SP”, porquanto usava como parâmetro o sistema paulista de dicção do direito. Neste ponto, convido o leitor a tentar um rap que diga:
Não existe justiça em Curitiba …existe em algum lugar?
Verdades e certezas delirantes servidas ao tom e gosto da mídia manipuladora:
GOLPISTAS
Um prato indigesto em meio ao sofrimento político-institucional e humano
De gente e de projeto constitucional escrito no contra fluxo do autoritarismo
Para sermos irmãos, iguais, juntos e solidários
Constituição contra-hegemônica com morte anunciada:
Quem vai defender?
Lúcia Helena Barbosa de Oliveira, Promotora de Justiça do Distrito Federal e Territórios e membro fundadora do Coletivo por um Ministério Público Transformador.
1 Ver Wolfe, Allan (1992). “Algorithmic Justice” in Cornell, Drucilla et allii (eds.) Deconstruction and the Possibility of Justice, New York&London, Routledge.
3 Ver Gilligan, Carol, (1996), In a Different Voice, Cambridge, Massachusetts&London. Harvard University
Press.
4 Ver Wikipedia.
5 Ver http://justificando.cartadapital.com.br/2017/05/13/o-pensamento-juiz-autoritario-em-14-pontos/
7 Ver
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