Por Élder Ximenes Filho no GGN
O poema mais conhecido de Edgar Allan Poe começa assim:
O CORVO
Numa meia-noite aborrecida, quando eu lia, lento e triste,
Muitos vagos tomos de ciências esquecidas,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que levemente a meus umbrais batia.
“Uma visita”, murmurei, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”
Para que diabos alguém lê “ciências esquecidas” ? Há tradução que chama ciências de “leis”, com o mesmo sentido de conhecimento ou sabedorias arcanas…. creio que piora muito! Será que existe mesmo algo a aprender com legislações ultrapassadas? Estudantes hoje nunca lêem os clássicos. Afinal, os concursos pedem a última versão do voto mais exdrúxulo do STJ na semana passada e as apostilas eletrônicas nem dão conta da velocidade… só no grupo do Zap encontra-se a verdade. Lei antiga, pra quê te quero?
(OBS: depois de um parágrafo com três interrogações, o desocupado leitor deve esperar algumas respostas; vamos aos poucos para retornar ao título.)
É claro que uma nova lei torna a antiga, feito jornal velho, num “papel de embrulhar peixe”. Temos que tratar com a nova norma, especialmente se formos do ramo jurídico. Todavia, não significa que se trate de uma nova realidade, pois a legislação sozinha não determina o mundo – o contrário, sim. Mas lutar para colocar direitos no papel continua importante e tantas bandeiras lavaram-se em sangue por isto. No entanto, quando muda o equilíbrio na luta pelas possibilidades reais de agir, vão-se embora os direitos que pareciam seguros – e nem precisam mudar os textos. Entre uma coisa (fatores reais de poder) e esta outra (potência da norma) e aqueloutra (forma da sociedade) haverá uma verdade razoável para você, aborrecido leitor. Mas é preciso enfrentar o sono e ler estas coisas “antigas”. Creia: os velhos não são tão tristes e até podem excitar o espírito, mesmo que a bofetadas [1].
Sem pretender ensinar nada, apenas ressalto uma função permanente das normas ultrapassadas, quer sejam constituições, leis ou sentenças: sempre cristalizam a forma das relações sociais de uma época. Documento. Arqueologia.
Quer entender hoje a “guerra às drogas”? Veja a legislação criminal brasileira: antes da abolição formal da escravatura – maconha dava multa para livres e cadeia para escravos (Código de 1830); depois, equivalia a vender veneno sem autorização, mas capoeira e batucada dava cadeia para pretos (Código de 1890). Já o ópio (bem mais caro), produto de exportação da Inglaterra, era fumado tranquilamente no mundo todo. Sobre isto, vejam as “Guerras do Ópio” e como as normas que depois regularam a paz (na base do “ou assina ou morre”) mantivera a gloriosa Rainha Vitória como a maior traficante da história [3]. Pois é: pouco tem a ver com moral, muito com etnia, algo de controle dos corpos e tudo com economia.
E o quanto valia uma mulher ou um feto antigamente? Dê uma olhada no Código de Hamurabi [2]: Provocar aborto por espancamento: se a mulher for livre: multa de 10 unidades monetárias; se for escrava: 2 unidades; se for filha de ex-escravo: 5 unidades. Matar de pancada uma mulher: se ela for livre: mate-se o filho do agressor; se filha de ex-escravo: multa de 30 unidades; mas se ela for escrava: 20 unidades. Flagrante de adultério da mulher: afogamento. Se for apenas caluniada sem provas: salte no rio para defender a honra do marido. Ah, incesto de mãe com filho dava fogueira para ambos, mas de pai com filha era apenas desterro… Além disto, boa parte do Código tratava dos pagamentos de dotes nupciais, indenizações por divórcio ou compensações por falta de filhos.
Parecida era a Torá hebréia: em Êxodo, cap. 21 [4]: a servidão do homem era limitada a 6 anos e ele poderia resgatar-se; a escravidão da mulher era indefinida e seus filhos pertenciam ao senhor; sexo antes do casamento: açoite e multa para o homem, apedrejamento até a morte para a mulher; adultério: só existia com mulher casada, pois homem casado com solteiras, estava liberado. Seguiu a mesmíssima linha o Corão [5]: estupro era delito contra a família e contra a moral social – não contra a mulher. Se saísse viva, para provar que não tinha culpa e que tentara proteger esta moral alheia, ela teria que trazer testemunhas. Precisava de pelo menos quatro para livrar-se da pecha de adúltera. As relações sexuais eram contabilizadas apenas pelo lado masculino, pois as mulheres eram como “lavouras” a semear da forma que eles desejassem. Logo, não poderia haver estupro dentro do matrimônio (lembrem disto). Engravidar era obrigação máxima. Mas, se não houvesse relação após certo prazo do casamento (conforme a vontade do homem), poderia haver divórcio. Em todas religiões mosaicas, inclusive nos cristianimos, as normas escritas estipulam que a mulher deve obediência ao marido e que sua opinião não importa [6]. Recordemos, finalmente, que a herança só passava pela linhagem paterna. Logo, era preciso ter certeza do pedigree. Novamente: dominação e patrimônio.
