Por Leomar Daroncho no Correio Braziliense
Feliz ano novo! Se é certo que quem lança mão do arado não deveria olhar para trás, é fato que as duras lições e os crimes não podem ser esquecidos. Adeus ano velho! Vigoroso grito de adeus a ideias e práticas atrasadas!
O Brasil venceu, nas urnas, o plebiscito contra a estupidez. O encerramento da infame jornada protagonizada por ativistas da barbárie, sob o comando de inconsequentes desajustados, nocivos à meta de convivência civilizada, deve ser celebrado, sem esquecer o que fizeram. O excelente filme “Argentina, 1985” relembra artisticamente a resposta necessária da civilização ordeira à truculência criminosa.
O anti-intelectualismo e a negação da ciência são marcas de governos de viés autoritário. Medíocres, desprezam o conhecimento e sufocam o pluralismo das universidades, tachadas de antros de balbúrdia. O desdém pela erudição e pela arte embalaram o “dirigismo cultural” do Nazismo, empenhado na paranoica “Guerra Cultural”. Aos reiterados ataques ao jornalismo que não se curva ao soberano somam-se a perseguição a sindicatos e defensores de direitos humanos e ambientais, combinado com o favorecimento (dinheiro público) a bajuladores. Modo de agir da trupe que se diz patriótica, anticorrupção e anticomunista.
A censura a museus, cinema, música, poesia e literatura indica ser a arte um caminho estranho e temido por toscos que se vangloriam da própria ignorância. As insinuações e a simplificação de ideias naturalizam a violência presente no racismo, nos preconceitos e na intolerância. A resposta ao que ignoram veio na forma na desconfiança infantil e na simplória acusação de “Comunismo”. Nem a ciência e as vacinas escaparam!
Na retomada da marcha civilizatória, o Brasil festeja as 4 décadas do álbum de Milton Nascimento que marcou gerações sobreviventes a outro truculento período da história brasileira. “Coração de Estudante” é referência obrigatória do disco “Ao Vivo”, do final de 1983, driblando poeticamente a estupidez da censura. O nome da música também é homenagem a uma flor mineira.
A letra de Milton para a música de Wagner Tiso, com referências à ditadura, exalta a esperança e a força da juventude, o anseio de liberdade, que não deve ser confundida com a inconsequência. A canção caiu no gosto dos jovens e embalou o anseio por democracia. Transformou-se em hino das Diretas e da retomada da normalidade institucional.
Mais do que uma canção disponível em modernas plataformas, a música ainda emociona um jovem universitário de então, que portava um sorriso de menino. A lembrança de momentos podados e destinos desviados apertam dentro do peito a cada sinal de truculência. Ainda estão aqui do lado, bem mais perto que pensamos, ou caminham pelo ar, o receio e a esperança.
Ameaças que se supunham sepultadas reaparecem. O medo e os anseios do poeta vicejam em nova aurora. É atual a exortação ao cuidado com o mundo, com a vida, com o broto, para que a vida nos dê flor e frutos. Manejo hábil de metáforas para emocionar e intrigar.
Antes, em “Clube da Esquina II”, Milton já cantava a resistência de homens, que também se chamavam sonhos, em meio a gases lacrimogênios e ao aço, aço. Canta, mineiramente, com força tranquila, a esperança e a determinação da luta por melhores dias, que se vão em meio à truculência da ditadura. O moço, que também se chama estrada, nem lembra se olhou para trás, porque os sonhos não envelhecem. E a chama, sem pavio, não se apaga. No coração, a esperança, na curva de um rio, uma esquina com gente, gente – mais de um milhão.
A democracia e os objetivos constitucionais não são um dado. Indicam o rumo e a progressiva construção. O descalabro dos últimos anos impôs interditou o diálogo e impôs retrocessos à educação, segurança, previdência, cultura, trabalho, ciência, meio ambiente e saúde. Retomar o modelo de participação da sociedade sobre as políticas públicas criadas e executadas pelo governo é uma urgência. A repulsa ao diálogo é um modo de externar a negação ao pluralismo e ao entendimento, que dão muito trabalho, mas são inafastáveis da convivência democrática. Adeus ano velho!
Feliz 2023! Precisamos falar de uma aurora, que renova a esperança: liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça, que surgem, como quer a Constituição, valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias.
Leomar Daroncho é Procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP