O que o STF precisa responder é se os trabalhadores uberizados têm direitos constitucionais
Por Cássio Casagrande, Rodrigo de Lacerda Carelli no JOTA
O Supremo Tribunal Federal está em vias de julgar o RE 1.446.336, no qual se discute a possibilidade de reconhecimento de vínculo de emprego dos trabalhadores com as empresas criadoras e administradoras de plataformas. O caso foi admitido como Tema de Repercussão Geral 1.291, cujo verbete está assim redigido:
Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 1º, IV; 5º, II, XIII; e 170, IV, da Constituição Federal, a possibilidade do reconhecimento de vínculo de emprego entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa criadora e administradora da plataforma digital intermediadora.
O recurso extraordinário foi interposto em face de decisão proferida pela 8ª Turma do TST, da lavra do relator Alexandre Agra Belmonte, que reconheceu o vínculo de emprego entre a trabalhadora Viviane Pacheco Câmara e a empresa Uber Tecnologia do Brasil.
A tese da recorrente Uber, como se vê do verbete do Tema 1.291, é o de que a aplicação da CLT a seus trabalhadores violaria os princípios da livre iniciativa, da legalidade e da liberdade de trabalho.
A premissa de que o reconhecimento de regime trabalhista aos trabalhadores contratados via plataforma violaria a livre iniciativa adveio do Tema de Repercussão Geral 725, em que o STF entendeu que restrições à terceirização violariam aquele princípio constitucional.
Primeiramente, é preciso observar que não estamos diante de terceirização e por isso parece altamente inadequado trazer a premissa do Tema 725 para o debate. Não existe terceira empresa entre o trabalhador recrutado via aplicativos e as plataformas digitais operadas por empresas de transporte.
Segundo, por que fazer valer a legislação trabalhista ordinária, no caso o art. 3º da CLT, que estabelece os requisitos da relação de emprego, implicaria em violação a livre iniciativa? A Justiça do Trabalho aplica os arts. da 3º e 9º da CLT (este último impondo o princípio da primazia da realidade) a relações de trabalho controversas há mais de 80 anos e nunca se alegou que isso pudesse representar violação à livre iniciativa.
A argumentação de que as relações laborais uberizadas seriam um fenômeno diferente de tudo que havia antes não justifica a situação como uma nova questão constitucional. Sim, efetivamente, é um modelo novo de forma de contrato, mas seu conteúdo não difere, em sua essência, de um conflito trabalhista típico.
Estamos diante de empresas que exercem atividade econômica (no caso setor de transporte) e que para esse fim precisam recrutar e contratar mão de obra permanente, remunerando essa prestação laboral por hora trabalhada ou por tarefa.
Sim, a questão é a de se saber a exata natureza jurídica desta relação. Mas por que a decisão sobre essa questão violaria a livre iniciativa? A livre iniciativa está, no mínimo, equiparada, na Constituição, ao valor social do trabalho, então obviamente não se trata de óbice intransponível ao reconhecimento do vínculo, como nunca foi.
Inclusive, este debate, que vem sendo feito em todo mundo, apenas no Brasil tem suscitado o argumento sobre suposta lesão à “livre iniciativa”. Várias cortes superiores da Europa reconheceram o regime trabalhista para os trabalhadores uberizados: França, Suíça, Inglaterra, Espanha, Alemanha, dentre outros.
Qualquer um que leia a íntegra dessas decisões perceberá que em nenhuma delas o argumento da livre iniciativa sequer foi cogitado. E são países onde, induvidosamente, a livre iniciativa está plenamente assegurada.
Aliás, essa matéria, nos tribunais da Europa, sequer foi decidida como questão constitucional. Os tribunais simplesmente aplicaram a legislação trabalhista ordinária. Não houve invocação de tese constitucional para resolver esses conflitos na Europa.
Além disso, a ideia de que a legislação trabalhista é incompatível com a livre iniciativa foi robustamente derrotada no século 20. Lembremos do famoso caso Lochner vs New York, de 1905, da Suprema Corte dos Estados Unidos. A Assembleia Legislativa do Estado de Nova York limitou a jornada de trabalho dos padeiros daquele estado.
A Suprema Corte, com uma composição que era então conservadora e ativista, cujos juízes haviam sido formados no laissez faire do século 19, baseou-se exatamente no argumento de que a lei violava a livre iniciativa. Os Justices sustentavam que a limitação de jornada laboral pelo poder público constituía intervenção indevida do Estado porque estaria ferindo a liberdade de contrato e de trabalho.
Ora, era literal e exatamente a mesma tese patronal apresentada hoje pela empresa Uber no Brasil. Como é sabido, a retrógrada Era Lochner foi superada na administração Franklin D. Roosevelt, com o New Deal, que impôs a legislação trabalhista federal para todas as empresas dos EUA.
Chega a ser espantoso que em pleno século 21 as empresas estão trazendo ao STF uma tese jurídica que era popular no século 19, uma tese reacionária defendida pelos ricos e poderosos contra a classe trabalhadora, e que foi superada pelo Estado Social.
Sim, há uma questão constitucional subjacente ao caso, mas qual é? A verdadeira questão constitucional do RE 1.446.336 é a de se saber se os trabalhadores uberizados têm direitos sociais e previdenciários, e não se a livre iniciativa está sendo restringida – porque de forma alguma o estaria.
Para citar apenas alguns paradoxos da atual situação dos trabalhadores contratados via aplicativos, vê-se a realidade de que muitos, a duras penas, criaram sindicatos representativos da categoria, sendo admitidos pelos poderes Executivo e Legislativo como legítimos atores sociais nos debates sobre o tema. Porém, tais sindicatos não podem fazer negociação coletiva com as empresas do setor, que não reconhecem a relação de trabalho que com eles mantêm. Tampouco se lhes reconhece a legitimidade para suscitar dissídio coletivo.
