Um sádico em terras baianas: a história da crueldade na Casa da Torre

Garcia d’Ávila, maior latifundiário da Bahia e do Brasil, era um torturador sádico, "o mais cruel de todos os brasileiros escravistas"

Por Rômulo de Andrade Moreira, na Carta Capital.

Na segunda metade do século XVIII havia um homem cuja fortuna era a maior de toda a Bahia e, possivelmente, de todo o Brasil: o latifundiário e senhor de escravos, Mestre de Campo Garcia d´Ávila Pereira de Aragão. Tratava-se de um sádico, como veremos a seguir.

Este artigo foi escrito graças à pesquisa feita pelo antropólogo e historiador Luiz Mott, um dos mais conhecidos ativistas brasileiros em favor dos direitos civis LGBTI+, tendo sido fundador do Grupo Gay da Bahia, uma das mais destacadas instituições que lutam pelos direitos humanos dos LGBTI+ no Brasil (uma pioneira!).

Mestre em Etnologia pela Sorbonne e Doutor em Antropologia pela Unicamp, este paulista de nascimento radicou-se em Salvador desde final dos anos 70. Autor de vários livros, ensaios e crônicas, Mott lançou em 2010 a obra “Bahia – Inquisição & Sociedade”, reunindo oito artigos publicados em diferentes revistas científicas, entre 1986 e 1995, mostrando de uma maneira absolutamente original e séria o que “representou a ação da Santa Inquisição em Salvador e pelo interior da Capitania, em seus quase trezentos anos de atuação entre nós.”

Sua pesquisa tem como base, especialmente, centenas de documentos – a maior parte, inéditos – encontrados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Portugal, “um dos maiores arquivos do mundo, que reúne milhões de páginas manuscritas sobre nosso país.”

Em um dos estudos, “Tortura de Escravos e Heresias na Casa da Torre”, encartado no quarto capítulo da obra, o pesquisador trata “da mais cruel e realista descrição que se tem notícia das torturas praticadas contra os escravos, pelo maior latifundiário da Bahia e do Brasil, o proprietário da famigerada Casa da Torre, na Praia do Forte.”

Garcia d´Ávila Pereira de Aragão (1735/1805), como tentarei mostrar, desde a pesquisa do Professor Mott, era um “torturador sádico.” A sua crueldade era tamanha que a leitura do texto “requer muita resistência emocional do leitor”, nas palavras de Mott, tratando-se, certamente, “do maior carrasco de que até então se tem notícia na história do Brasil, o mais rico e o mais cruel de todos os brasileiros escravistas.” A crueldade deste senhor de escravos atingiu “as raias do delírio mórbido e sádico.”

Este verdadeiro monstro tinha o hábito (macabro) de deitar as suas escravas “com saias levantadas, e ao mesmo tempo, botando ventosas com algodão e fogo nas suas partes pudendas, com a sua própria mão, dizendo para chuparem as umidades.” Esse horror aconteceu, por exemplo, com Teresa (que dormira antes da hora) e com uma outra negra, flagrada dançando.

O dia de Sexta Feira da Paixão (imaginem!) era justamente o preferido pelo católico para os açoites. Berrava ele, andando pelo castelo, “como endemoniado”:

– “A quem açoitarei eu hoje?”

– “Ando com vontade de ver sangue de gente açoitada!”

Escolhidas as vítimas, deliciava-se com as poças de sangue deixados no chão pelos mais diversos martírios, “relegando-se de ver os cachorros comerem e beberem o sangue destas miseráveis criaturas.”

Os casos documentados e relatados pelo pesquisador são dezenas. Muitos tratam de tortura praticada contra crianças, idosas e idosos. Vejamos alguns:

Arquileu era uma criança negra, com apenas quatro anos, a quem se encarregou de tomar conta de uma figueira; para azar do infante, um dos figos foi picado por um faminto passarinho. Foi o que bastou para ser açoitado, quase até a morte. Garcia d´Ávila “o açoitou com um chicote de açoitar cavalos, pondo-o nu, rigorosissimamente pelas costas, pernas e todo o corpo, e principalmente pela barriga, já com feridas tão idôneas (hediondas?) e feias, porque já lhe tinha comido toda a pele do corpo, principalmente da barriga, que estava já tudo em carne viva.”

Uma outra criança, de seis ou oito anos, Manoel, filho da escrava Rosaura (outra pobre martirizada tantas vezes, como consta do livro), foi posto “com a cabeça no chão e a bunda para o ar”, enquanto o próprio Garcia d´Ávila, rindo!, “com uma vela acesa nas mãos, e quando ajuntava bem cera derretida, a deitava e pingava dentro da via (ânus) do dito menino que com a dor do fogo dava aquele pulo para o ar, acompanhado com um grito pela dor que padecia dos ditos pingos de cera quente derretida na via, sendo esta bastante.”

