Por Gustavo Roberto Costa no Conjur
O traficante de drogas! O mal em pessoa. Aquele que tem “personalidade desviada”, é “afeito ao crime”, “não se importa com a vida alheia”, pratica um “comércio espúrio” (quando leio isso não sei se dou risada ou se choro), “que preferiu corromper a sociedade (como se ela ainda precisasse) em nome do lucro”. Que merece todo o rigor do sistema de justiça. Aquele para quem os direitos humanos não valem — o mal que causa justifica qualquer coisa.
Uma falsidade, por ignorância ou má-fé.
Ao conhecer o trabalho de Maria Lúcia Karam, Vera Malaguti, Rosa Del Olmo, Eugênio Zaffaroni, Alessandro Barata, Jacson Zilio e tantos outros, não é difícil perceber que os que verdadeiramente “lucram” com o comércio de drogas ilegais são essencialmente latifundiários e grandes empresários, os quais exploram mão de obra barata desde a produção até a venda ao consumidor, chegando, no final, ao sistema financeiro — a série Narcos-México retrata muito bem essa realidade.
Plantadores, colhedores, transportadores, distribuidores e vendedores são, em sua esmagadora maioria (arriscaria dizer a totalidade), pessoas da classe mais baixa — quem tem o mínimo de condição não se arrisca. Vendem sua mão de obra sem nenhum direito, sem final de semana remunerado, sem férias, sem 13º, sem licença-saúde, paternidade e maternidade. Sem aposentadoria (se quem trabalha formalmente não tem, o que dizer dos demais?).
Lucram também grandes e “respeitadas” instituições financeiras. O dinheiro ganho no tráfico é depositado em bancos e países de Primeiro Mundo, que não se importam muito (em verdade, não se importam nada) em descobrir sua origem. Os capitalistas agradecem. Sobre os lucros (magníficos), não são descontados tributos, exceto informalmente, para agentes públicos fazerem vista grossa — um incentivo de proporções estratosféricas à corrupção, que alguns dizem, com tanto gosto, “combater”.
Descontam-se também os gastos com seus “colaboradores” (mudam-se os nomes, a exploração segue a mesma). Como essa parte do custo é talvez a mais baixa, sobram dólares para “investir”. O tráfico de drogas passa a ser o espelho mais cruel da sociedade capitalista: alguns poucos (pouquíssimos) lucram de forma esplêndida, e à grande maioria (quem faz mesmo o negócio funcionar) sobram apenas os restos — além dos riscos.
Se ao “chão da fábrica” não é dispensada grande parcela do lucro, para os que estão na “ponta” do negócio, menos ainda. Além de cumprirem jornadas desgastantes (inclusive noturnas), estão constantemente sujeitos a tiroteios e à ação da polícia, da Justiça e da prisão (cujos prejuízos não são pequenos). Vão para a cadeia ou morrem em serviço e sua família não vê um centavo (existem traficantes ricos, mas em 12 anos trabalhando com processos envolvendo tráfico de drogas nunca vi nenhum).
Os adolescentes que respondem por tráfico são, todos, filhos da classe trabalhadora mais precarizada. As mães são invariavelmente faxineiras, atendentes, lojistas, cozinheiras e por aí vai. Os pais, pedreiros, jardineiros, vendedores, seguranças. Muitos estão desempregados. Muitos são ausentes. Defender que “quem quer, escolhe o caminho certo” (seja lá o que a palavra “certo” signifique) é quase um certificado de cegueira total.
Não há como se esquivar do fato de que o tráfico de drogas é uma forma cruel, vil e repugnante de exploração do trabalho infantil. O adolescente que está “no movimento” é uma vítima do modelo capitalista neoliberal, e nada mais. É isso que defendem os neoliberais: máxima exploração, pouco custo, violência e muito lucro. Tráfico de drogas é ruim, sim, mas o é porque é a cara do capitalismo.
Para a população, migalhas, para os donos do dinheiro (os verdadeiros donos, pois os chamados “patrões” são o equivalente dos “chefes das empresas”, ou seja, estão na mesma lama que todos os demais), mansões, iates, viagens, festas e tudo o mais. E a violência explode, claro. Não há como ser diferente.
Em um país pilhado, roubado, saqueado, cujas riquezas são entregues de graça para estrangeiros, cujas empresas fecham e cujo Estado repassa uma fatia gigante do orçamento para serviços da dívida pública, o estado de necessidade da imensa maioria da população deve ser presumido. O perigo exigido no artigo 24 do Código Penal é o perigo de passar fome — e não pode haver perigo maior. O Estado que prove o contrário.
Recente pesquisa do Cesec –(Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), intitulada “Ganhar a vida, perder a liberdade“, demonstra que de cem jovens internados no Estado do Rio de Janeiro por tráfico de drogas, 46 contribuem para o sustento da casa, 86 não concluíram o ensino fundamental e 59 já trabalharam em atividades lícitas precárias. E — como nunca é demais lembrar — 82 são negros.
Ao ingressar no marcado de trabalho das drogas, o jovem passa a integrar um gigante, poderoso e complexo sistema de exploração da mão de obra. Exploração quase escrava — a renda é, quando muito, suficiente para sobreviver. Assim, não há qualquer sentido em punir a peça mais fraca e vulnerável da cadeia. Além de ser um ato de inumanidade, é um ato de tremenda injustiça.
O adolescente apreendido em flagrante por tráfico de drogas deveria ser objeto de proteção, jamais de punição. Só uma sociedade que não se importa com seus jovens pode apostar nesta em detrimento daquela.
Deixar isso claro, para melhor enfrentar o problema, é urgente.
Gustavo Roberto Costa é promotor de Justiça em São Paulo, mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos e membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador (Transforma MP) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).