TSE e impugnação à chapa Dilma-Temer: o que está em jogo?
A partir de fevereiro, os olhos da nação se voltarão para o Tribunal Superior Eleitoral
Cristiano Paixão
Leonardo Augusto Andrade Barbosa
A partir de fevereiro de 2017, os olhos da nação se voltarão para o Tribunal Superior Eleitoral. Aquela corte decidirá a AIME 761, as Aijes 194358 e 154781, e a Representação 846, em que se discute a possível cassação da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, que foi eleita no pleito presidencial de 2014. Uma das consequências da decisão é crucial para o futuro da política brasileira: se ocorrer a perda do mandato de Michel Temer, como será eleito seu sucessor, encarregado de governar o Brasil até 2018? Quem será responsável pela escolha? O pleito será direto, com sufrágio universal, ou indireto, com a eleição do presidente pelo Congresso Nacional?
Em muitas reportagens que circulam na imprensa consta a afirmação de que, se a decisão ocorrer no último biênio do mandato Dilma-Temer, ou seja, a partir de 2017, a eleição teria de ser indireta, na forma prevista pelo art. 81, § 1º, da Constituição da República.
Porém, as coisas não são tão simples assim.
Em 2015, o Congresso Nacional fez uma minirreforma eleitoral, modificando alguns aspectos da legislação então em vigor. Trata-se da Lei nº 13.165, de 29 de setembro de 2015. Uma das inovações afeta diretamente a forma de realização de eleições em caso de impugnação à chapa vencedora em eleições majoritárias. A Lei nº 13.165/2015 acrescentou dois parágrafos ao art. 224 do Código Eleitoral, estabelecendo uma nova regra para perda do mandato decorrente de decisão da Justiça Eleitoral. Observe-se o teor dos novos parágrafos:
§ 3º A decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados.
§ 4º A eleição a que se refere o § 3º correrá a expensas da Justiça Eleitoral e será:
I – indireta, se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato;
II – direta, nos demais casos.
Na discussão sobre a aplicação, ou não, dos citados parágrafos nas ações contra a chapa Dilma-Temer, duas questões se colocam: (1) a norma de 2015 colide com o disposto no art. 81, § 1º, da Constituição da República? e (2) a norma de 2015 pode ser utilizada na deliberação sobre uma eleição majoritária ocorrida antes de sua entrada em vigor?
Começando pela segunda questão, parece razoável argumentar que a norma não rege propriamente as eleições, mas limita-se a disciplinar as consequências jurídicas da vacância. E, ao fazê-lo, privilegia a manifestação direta do eleitorado, resolvendo uma controvérsia daninha no âmbito da Justiça Eleitoral, em especial nas eleições municipais. Dessa forma, não traduziria, em princípio, nenhuma ofensa aos direitos dos mandatários eleitos, tampouco uma interferência indevida no processo eleitoral concluso. Por outro lado, quem acompanhou o debate sobre a norma no âmbito do Senado – capitaneado pelo Senador Romero Jucá – ficou com a desconfortável sensação de que o dispositivo havia sido inserido com o objetivo de deixar o TSE “mais à vontade” para julgar procedentes os processos movidos contra a chapa Dilma-Temer. Uma coisa é cassar a presidente eleita e seu vice e convocar uma eleição indireta; outra coisa totalmente diferente é devolver a decisão para o eleitorado, em especial considerando o quão desgastado o Congresso já se encontrava perante a opinião pública. Diante de um processo que parecia fadado a se arrastar – como se arrastou –, até o segundo biênio do mandato presidencial, abrir a porta para uma eleição direta até meados de 2018 soava como um engenhoso casuísmo, capaz de arregimentar como álibi a própria soberania popular.
Quanto à primeira questão, cabe perquirir se faz sentido a distinção entre a vacância decorrente de causas eleitorais e não eleitorais. O texto constitucional não diferencia entre essas hipóteses. As causas não eleitorais de vacância incluem a morte, a renúncia e a perda do cargo em processo por crime comum ou de responsabilidade. Já as chamadas “causas eleitorais” limitam-se a decisões de órgãos da Justiça Eleitoral que decretam a cassação do diploma ou do registro dos candidatos. As causas eleitorais derivam de irregularidades ocorridas durante o processo de eleição, como o abuso de poder político ou econômico e, dessa forma, atingem a legitimidade da investidura dos candidatos eleitos no mandato. Ao atingir a validade do próprio pleito, decisões dessa ordem recomendariam a realização de novas eleições diretas, uma vez que sequer teria ocorrido investidura legítima na chefia do Poder Executivo para aquele mandato. O argumento – ainda que não pareça decisivo – é ponderável.