No atual Código Civil de 2002 (art. 1.557, III) e em toda a legislação anterior, interpretadas unanimemente pela jurisprudência, a impotência do marido equipara-se a um “defeito físico irremediável”. Pode anular o casamento se ignorada pela esposa, pois seria um “erro essencial” acerca do outro. Guardemos isto também: não é a infertilidade a falha principal; é a falta de sexo.
Mas nem precisamos ir a tanto. Lembre o que, praticamente ontem, jurisconsultos importantes falaram sobre a condição da mulher com base na legislação vigente. Somente em 1981, com a condenação de Doca Street, começou a cair por terra a tese da “legítima defesa da honra” (do homem) e que apenas em 2005 aboliu-se o conceito de “mulher honesta” do Código Penal. Em 2020, no famosos caso Mariana Ferrer a possível vítima do estupro, foi atacada em sua moral pelo advogado de defesa, com base em fotos na internet – sem qualquer reclamação do Ministério Público ou do Juízo. Coerentemente, indagamos: qual a defesa padrão de homens acusados de assédio? Fácil: mulheres são presumidas interesseiras e histéricas, portanto, têm que provar primeiro que são … “honestas”. Círculo completo. A Mesopotâmia é aqui.
Estas ideias, mesmo que não explicitamente positivadas na lei, têm óbvia força normativa. Elas moldam as decisões que aplicam as leis e também os lobbies que alteram as leis. Exemplo mais recente ainda é o de um nobre colega do Ministério Público, que menciono com base nas citações do portal G, o qual cita representação à Corregedoria-Geral do MPF [6]. Teria ele escrito em 18 de julho de 2022 que:
– O feminismo seria um “transtorno mental” e que para ele será criada no futuro uma CID [Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde]. Logo, lutar por direitos é doidice e a psiquiatria trará remédio.
– “A feminista normalmente é uma menina que teve problemas com os pais no processo de criação e carrega muita mágoa no coração. Normalmente, é uma adolescente no corpo de uma mulher. Desconhece uma literatura de qualidade e absorveu seus conhecimentos pela televisão e mais recentemente pela internet”. Ou seja, quem foi bem criada (ou bem comida) não reclama, e a ignorância é o caminho da felicidade!
Igualmente, as intelectuais como Elizabeth Stanton e Nísia Floresta (Séc. XIX) ou Simone de Beauvoir (metade do Séc. XX) seriam aberrações do espaço-tempo. Já Angela Davis (filósofa e militante socialista) e Ruth Ginsburg (Juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos), bem como as nossas Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro seriam apenas meio ignorantes, pois pelo menos conhecem a internet…
– “Na maioria das vezes, a sua busca por empoderamento é na verdade uma tentativa de suprir profundos recalques e dissabores com o sexo masculino gerado pelas suas próprias escolhas de parceiros conjugais”. Portanto, é apenas o parceiro homem que define a mulher… e olhe lá!
– “O progressismo nos convenceu que o cônjuge não tem qualquer obrigação sexual para com o seu parceiro, levando muitos à traição desnecessária, consumo de pornografia e ao divórcio”. Faltou conceituar o que seria traição necessária.
– E “esse é um drama vivido muito mais pelos homens diante das feministas ou falsas conservadoras. A esposa que não cumpre o débito conjugal deve ter uma boa explicação sob pena de dissolução da união e perda de todos os benefícios patrimoniais”. Aparentemente apenas homens gays podem apoiar o feminismo e todas as mulheres casadas (inclusive a mãe dele e as nossas) estão de olho no patrimônio do marido. Somos todos filhos de quem mesmo?.
– Seria “de fundamental importância recuperar a ideia do débito conjugal no casamento”, mencionando a 1ª Epístola de Paulo de Tarso aos Coríntios: “O marido pague a sua mulher o que lhe deve, e da mesma maneira a mulher ao marido”. …. arre egua!
OPA! Agora podemos achegar-nos ao título, mas é preciso um último esclarecimento: crime não é o que achamos horrível ou repulsivo. Tampouco o punitivismo, a criação de mais castigos, melhora a convivência social (embora certamente demonstre sua deterioração). Crime é aquilo a que uma lei estipula penalidade – sendo ela para isto elaborada legitimamente, formalmente escrita e publicada previamente à conduta estritamente incriminada. Ou seja: não é o que a multidão acha. É o que lei diz. Isto é uma conquista civilizatória, repare!