Leandra, uma menina de três ou quatro anos, este Mestre de Campo a chamou “e mandou se abaixasse e pondo a carinha da pobre menina declinada sobre um fogareiro de brasas acesas, pondo-lhe uma mão na cabeça, para que a menina com o calor não retirasse o rosto do fogo”, deixando o seu rosto “sapecado com as mesmas brasas.” Esta menina ainda sofreu um suplício mais terrível, quando “em outra ocasião, tirando-se um tacho de doce do fogo”, Garcia d´Ávila perguntou-lhe “se queria doce, que dizendo a menina que sim, encheu uma colher de prata de doce, tirando-o do tacho, e estando ainda quase fervendo, derramou a colher do doce de repente na palma da mão da dita menina, ameaçando-a com gritos que o comesse e o lambesse e senão, que a mandava açoitar, e a miserável menina assim o fez, estando com a mão presa pelo pulso do bracinho, e saiu desta heresia com a mão e língua queimadas.”

O adolescente Hipólito, 16 anos, após ser pendurado por uma corda ao mourão da casa, teve os seus testículos (grãos) amarrados por uma outra corda “bem apertada e na outra ponta pendurou-se meia arroba de bronze, ficando no ar para lhes estar puxando os grãos para baixo; que o pobre miserável dava gritos que metia compaixão, e ao mesmo tempo, lhe mandou pôr uns anjinhos nos dedos dos pés ajuntando-os, que tal foi o aperto, que lhe ia cortando os dedos, e esteve com estes martírios obra de duas horas, que por Deus ser servido não morreu desesperado ou arrenegado.”

Um velho escravo, Antônio Magro, um quase octogenário, sofreu o suplício de ser introduzido no seu ânus, com um canudo de pito, “uma mancheia de pimentas malaguetas.”

A escrava Lauriana, de 25 anos aproximadamente, vivia sempre com o rosto inchado, resultado “das palmatórias de pau pela cara e queixadas do rosto.”

Um outro homem submetido à escravidão, de 30 anos, por ter sido flagrado tocando em sua casa uma rabeca (uma espécie de violino), foi amarrado em uma “cama-de-vento, ficando-lhe o corpo no ar, com os braços e pernas abertas atadas com argola com suas cordas, e o começaram a açoitar desde as dez horas do dia até às quatro horas para as cinco da tarde, por dois açoitadores.” Quando o pobre rapaz desmaiava, Garcia d´Ávila colocava, com a “sua própria mão”, para acordá-lo e continuar os suplícios, “limão com sal nos seus olhos, com uma pena de galinha.”

Certa vez, querendo pescar, Garcia d´Ávila mandou Páscoa, uma escrava, apanhar umas iscas no rio. Como ela não chegou com a encomenda “ao tempo que ele queria”, dependurou-a em “uma escada com a cabeça para baixo, pés para cima, com dois negros açoitando-a.”

Outra vez aconteceu com três escravas – Rosaura (a mãe daquele pequeno Manoel), Francisca e Maximiana – serem despidas completamente e postas em uma sala enquanto eram açoitadas “com dois rabos de um peixe chamado arraia, sem reservação de lugar algum, ficando estes corpos alanhados e cutilados, já sem pele, mandado depois arrancar os cabelos do pente (púbis) umas às outras.” Ele, com sua própria mão, “barreava os ditos púbis com cinza quente para se arrancarem melhor, e quanto mais gritavam as pobres das dores que padeciam, mais com força mandava que arrancassem, lavrando ao mesmo tempo os malditos rabos de arraia.”

Estes são apenas alguns dos relatos descritos na pesquisa do antropólogo (há vários outros, cada um mais triste e revoltante que o anterior) que, justificando a sua publicação, fê-lo por três principais razões, as mesmas, aliás, que me levaram a resenhá-la:

1 – Denunciar as atrocidades da “espantosa família dos Garcia d´Ávila, ´dinastia de pioneiros`, mas também campeões de genocídio e violência contra índios e negros.”

2 – Homenagear esses “negros e mestiços tão desafortunados, cujos gemidos, urros de dor, litros de sangue derramados debaixo do chicote, cicatrizes terríveis, queimaduras infernais, permaneceram ocultos e abafados por mais de duzentos anos.”

3 – Mostrar que o Tribunal do Santo Ofício, nada obstante punir com suplícios terríveis e com a morte os “hereges e heterodoxos”, nunca puniu, nem sequer processou, “este mau cristão.”

E eu acrescento: é preciso relatos como estes, por mais sofridos que o sejam, e o são mesmo, para que, a cada dia mais, estejamos certos da dívida secular que temos para com a gente negra. Dívida, eu diria, impagável!

Como disse Christian Delacampagne, “escrever a história do racismo é escrever a do ódio. Escrever a da escravatura é escrever a história do desprezo. Logicamente o desprezo precede o ódio: odeia-se aquilo que antes se despreza. Do mesmo modo, a história da escravatura precede e prepara a do racismo.”

E, à guisa de conclusão, faço minhas as palavras de Luiz Mott:

“Minha solidariedade com estes verdadeiros mártires e a firme esperança de que, no presente e no futuro, negros, mestiços e brancos constituamos realmente neste país uma democracia racial, uma sociedade pluralista, onde a diferença – seja da cor, de sexo ou da orientação sexual – não implique nenhum tipo de dominação.”

OXALÁ!

Rômulo de Andrade Moreira. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS. Integrante do Transforma MP.

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