A jurisprudência do TSE anterior à minirreforma de 2015 firmou-se nesse sentido, após diversos casos relacionados a dupla vacância em cargos de chefia do Executivo municipal. A vacância derivada de causa eleitoral atraía a aplicação do art. 224 do Código Eleitoral – com redação anterior à minirreforma, com realização de eleições diretas –, enquanto a vacância decorrente de causas não eleitorais regia-se pela Lei Orgânica do município (tendo em vista a inexistência de simetria obrigatória com o art. 81, § 1º, da Constituição). Essa jurisprudência reforça o raciocínio que restringe a aplicabilidade do dispositivo constitucional à vacância decorrente de causas não eleitorais. Não se trata, portanto, de defender, como sugere o editorial do jornal “O Globo” (13.12.2016), um “jeitinho”. Além disso, é natural que forças políticas e sociais confrontadas com um contexto de crise aguda – como o que ora atravessamos – recorram à ideia de eleições diretas como estratégia de relegitimação do ambiente político-institucional.
A solução desses dilemas, entretanto, dificilmente ficará a cargo do TSE. Ainda que o Tribunal tenha sido recentemente provocado a se manifestar sobre o tema pelo Senador Humberto Costa, do PT (vide Consulta Nº 0000560-74.2016.6.00.0000), há um conjunto de frentes atacando a questão simultaneamente. Espremem-se na pauta a PEC n. 227/2016, em tramitação na Câmara dos Deputados e a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5.525, proposta em maio deste ano pelo Procurador-Geral da República perante o STF, na qual o Procurador-Geral da República Rodrigo Janot defende que a regra do Código Eleitoral não se aplica à vacância dos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, sustentando que, na hipótese, a eleição é indireta. No Congresso, a movimentação da base governista verificada no mês em curso indica que a PEC tem poucas chances de prosperar. Portanto, restará – mais uma vez – ao STF equacionar o problema. Se não o fizer no julgamento da ação proposta pelo PGR, certamente enfrentará o tema em sede de recurso extraordinário contra a decisão do TSE que resolver as ações contra a chapa Dilma-Temer, caso o julgamento termine com a cassação dos diplomas.
Uma reflexão adicional se faz necessária. A Lei nº 13.165 acrescentou, como visto, dois novos parágrafos a um dispositivo do Código Eleitoral. Um intervalo de cerca de cinquenta anos separa essas duas normas. O Código é de julho de 1965. A Lei nº 13.165 é de setembro de 2015. Ambas as leis foram aprovadas em situação de abalo na normalidade institucional e política do país. O Código Eleitoral é uma regra do período da ditadura militar, aprovada poucos meses antes de uma medida autoritária e que se revelou duradoura, a saber, o AI-2, que extinguiu o pluripartidarismo e estipulou eleições indiretas para alguns cargos majoritários, entre eles o de Presidente da República. A nº 13.165 entrou em vigor em meio a uma aguda crise do sistema político brasileiro, poucos meses antes do recebimento do pedido de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, cujos desdobramentos – inquietantes, imprevisíveis, preocupantes – se fazem sentir nos dias atuais.
Entre 1965 e 2015, vivemos no Brasil uma ditadura, um processo de redemocratização e promulgamos uma Constituição comprometida com o Estado Democrático de Direito. O período que se anuncia na vida política do país é repleto de incertezas. Caso se materialize a cassação do diploma do atual presidente Michel Temer, o que se seguirá, a deliberação popular ou a eleição indireta de um novo titular do Poder Executivo?
O fato de haver uma dúvida tão significativa diante de uma questão ao mesmo tempo simples e crucial mescla dois traços persistentes e inter-relacionados de nossa história constitucional: o primeiro, a nossa insistência em debater o “direito constitucional das crises” – aqui entendido de forma lata, como o conjunto de regras destinadas a restaurar a normalidade institucional em contextos de anomalia, apenas durante a crise; o segundo, a tendência a resolver questões político-eleitorais a partir de um manejo estratégico (ou casuísta) da legislação. Em comum, essas duas características revelam uma perspectiva instrumental do direito, uma recusa a comprometer-se com as “regras do jogo” e a aceitar o resultado das disputas políticas. O problema é mais grave que a dúvida entre eleições diretas e indiretas. É a certeza de que a solução será costurada longe do debate público, a partir de conjecturas e compromissos pouco transparentes, arriscando agravar a crise ao invés de solucioná-la.
Cristiano Paixão – Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Procurador Regional do Trabalho em Brasília. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UFSC). Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágios pós-doutorais em História Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa e em Teoria da História na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB (2012-2015). Sócio-fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador.
Leonardo Augusto Andrade Barbosa é Doutor em Direito (UnB), Professor do Mestrado em Poder Legislativo (CEFOR), advogado.
Fonte: Jota