O autor daquelas frases infelizes merece direito à defesa e reconheço que não pregou violência nem estupro marital diretamente. Sofrer alguma punição dificilmente trará melhoria imediata nas mentalidades – embora talvez sirva de advertência. O que importa principalmente, aqui, é como revelou-se de maneira cristalina como pensam tantas pessoas cultas, tanta gente de bem, tantas autoridades que decidem os destinos das partes nos processos judiciais. Aprofundemos nossa conversa, com a citação mais completa daqueles versículos 1º a 5º (tem que consultar primeiro a “lei”, minha gente!):
Ora, quanto às coisas que me escrevestes, bom seria que o homem não tocasse mulher. Mas, por causa da fornicação, cada um tenha a sua própria mulher, e cada uma tenha o seu próprio marido. O marido conceda à mulher o que lhe é devido, e da mesma sorte a mulher, ao marido. A mulher não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas tem-no o marido; e também da mesma maneira o marido não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas tem-no a mulher. Não vos priveis um ao outro, senão por consentimento de ambos por algum tempo, para vos aplicardes ao jejum e à oração; e depois ajuntai-vos outra vez, para que Satanás não vos tente pela vossa incontinência.
Depois vêm prescrições sobre fidelidade e separação, inclusive louvando a posição feminina (de forma razoável para a Idade do Ferro). Chato, mas bem educativo…
Importa mesmo é que esta regra impõe dever a ambos os cônjuges. Desde Constituição Soviética revolucionária de 1918 até o inciso I do art. 5ª da nossa “Constituição Cidadã”, modernamente o Direito preconiza que homens e mulheres são iguais perante o Direito. Em tudo, inclusive no que cobram-se reciprocamente. Se há alguma obrigação de satisfazer a libido do outro, esta será necessariamente comum. As “leis dos homens” assim determina. Aparentemente, aquelas “leis de deus”, também.
O casamento (independente de religiões) sempre foi uma tipo de contrato. Dizem os arts. 389 e sequintes do nosso Código Civil que a obrigação contratual não cumprida deve gerar a obrigação de indenizar em perdas e danos (inclusive morais), pagar juros e correção, execução da cláusula penal, além de eventuais honorários advocatícios. Além disto, o art. 249 diz que nas “Obrigações de fazer…. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível. Parágrafo único: Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido.”
Sejamos rigorosos patafísicos, especialmente porque recorremos ao absurdo. Afinal, atualmente afirmar o óbvio parece revolucionário e, às vezes, é educativo. Em palavras nada jurídicas: se ela tem que dar quando ele quiser, ele tem que comer quando ela quiser.
Ou seja: com base exatamente nas opiniões mais conservadoras, desde a antiguidade e até o Direito escrito contemporâneo, se não for crime, broxar sempre foi ilegal! O homem assim incapaz de satisfazer a esposa haveria de sofrer aquelas consequências da falta de cumprimento contratual. Quiçá, arcar com as despesas de relacionamento extraconjugal (pois certamente é uma obrigação executável “por terceiro”).
Então, caros machos dominantes da espécie – vamos ainda aguardar novas leis para mudar de atitudes? Ou preferimos arriscar, em mau latim, o pretium cornu?
Se este ensaio parece-lhe cômico é porque você provavelmente é homem. Para as mulheres, continua trágico!
Uma certeza: as leis do mundo importam porque demonstram as correlações de força e de domínio social numa certa época. Todos os esforços, os estudos, o tempo e até os sonhos… tudo pode ser transformado em mercadoria – se assim permitirmos. Grana. Economia. O trabalho da escrava nutriz e da dona de casa têm tudo em comum. Da mesma forma, a luta das pessoas pretas, das mulheres, dos LGBTQIA+, dos povos de terreiro ou indígenas ou de todas as maiorias minorizadas conforme estas mesmas leis divinas e humanas… Permitir tornar-se em uma cifra é perder-se da humanidade que nos une. Queiramos ou não, esta luta é o que temos em comum…
(Ah, no final, o Corvo demonstrou que todos os trabalhos, os estudos e os amores…. tudo é vão perante a morte! Eu sempre li isto com grande alívio…)
Élder Ximenes Filho é Mestre em Direito Constitucional, Promotor de Justiça e Membro do TRANSFORMA MP.
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1. Sugiro as discussões sobre constituição entre Ferdinan Lassale X Konrad Hesse X Hans Kelsen e, com belo fecho, Evgeni Pachukanis. Tudo no internético “pai dos burros”, grátis!
2. Divirta-se com os artigos 196 em diante. Idem!
3. Tratados de Tiensin e Convenção de Pequim. Idem!
4. No Deuteronômio houve melhoria, mas a produção de provas para a mulher continuou mais difícil. Idem!
5. Suratas 4, 19, 24, 33 e 223. Idem!
6. Cartas aos Efésios cap. 5 e aos Colossenses, cap. 3 – ambas de Paulo, o primeiro normatizador do cristianismo. Idem!
7. Idem em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/07/19/procurador-defende-obrigacao-sexual-de-mulheres-e-e-alvo-de-representacoes-no-mp-federal.ghtml