A alegação de que as plataformas digitais são incompatíveis com a legislação trabalhista tradicional é contraditada pelas práticas das próprias plataformas na Europa e nos EUA.
O pressuposto-base da argumentação das empresas que se valem de plataformas digitais é de que se trata de uma nova forma de relação, bem distinta da tradicional, por se tratar de modelo de negócios incompatível com a “antiquada” relação de emprego. Desta forma, seria impossível para as plataformas digitais continuarem atuando no mercado brasileiro se fossem obrigadas a cumprir a legislação trabalhista.
Esse pressuposto é claramente falso. A sua insustentabilidade é demonstrada pela realidade, pois em vários lugares do mundo as chamadas plataformas de transporte atuam com trabalhadores com vínculo de emprego e com direitos trabalhistas garantidos.
Comecemos pela própria Uber. Na Alemanha, os seus motoristas são e sempre foram empregados, contratados por meio de empresas terceirizadas de transporte. Para o cliente-consumidor o serviço funciona de maneira idêntica a qualquer outro lugar do mundo, bem como a gestão algorítmica realizada pela Uber sobre os trabalhadores. No entanto, os trabalhadores recebem todos os direitos trabalhistas alemães.
Da mesma forma, na Espanha, os motoristas são empregados de empresas de transporte terceirizadas. Em Genebra, na Suíça, depois de derrota judicial no país que reconheceu os motoristas da Uber como empregados, a empresa partiu para a mesma estratégia que havia adotado na Alemanha e na Espanha e terceirizou o serviço, em que os empregados são contratados pelas terceirizadas, com todos os direitos trabalhistas.
A sua operação de entregas, denominada UberEats, desde 2020 já atuava com trabalhadores empregados contratados por terceirizadas, com todos os direitos trabalhistas garantidos. A Uber, em comentário sobre a diretiva europeia com presunção da existência de vínculo de emprego, disse que a obrigação de reconhecer os direitos trabalhistas não atingiria a lucratividade da empresa, afirmando que já haviam provado a “capacidade de crescer em locais como Alemanha e Espanha utilizando o modelo da terceirização”.
Mas não são casos isolados. Na Alemanha, a maior parte das plataformas digitais classifica seus trabalhadores como empregados. A Just Eat, atuante em boa parte da Europa, mesmo sofrendo dumping social das concorrentes que não cumprem com suas obrigações trabalhistas e tributárias, contrata dezenas de milhares de entregadores como empregados. Na Espanha, a maior empresa de entrega no país, a Glovo, informou na semana passada que abandonará o modelo de falsos autônomos e passará a atuar com 100% de empregados, afirmando que nada mudará para o usuário.
E não é só na Europa que as plataformas digitais desmentem o pressuposto de que não conseguem funcionar com o modelo de emprego. Nos Estados Unidos, a plataforma de transporte de pessoas Alto contrata todos os seus motoristas como empregados. Da mesma forma, a plataforma de serviços gerais Blue Crew somente contrata empregados para prestar seus serviços. A plataforma Upshift, também de serviços gerais, oferece a mesma flexibilidade de horários reconhecendo as condições de empregados de seus trabalhadores.
No Brasil também temos exemplos. A plataforma de transporte de passageiros V-1 desde a sua fundação contrata seus motoristas como empregados. A Rappi, plataforma de entregas, contrata os “shoppers”, ou seja, os trabalhadores que fazem as compras nos supermercados, como empregados.
A iFood atua com dois modelos diferentes: contrata entregadores como se fossem autônomos diretamente, mas garante o serviço por meio de contratação de empresas de entrega que arregimentam, organizam e controlam os trabalhadores, chamados de operadores logísticos, em um modelo muito similar ao da Uber na Alemanha, Espanha e Suíça.
Dentro dessa lógica está embutida outra falácia: a de que as empresas não suportariam arcar com os custos derivados da relação de emprego. Ora, aqui no Brasil, se empresas em negócios tão simples como padarias, mercadinhos, oficinas mecânicas e botequins contratam seus trabalhadores como empregados, por que empresas com fundos bilionários, que detêm até bancos com receitas de até R$ 1 bilhão por ano, como a iFood, não conseguiriam arcar com as obrigações trabalhistas?
Assim, verifica-que não há qualquer incompatibilidade entre o modelo de plataformas digitais de serviços e a relação de emprego. Conforme a circunstância, seja por constrição judicial ou mesmo administrativa, seja por decisões de negócio, as empresas passam normalmente a contratar pelo modelo de emprego, o que não afeta seu modelo de negócio ou a experiência do consumidor.
As empresas que contratam empregados sofrem com a concorrência de outras que descumprem o padrão mínimo estipulado em seus países. O Direito do Trabalho é inseparável do direito regulatório da concorrência, como se dá desde o seu surgimento, em 1802, na Inglaterra, e por isso deve ser abrangente para que o mercado funcione corretamente. O Direito do Trabalho não impede a livre iniciativa. É o não cumprimento de direitos trabalhistas por parte de empresas que pode comprometer a livre concorrência em todo um setor econômico.
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Este texto foi apresentado na audiência pública realizada no STF nos dias 9 e 10/12/2024, convocada pelo ministro Edson Fachin para debater o Tema de Repercussão Geral 1.291.
Cássio Casagrande é Doutor em Ciência Política, professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro (licenciado). Visiting Scholar na George Washington University (2022).
Rodrigo de Lacerda Carelli é Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro, professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na UFRJ e integrante do Coletivo Transforma MP.